Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 10 de junho de 2015

"A formação do escritor José Saramago" - Um livro decisivo: "Levantado do Chão" por Manuel Gusmão - Revista "O Militante"

"A formação do escritor José Saramago" - Um livro decisivo: "Levantado do Chão" por Manuel Gusmão 
Revista "O Militante" (edição n.º 308 - Set./Out. 2010)

Pode ser consultado e lido, aqui
em http://www.omilitante.pcp.pt/pt/308/Cultura/502A-formação-do-escritor-José-Saramago---Um-livro-decisivo-Levantado-do-Chão.htm


Artigo de Manuel Gusmão

"No prefácio que escreveu para a edição de Uma família do Alentejo, de João Domingos Serra, José Saramago diz de si mesmo enquanto escritor por alturas de 1975: «Era esse o tempo em que não tendo feito até aí mais que uns quantos  poemas e umas quantas crónicas, obra limpa sem dúvida, mas mais do que modesta, tinha começado a dar voltas a uma ideia ambiciosa, nada menos imagine-se, que uma história sobre o campo e quem lá trabalha e malvive.»
Começa por pensar utilizar como lugar dos acontecimentos uma quinta onde dormira uma noite quando fora com seu tio Manuel vender os porcos a Santarém. O projecto esvai-se e ele continua a matutar num romance para o qual não tinha nem história nem personagens. Recorda que também se lembrou da Azinhaga, aldeia onde nasceu, mas a ideia também não durou, «reteve-me uma espécie de pudor que ainda hoje nem a mim próprio sou capaz  de explicar». 

«E, vai daí, estava eu neste era não era, andava lavrando, deu-se o 25 de Novembro».  O jornal de que fora sub-director foi fechado, o pessoal mandado para casa com uma indemnização à excepção dele e, nessa situação, toma duas decisões. A  primeira, de não procurar emprego e a segunda «perguntar para o Lavre se haveria por lá uma cama onde dormir e um canto para trabalhar num livro que pensava escrever». 

Essas duas decisões são efectivamente decisivas, desculpem-me o pleonasmo. Quero eu dizer que elas vão ter consequências, mesmo que não imediatamente.

Uma vez instalado em Lavre, continua Saramago, «o meu plano de trabalho era simples. Antes de mais, conhecer a vila e os seus arredores, a ribeira, a ponte em ruínas a que atribuíam uma origem romana, mas que foi construída no séc. XVI, a represa e o moinho, enfim pôr as mãos em cima das coisas como me habituei a dizer, depois descobrir aqueles que dariam conteúdo e substância ao futuro livro, na maior parte camponeses de vida revolucionária obscura. Mas com um cabedal único de experiências. Encontrei-os, falei com eles, gravei bobinas e bobinas de conversações […]. Esses homens tinham nome, rosto, rugas da idade e do contínuo esforço, as mãos como cepos, diria Raul Brandão. Chamavam-se uns, que eram do Lavre, outros de Montemor, João Besuga […], António Joaquim Cabecinha, Manuel Joaquim Pereira Abelha, Joaquim Augusto Badalinho, Silvestre António Catarro, José Francisco Curraleira, e outros, João Machado. Herculano António Redondo, Mariana Amália Besuga, Maria Saraiva, Ernesto Pinto Ângelo…».

Estamos perante uma enumeração de nomes daqueles que vamos encontrar em vários romances de José Saramago. Esse gesto narrativo – uma lista de nomes – é uma reprodução em espelho desta enumeração, ou talvez possamos dizer que esta lista aqui é que imita as listas que surgem nesses romances. Seja como for, esta lista, aqui, exibe o seu significado de uma forma clara: (a) a lista é uma homenagem àqueles de quem é dito o nome; (b) os nomes representam a multidão, que muitas vezes supomos sem nome, anónima, das personagens do livro que será Levantado do Chão; mas são também aqui, e este é um ponto importante, (c) uma espécie de co-autores do romance, como se fossem participantes do coro ou da voz coral que conta a história.

