Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Citador #28 sobre os silêncios da natureza... "Viagem a Portugal"

Citador #28
... sobre os silêncios da natureza...
em "Viagem a Portugal"
Caminho, 11.ª edição, página 53 e 54


(Serra do Marão, ou a "Casa Grande")

(...) "Não há limites para o silêncio. Debaixo destas pedras, o viajante retira-se do mundo. Vai ali à Pré-História e volta já, cinco mil anos lá para trás, que homens terão levantado à força de braço esta pesadíssima laje, desbastada e aperfeiçoada como uma calote, e que falas se falaram deixado dela, que mortos aqui foram deitados. O viajante senta-se no chão arenoso, colhe entre dois dedos em tenro caule que nasceu junto de um esteio, e, curvando a cabeça, ouvem enfim o seu próprio coração. " (...)


"Lanzarote — A Janela de Saramago" de João Francisco Vilhena (via "Arte Photographica"

Post e Link original via blog "Arte Photographica"
em http://artephotographica.blogspot.pt/2014/06/saramago.html

(Fotografia de João Francisco Vilhena)


"E Saramago tornou-se paisagem"
(revista 2, Público, 11.05.2014)

Como quer que me vista?
— De preto.
— De preto, João?
— Sim.
[silêncio, como quem diz “o fotógrafo é louco!”]
— Mas pretos já são os vulcões… Bom, está bem.
E José Saramago vestiu-se de preto para a objectiva de João Francisco Vilhena. O fotógrafo não queria que o escritor se destacasse na paisagem, queria que se confundisse com ela, que se perdesse nela. E partiram, em passeio, para a zona do Parque Nacional de Timanfaya, Lanzarote, onde quase tudo é vulcânico. Faltavam poucos dias para Saramago receber o Prémio Nobel da Literatura em Estocolmo (10 de Dezembro de 1998). Esse mega-acontecimento podia ser um peso a vergar a fotografia e a condicionar o olhar do fotógrafo ao culto da personalidade. Nas imagens que ficaram dessa sessão, fotógrafo e fotografado parecem conscientes disso. Dão-nos a simbiose. Dão-nos a terra crestada, a poeira e a solidão. E parece que tentam fugir ao brilho das salas douradas que se avizinha.
Nesse dia incerto de Novembro, meteram-se a caminho dialogando, às vezes com uma câmara fotográfica à mistura, numa tentativa de captar um homem na paisagem e nunca um escritor galardoado com a mais alta distinção da sua arte, um nome que aparece nas capas de milhões de livros. Um homem na paisagem e “nas mãos de um fotógrafo”, tão-só (e tão difícil).
Depois dessa caminhada fotográfica, trabalho que viria a ser exposto em Estocolmo por ocasião da entrega do prémio, João Francisco Vilhena sentiu que a ligação que tinha presenciado entre Saramago e a terra que adoptou como sua era de tal maneira forte que decidiu voltar. Queria aprofundar uma reflexão que mostrasse como um homem se pode fundir com o espaço, como pode entendê-lo, desafiá-lo. Respeitá-lo. A “inquietação” aumentou de ano para ano. O fotógrafo sentiu que alguma coisa tinha ficado por fazer. Queria mais. Mas aquele momento fotográfico não voltou a repetir-se (na verdade, nenhum momento fotográfico volta a repetir-se).
Já depois da morte do escritor, em 2010, João Francisco Vilhena voltou, agora com um guia, os Cadernos de Lanzarote, os cinco diários que José Saramago escreveu entre 1993 e 1995 e onde foi anotando as suas reflexões sobre o quotidiano na ilha, sobre a vida, a morte e o amor. Neste regresso, o fotógrafo experimentou o vazio, apenas preenchido pelas palavras deixadas pelo escritor. “Senti-me a fazer uma viagem no tempo com ele através das paisagens da ilha, através do que escreveu sobre Lanzarote. Rever os mesmos lugares onde estive com Saramago foi violento e dei-me conta da sua ausência de uma forma muito profunda.”
O desafio maior passou por encontrar inspiração nas palavras e, ao mesmo tempo, não ficar prisioneiro delas, sobretudo por terem sido escritas por alguém com o peso de um Nobel. “Não quis fazer um exercício mimético ou de simples ilustração dos escritos. Quis dar a força de uma relação e de um ambiente muito particular, que levou alguém a expor-se em termos sentimentais de uma forma absoluta e fantástica.”
A relação que José Saramago tinha com Lanzarote era profunda. E João Francisco Vilhena compreendeu-a através das fotografias que captou, antes e depois do seu desaparecimento. “Saramago tornou-se paisagem através da sua vivência na ilha. Os habitantes relacionam Saramago com a ilha. São um”, diz o fotógrafo, que ontem apresentou em Matosinhos o livro Lanzarote — A Janela de Saramago (Porto Editora). Na Galeria Municipal, por ocasião do festival LeV — Literatura em Viagem, pode ver-se uma exposição com as fotografias que dão corpo ao livro. Nesta obra, João Francisco Vilhena pensou cada página como se fosse única, onde “há momentos em que as palavras são um sussurro e outras em que são um grito”. Como as paisagens fotográficas e o escritor que nelas habitam.