A lista termina com o nome de João Domingos Serra, o autor desse pequeno livro, que José Saramago resolve editar. No prefácio, que temos vindo a citar, o autor escreve: 

«Com o caderno debaixo do braço corri para o meu refúgio e pus-me a ler, com a ideia de ir copiando à mão as passagens mais interessantes, mas rapidamente compreendi que nem uma só daquelas palavras poderia perder-se. Não terminei a leitura. Meti uma folha de papel na máquina e comecei a trasladar, com todos os seus pontos e vírgulas, incluindo algum erro de ortografia, o escrito de João Serra. Tinha enfim livro. Anda tive de esperar três anos para que a história amadurecesse na minha cabeça, mas o Levantado do Chão começou a ser escrito nesse dia, quando contraí uma dívida que nunca poderei pagar.» (itálicos meus)

O que é que o escritor nos diz com estas palavras? Ele diz-nos do impacto ou da comoção (movimento da emoção) nele, provocada pela leitura do livro de João Serra. A ideia de que nenhuma palavra desse texto se deve perder não leva obviamente Levantado do Chão a repetir palavra a palavra o texto do camponês, mas leva este romance a guardar a memória desse outro livro, a amplificá-lo e a ecoá-lo, em suma a homenageá-lo.

Como perceber que Saramago, lendo o livro do camponês, diga «Tinha enfim livro», referindo-se a Levantado do Chão, que, entretanto, ainda demorará três anos a amadurecer? É que, no livro de João Serra, Saramago encontra uma fonte do seu livro, um testemunho que autentifica a sua narrativa, é como se o escritor erudito tornasse seu personagem-herói o narrador popular e tomasse o seu ritmo, os sentidos do seu contar.

Entre o momento em que começa a ser escrito (presumivelmente em 1976) – o que coincide com o começo da trasladação, à maquina de escrever, do texto de João Bonifácio Serra) – e a data de publicação de Levantado do Chão vão três a quatro anos, em que Saramago publica, nomeadamente, um romance (Manual de Pintura e Caligrafia, de 1977), um livro de contos (Objecto Quase, de 1978) e um texto sobre «O Ouvido», espécie de descrição da tapeçaria «La dame à la licorne», que integra uma obra colectiva, Poética dos Cinco Sentidos, de 1979. Podemos considerar todos esses textos como textos em que o autor está em processo de formação; como se no seu corpo certa tensão muscular o preparasse para um salto. Como se José Saramago ainda não soubesse exactamente para onde vai, mas tacteasse, na superfície da rocha, a passagem por onde irá passar. Estes três livros formarão, com O ano de 1993, parte fundamental das obras de formação do escritor José Saramago.

Manual de Pintura e Caligrafia é um romance que conta a história de alguém que pinta retratos e se questiona sobre esse seu ofício e medita sobre essa prática obrigada a uma relação semelhança entre o retrato e o retratado. O romance termina por uma mudança de vida e na reflexão sobre a arte, por um encontro amoroso e pela chegada do 25 de Abril.

Objecto Quase começa com um conto, «Cadeira», que conta minuciosamente a queda da cadeira que arrasta consigo Salazar.

O Ouvido procede a um entrelaçamento de dois movimentos de sentido: por um lado, uma tentativa de descrição do sons que se ouviriam numa tapeçaria que figura o ouvido, por outro, uma narrativa do trabalho que desenhou e depois teceu a tapeçaria.

Ao trabalhar sobre o ouvido, Saramago vai ao encontro ou à descoberta  daquilo que ele próprio dirá ser a auralidade da sua escrita e o seu tom conversacional.

Em Levantado do Chão, Saramago encontra decisivamente (para a sua obra a vir) o tom dialogal e de conversa da sua narração. É como se ele, o autor-narrador, não estivesse sozinho a contar, como se as suas personagens pudessem partilhar a narração entre elas e com ele. Este efeito estilístico tem na sua base um tipo de frase pela qual reconhecemos os textos de Saramago.

Repare-se no último parágrafo do primeiro capítulo:    

«Madre de tetas grossas para grandes e ávidas bocas, matriz, terra dividida do maior para o grande, ou mais de gosto ajuntada do grande para o maior, por compra dizemos ou aliança, ou de roubo esperto, ou crime estreme, herança dos avós e meu bom pai, em glória estejam. Levou séculos para chegar a isto, quem duvidará de que assim vai ficar até à consumação dos séculos?

E esta outra gente quem é, solta e miúda, que veio com a terra, embora não registada na escritura, Almas mortas, ou ainda vivas? A sabedoria de Deus, amados filhos é infinita: aí está a terra e quem a há-de trabalhar, crescei e multiplicai-vos. Crescei e multiplicai-me, diz o latifúndio. Mas tudo isto pode ser contado doutra maneira.» 

Em casos extremos, essa frase é formada por vários segmentos dos quais varia o emissor. Aqui, em relação ao segundo parágrafo transcrito, formado por várias frases, podemos dizer que é a voz do narrador que começa por expor uma interrogação, uma dúvida e uma suspeita – quem é?/almas mortas, ou ainda vivas?/embora não registada na escritura. A seguir, o narrador como que se retrai e quem fala é um intermediário de Deus, um padre ou a própria instituição. A Igreja – A sabedoria de Deus, amados filhos, é infinita: aí está a terra e quem a há-de trabalhar, crescei e multiplicai-vos – que é em parte corrigida pelo latifúndio, cuja palavra o narrador regista – Crescei e multiplicai-me, diz o latifúndio – Até que o narrador retoma a palavra naquilo que percebemos ser a promessa  de um contar alternativo à escritura que não fala daquelas gentes que parece terem vindo com a terra. O facto de ser dada a palavra à Igreja e ao Latifúndio e o modo como a usam constituem uma operação retórica que ironiza sobre esses «falantes» e lhes opõe um dizer diferente. Levantado do Chão será uma história do latifúndio, alternativa à que o latifúndio de si conta e para si deseja. Podemos pois dizer que o texto de Saramago, Levantado do Chão, é um texto de ficção que preenche uma lacuna da historiografia oficial ou da história contada pelos vencedores, pela classe dominante.

Podemos ainda dizer que Levantado do Chão é, simultaneamente, o último livro do período de formação do escritor José Saramago e o primeiro livro da sua maturidade.

Para esta sua dupla condição contribuem as características que já apontei e que recapitulo agora:

(1) A história contada nos seus romances aparece sempre como o preenchimento de uma lacuna num texto que tem funções de autoridade.

O Memorial do Convento conta a história da construção do Convento de Mafra, mas tal como em Levantado do Chão os protagonistas dessa construção são os trabalhadores braçais que não são nomeados pela escritura, ou seja, pela historiografia oficial. Uma confirmação disto pode ser fornecida pelo facto de andar também por Mafra uma personagem Mau-Tempo (Julião). As regras e as convenções de verosimilhança, o próprio contrato de leitura negociado entre o leitor e o texto indicam que este é um antepassado da família Mau-Tempo de Levantado do Chão. Eis uma parte da sua apresentação aos seus companheiros que transportam a pedra: O meu nome é Julião Mau-Tempo, sou natural do Alentejo e vim trabalhar para Mafra por causa das grandes fomes de que padece a minha província. […] Este pequeno jogo que consiste em trazer para um romance posterior e uma distância de dois séculos antes uma personagem de um operário, é coincidente ou solidário com a estratégia de contar de outra maneira. Neste caso concreto, num romance que começa com o problema da sucessão dinástica, este aparecimento de Julião Mau-Tempo indica ao leitor que os trabalhadores, mesmo os mais humildes também têm antepassados, também vêm numa linhagem mesmo que silenciada e ignorada.

(2) Memorial do Convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis, que é anunciado como o próximo romance, nas primeiras edições de Objecto Quase e Levantado do Chão, trabalham com o mesmo tipo de frase, que permite meter, no interior de uma frase ou de um parágrafo, um diálogo ou um conflito verbal.

Esta transformação da pontuação visa um efeito não apenas de diálogo, mas dialéctico ou dialógico. Uma vírgula seguida de uma palavra com letra inicial em maiúscula indica geralmente que se mudou de fonte da fala no interior de uma frase. No caso dos parágrafos, como vimos acima, são os próprios segmentos frásicos que produzem esse efeito.

Esta é a maneira como Saramago nos mostra a socialidade ou o carácter radicalmente social da linguagem humana.



(3) Os dois traços anteriores convergem com um terceiro também já enunciado acima que é a apresentação por vezes de listas de nomes dispostos por ordem alfabética, que se destinam a retirar do anonimato esses nomes e ao mesmo tempo sublinham nessa ordem o seu carácter artificial e residual, porque os nomes dos construtores são inúmeros.

Em Memorial do Convento, para além dos (7) nomes daqueles (sete) que num momento de descanso se apresentam uns aos outros – O meu nome é Francisco Marques, nasci em Cheleiros […], O meu nome é José Pequeno […]; Chamo-me Joaquim da Rocha, nasci no termo de Pombal […]; O meu nome é Manuel Milho, venho dos campos de Santarém […];  O meu nome é João Anes, vim do Porto […]; o meu nome é Julião Mau-Tempo, sou natural do Alentejo […]; o meu nome é Baltasar Mateus, todos me conhecem por Sete-Sóis […] – há ainda mais duas listas: 

Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, e Pedros, e talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem, vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende. Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcelino, Nicanor, Onofre, Paulo; Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra por cada um, para ficarem todos representados.

A lista que apresenta os nomes próprios na forma do plural é uma amostra e dá, por esse plural aplicado a um nome, uma ideia da quantidade de homens arrolados.

Depois e na sequência daquela vem então uma outra lista que apresenta um nome por cada letra do alfabeto. O carácter arbitrário do alfabeto dá a esta lista por ordem alfabética a possibilidade de representar todos os homens portadores de nomes com aquelas letras iniciais. Inscritos num livro que lhes vai sobreviver, ficam assim imortalizados. E poderíamos dizer que em momentos como este a ficção cumpre uma função alternativa à da historiografia oficial, com a sua glorificação dos reis e dos generais, em suma, dos mais poderosos.

A formação do escritor José Saramago está quase completa e ele entrou decididamente na sua maturidade de autor. Mas talvez possamos ir um pouco mais longe. Sabendo nós que o tempo e designadamente o tempo histórico não é linear talvez se possa compreender que eu sugira que há um livro ainda importante para esta formação que se vai sobretudo traduzir em romances. Esse livro, que é publicado em 1981, entre Levantado do Chão (1980) e Memorial do Convento (1982), chama-se Viagem a Portugal.

Este livro de viagens na sua terra ajuda a estabelecer a ponte entre os dois romances e mostra como a escrita de José Saramago representa na ficção uma história do povo trabalhador português, uma história denegada e recalcada, uma histórica que, entretanto, atesta a sua caminhada persistente até à sua emancipação."

Texto de José Saramago "Do canto ao romance, do romance ao canto" - 16/09/2009

O professor Carlos Reis, na sua obra agora reeditada, "Diálogos com José Saramago" - Porto Editora, à página 142, lança a seguinte pergunta ao escritor.
«Quero voltar à questão do tempo, mas só num seu aspecto particular, ao qual chego em função de um texto seu intitulado «Do canto ao romance, do romance ao canto», em que fala no tempo peculiar do romance (...). Este tempo descrito como labirinto, é o tempo de muitas personagens?»

Pode ser lido e consultado via página da Fundação José Saramago, aqui

(Pilar e Saramago)


"Do canto ao romance, do romance ao canto"

"É conhecido o caso de um moço, habilidoso de nascença, que, sem nunca ter recebido lições de belas-artes nem aprendido de mestres particulares, e não dispondo de outra ferramenta que um canivete, era capaz de transformar em pouco tempo um toco de madeira bruta no mais perfeito e acabado urso de que rezariam histórias da escultura se o objectivo delas fosse ocuparem-se de talentos místicos. Invariavelmente, a gente da terra maravilhava-se com a  rapidez e o jeito apurado, e, também invariavelmente, o rapaz respondia às curiosidades: «Não tem nenhuma dificuldade. Agarro no bocado de madeira e fico a olhar para ele até ver o urso. Depois, é só tirar o que está a mais.»

O nosso escultor dava-nos assim, de uma vez só, duas lições magníficas: a da modéstia e a da generosidade. Revelava-nos sem disfarce nem engano o seu segredo de oficina e ensinava-nos como deveríamos proceder para criar um urso: olhar para onde ele não está e, apenas com o olhar, obrigá-lo a aparecer.

Mas, ai de mim, não há perversidade  pior que a dos ingénuos. Este amável moço, tão prestante em explicar-nos  como fez, não permite que lhe saia da boca uma única palavra sobre  como se faz. Não duvidamos de que o urso ali esteja, mas entre a figura do animal e as nossas inábeis mãos existe uma muralha de madeira fechada, com nós duríssimos, veios intratáveis, traiçoeiras maciezas da fibra: é por de mais evidente que se necessitará muito engenho e muita  arte para abrir um caminho e fazer dele avenida por onde possa alongar-se, enfim comprazido, um olhar fruidor. A arte, afinal de contas, não é fácil, o rapaz dos ursos esteve a divertir-se à nossa custa.

Contudo, imprudente seria o céptico que se atrevesse a jurar que no interior de ada bocado de madeira não se encontra um urso à nossa espera. Está ali, e sempre há-de estar. Ainda que não consigamos vê-lo distintamente, pelo menos seremos capazes de adivinhá-lo, de intuí-lo, aparece-nos ao longe como  uma luz instável e lenta, um vago luzeiro que, por assim dizer, não chegasse a iluminar-se a si mesmo.

E é aqui, num súbito relance, que descubro que não é de ursos que se trata, mas de um tema, exactamente este que vos trouxe: «Do canto ao romance, do romance ao canto». Creio distinguir-lhe e identificar-lhe os contornos, tornar-se-lhe nítido e preciso o vulto, chego a acreditar que me bastará estender a mão e agarrá-lo, mas no momento em que vou exclamar, triunfante: «Minhas senhoras e meus senhores, eis o urso», verifico que tudo não foi mais que ilusão e ludíbrio, e apenas tenho para mostrar isto que vêem aqui, um tronco cortado, um cepo, uma raiz torta, um assunto à procura da sua porta de entrada. E outra vez a luz recomeça a pulsar, como um coração implorando: «Tirem-me daqui.»

Disse: «Do canto ao romance» – e esse percurso, essa viagem por espaços, mundos e tempos, desde os poemas homéricos a Marcel Proust, ou James Joyce, ou Franz Kafka, passando pelas Mil e Uma Noites, pelas epopeias indianas, pelas parábolas dos livros sagrados, pelo Cântico dos Cânticos, pelas fábulas milésicas, pelo Asno de Ouro, pelas canções de gesta, pelas sagas islandesas, pelos ciclos de Roldão, da Demanda do Graal, de Alexandre, de Robin Hood, pelo Roman de la rose e pelo Roman de Renart, por Gargântua, pelo Decameron, por Amadis de Gaula, por Don Quixote, e também por Gulliver e Robinson, Werther e Tom Jones, por Ivanhoe, Cinq-Mars e Os Três Mosqueteiros, pela Nossa Senhora de Paris, pela Comédia Humana, pelas Almas Monas, pela Guerra e Paz, pelos Irmãos Karamazov, pela Cartuxa de Parma, pela Montanha Mágica, até aqui, até aos dias de hoje, essa viagem relata-se e explica-se por si mesma, começou um dia, em voz e em grito, à sombra de uma árvore, ou no interior  de uma gruta, ou num acampamento de nómadas à luz das estrelas, ou na praça pública, ou no mercado, e depois houve alguém que escreveu, e a seguir alguém que escreveu sobre o que antes tinha sido escrito, infinitamente repetindo, infinitamente variando, escrevendo, lendo, escrevendo, lendo…

Pouco importará a mais do que provável incoincidência com a realidade histórica entre esta visão lírica de narrativas entoadas em melopeia e uma escritura organizada e disciplinada, respeitadora de regras, preceitos e normas, e, fatalmente, de sistemas convencionais que nunca o são menos pelo facto inelutável de serem transitórios  e portanto substituíveis por outros sistemas, estes, por sua vez, condenados, mais cedo ou mais tarde, a idênticos processos de mudança. A evocação que aí deixei serviu-me somente para ilustrar, do modo mais persuasivo de que fui capaz, a primeira parte do título que dei a estas breves linhas: «Do canto ao romance», e, para os fins que tenho em vista, tão bem servia esta como outra qualquer. A dificuldade viria sempre depois. Precisamente agora.

Digo: «Do romance ao canto» – e nesta  altura deveria demonstrar, ou pelo menos propor-vos como uma hipótese plausível, que o género literário a que damos o nome de romance, havendo chegado na nossa época ao final do arco de círculo que, tal imaginário pêndulo, traçou através dos tempos, estaria regressando pelo caminho por onde veio, até reencontrar o canto primordial, donde recomeçaria a viagem, porventura com um novo impulso que lhe  permitiria galgar, em direcção ao futuro, mais uns quantos séculos ou milénios. Algo como dois passos para trás e três para diante…

Não sou tão desprovido de senso comum.  Dinâmica e cinética são programas de diferente foro do conhecimento, e a literatura, se repete infinitamente, como já foi dito, também infinitamente varia, como foi dito  já. Posto o que, chegados a este ponto, é irresistível recordar aquele célebre Pierre Menard, autor de um Quixote  idêntico ao de Cervantes, segundo nos explica Jorge Luis Borges nas suas  Ficciones,  o qual Pierre Menard, tendo repetido, palavra por palavra, a obra do imortal «Manco de Lepanto» (assim designam a Cervantes quando não se quer repetir-lhe o nome, destino a que Camões escapou, pois ninguém, até hoje, se atreveu a chamar-lhe «Zarolho de Ceuta»), muitas vezes está a dizer coisas diferentes, não mais que por serem diferentes os modos de as entender neste século XXI em que estamos e naquele século XVII em que nunca estaremos. Porém, este mesmo exemplo nos mostra, derradeiramente, que qualquer repetição exacta é impossível. Naquela sua viagem de retorno às origens, ao outro extremo do arco de círculo, o pêndulo iria supostamente reencontrando e reconhecendo, passo a passo, a identidade  romanesca perceptível nas narrações que conhecemos do passado, ao mesmo tempo que iria deixando atrás de si o rasto de uma alteridade coincidente, se uma tão grosseira contradição em termos (se é alteridade, não é coincidente) pudesse ser admitida. É claro que foi pelos meus próprios passos que me meti no beco sem saída em que de repente me encontro. De facto, se ao romance não é permitido fazer nenhum percurso inverso, se Pierre Menard, quando fiel e escrupulosamente copiou o Quixote, acabou por escrever outro livro, como conseguiríamos nós alcançar novamente o anto, o desejado canto, e, se sim lá chegássemos, de que canto seriam capazes as nossas bocas de hoje, ainda que as palavras fossem iguais e igual a música? Os homéridas já não têm lugar neste mundo, o  tempo é, de todas as coisas, a única que não é recuperável. Que nos resta, então? Como iremos inventar o canto novo, esse a que me está obrigando a segunda parte do meu título? E com que direito me proporia eu, se é de facto essa a minha intenção, anunciar o advento de uma nova era, literariamente falando, claro está, sem cuidar de saber se isso agradaria a quem tivesse de vivê-la? Trazer Homero aos nossos dias, homerizar o romance, terá algum sentido?

Estas perguntas, em si mesmas, e pela ordem por que as apresentei, não são inocentes. Permitem-me, enfim, trocar o geral pelo particular, penetrando no único universo de que posso falar com a legitimidade que dá um conhecimento de causa, isto é, o meu próprio e pequeno universo, o do romance que faço, o seu porquê, o seu como e o seu para quê.

Em primeiro lugar, consideremos a relação do autor com o tempo. Não este em que agora estamos, não aquele outro que foi o do escritor enquanto trabalhou no seu livro, mas sim o tempo contido e encerrado no romance, e que também não é o das horas e dias que levará a ser lido, ou uma referência temporal implícita no discurso ficcional, e menos ainda o tempo explicitado fora da narrativa, por exemplo, no título que ela recebeu, casos de Cem Anos de Solidão ou de Vinte e Quatro Horas na Vida de Uma Mulher.  Falo, sim, de um tempo poético, feito  de ritmos, de suspensões, um tempo simultaneamente linear e labiríntico, instável, movediço, um tempo dotado de leis próprias, um fluxo verbal que transporta uma duração e que uma duração por sua vez transporta, fluindo e refluindo como uma maré entre dois continentes. Este, repito, é o tempo poético, pertence à recitação e ao canto, aproveita todas as possibilidades expressivas do andamento, do compasso, da coloratura, é melismático ou silábico, longo, breve, instantâneo. De um tempo assim percebido foi meu desejo e minha ambição que se alimentassem as ficções que inventei, consciente de que vou querendo, mais e mais, aproximar-me da estrutura de um poema que, sendo pura expansão, se mantivesse fisicamente coerente.

Afirmam músicos e musicólogos que uma  sinfonia, hoje, é algo impossível, como, na mesma linha de ideias, o seria  também esculpir um capitel coríntio. Obviamente, qualquer pessoa, se dotada de suficiente habilidade, poderá contrariar tal interdição de princípio, compondo, de facto, a sinfonia,  ou esculpindo, de facto, o capitel: o que dificilmente poderá é levar-nos a acreditar que, ao fazê-lo, esteve a responder a uma necessidade autêntica, tanto no plano da criação como no plano da fruição. Ora, quem sabe se não teremos  também nós de enfrentar a gravíssima responsabilidade de aplicar ao romance uma  sentença igual, afirmando, por exemplo, que também ele se tornou impossível nas suas formas paradigmáticas, prolongadas até hoje com mínimas variações, só raramente  radicais e sempre assimiladas e integradas no corpo tópico, o que tem permitido, com a graça de Deus e a bênção dos editores, que continuemos, muitos de nós, a escrever romances como comporíamos sinfonias brahmsianas ou talharíamos capitéis coríntios.
Mas este mesmo romance, que assim parecia estar condenando, contém já em si, nos seus diversos e actuais avatares, a possibilidade de se transformar num espaço literário (propositadamente digo espaço, e não género) capaz de acolher, como um grande, convulso e sonoro mar, os afluentes torrenciais da poesia, do drama, do ensaio, e também da ciência e da filosofia, tornando-se expressão de um conhecimento, de uma
sabedoria, de uma cosmovisão, como o  foram, no seu tempo, os poemas da antiguidade clássica.

Porventura estarei caindo em erro, se recordarmos a crescente e parece que irreversível especialização, já quase microscópica, do homem. Porém, não é impossível que essa mesma especialização, por força de algum mecanismo interior de compensação, e talvez por uma instintiva necessidade de sobrevivência e equilíbrio psicológico, nos leve a procurar uma nova vertigem do geral em oposição às aparentes seguranças do particular. Literariamente, porque só de literatura estamos falando aqui, talvez o romance possa restituir-nos essa suprema vertigem, o alto e extático canto de uma humanidade que ainda não foi capaz, até hoje, de conciliar-se com a sua própria face.

E assim concluo. Manejando o meu canivete rombo, aparei e escavei o bocado de madeira que aqui vos trouxe. Juro-vos que via o urso antes, via-o perfeitamente. Juro-vos que continuo a vê-lo agora. Mas não tenho a certeza – culpa minha – de que o vejais vós. O mais provável foi ter-me  saído um ornitorrinco, esse mamífero desajeitado, com bico de pato, feito de peças soltas doutros animais, desconforme, bicho fantástico – ainda que não tanto  como o ser humano. Este que nós somos quando escrevemos romances, ou os lemos. Interminavelmente."

José Saramago
16 Setembro de 2009