(a exposição Lanzarote — A Janela de Saramago, pode ser vista actualmente no Instituto Camões, em Lisboa)

(Fotografia João Francisco Vilhena)

"Saramago, a vaidade justificável" texto de Miguel Sanches Neto (05/06/1999)


(Fotografia de João Francisco Vilhena 
Exposição Lanzarote — A Janela de Saramago)

Texto pode ser consultado em http://www.jornaldepoesia.jor.br/msanches29.html

"Saramago, a vaidade justificável" de Miguel Sanches Neto
em "Gazeta do Povo" (05/06/1999)

"Um diário é um cômodo íntimo de uma casa. Nele, encontramos o autor em suas roupas domésticas, vivendo como o comum dos mortais. O que impera é o acontecimento miúdo, as pequenas vaidades, as alegrias cotidianas, os prazeres de ver a vida que passa, as indignações, etc. Quando o diário é escrito por uma grande personalidade, a estes móveis mais inexpressivos são acrescentados outros: a sua participação em grandes acontecimentos, sua concepção de mundo e os eventos dos bastidores da vida pública por ele vivida. É, invariavelmente, a parte interna da casa, as intimidades do edifício, com suas manchas de bolor e com sua decoração, que encontramos na leitura dos textos nascidos sob este rótulo.
O leitor de diários está sempre atrás das grandezas e das fraquezas de quem escreve e sempre será possível encontrá-las nesta categoria de texto em que sobressai um eu. Acusar um autor de ser ególatra é algo que não diz absolutamente nada, servindo apenas para depor contra a inteligência de quem faz tal afirmação. Todo diário é, em sua essência, um culto do eu e, portanto, todo autor de diários é um cultor de si mesmo. O que varia é o grau de presença do eu, uns são mais e outros menos ególatras, e natureza desta presença, algumas são justificáveis pelas questões que suscitam.
Quem procura tais textos deve portanto saber que o que ele encontrará é um discurso do eu, que pode vir mais velado, como quando um viajante mostra uma paisagem ou fala de questões sociais. Mas o eu, neste caso, não está ausente, apenas oculto. São suas as opiniões e seu o olhar. Até esconder o eu não é mais do que chamar a atenção para ele.
No diário tudo é vaidade. Quem escreve é vaidoso por levar a sua vida a sério, por dar-lhe importância ao ponto de escancará-la ao público. E quem o lê também é vaidoso, porque no fundo quer se ver no diário. Mesmo que não seja conhecido do autor, ele quer se reconhecer na vida privada deste. Depois que começou a transcrever cartas em seus diários, cujo segundo volume da edição brasileira acaba de ser lançado (Cadernos de Lanzarote II, Cia. das Letras, 1999), José Saramago passou a receber um número muito maior de missivas, como fica sugerido pela recorrência delas no volume em questão. Também deve ter aumentado a freqüência de visitas à sua casa e de convites para participar de eventos. Pois são estas as matérias do diário, espaço da vaidade por excelência. O próprio artigo que escrevo não deixa de ser movido pela vaidade de freqüentar a sua casa, de ocupar-lhe um mínimo espaço.
Isso posto, acabemos com as acusações ao autor. Saramago é tão vaidoso quanto quem o lê. Ponto final. Abramos outro parágrafo.
Por baixo desta matéria mais mundana e perecível pode ou não haver uma base sólida. É isso que deve definir a relevância de um diário. Assim, a imprescindibilidade dos Cadernos de Lanzarote II se localiza em duas questões axiais, pelo menos para este crítico. A primeira é a sua proposta de um retorno ao autor. A segunda é a história (que geralmente fica no mais completo segredo) do nascimento da ficção, da sua fase pré-natal.
Durante as longas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a literatura sofreu uma aceleração do movimento de tecnicização que tem acompanhado a modernidade. Nunca, como nesta segunda metade do século, ser moderno significou de forma tão primária investir, em todos os sentidos, em aparatos tecnicamente sofisticados. A estética, na arte, acabou ocupando o mesmo espaço que os objetos eletrônicos têm em nossa vida. O homem viu-se reduzido a um ser perplexo em meio a coisas que roubaram o seu lugar, condenando-o ao exílio. Que isso tenha acontecido no mundo material já é algo assustador, mas que a mesma coisa tenha se manifestado no mundo da cultura é que me desespera. Tanto na crítica (entregue ao estudo de questiúnculas técnicas), quanto na filosofia (perdida em conceitos vagos) e nas artes (que enaltecem o domínio dos instrumentos), o homem passou a ser uma figura dispensável.
No território específico de Saramago - a ficção -, o centro das atenções foi transferido para o narrador, ou seja, para um lugar técnico da narrativa. A obra, dentro desta visão distorcida, ganha relevância quando há a construção aprimorada de um narrador. O livro, portanto, passa a valer pelos recursos que convoca e não pelas verdades humanas condensadas nas trajetórias de seus personagens. Quando a figura do narrador se sobrepõe, o autor perde espaço - o que é o mesmo que dizer: o homem deixa de ser relevante. "O problema está, mais cruamente, em que o escritor, regra geral, deixou de comprometer-se com o cidadão, e que muitas das teorizações em que se foi deixando envolver acabaram por constituir-se como escapatórias intelectuais, modos de disfarçar, aos seus próprios olhos, a má consciência e o mal-estar deste grupo de pessoas - os escritores – que, depois de terem se considerado a si mesmas como farol e guia do mundo, acrescentaram agora à escuridão intrínseca de todo o ato criador as trevas da renúncia e da abdicação cívicas"(p.118).
Vendo neste culto do narrador uma escapatória intelectual, Saramago propõe que a literatura dê maior visibilidade às pessoas. Só isto já seria mais do que suficiente para justificar os seus diários. O diário revela o homem Saramago, não como o reverso do escritor, mas como o homem/escritor, este ser indissociável. Ele não vê o escritor como um personagem, como uma criação intelectual, e sim como um ser vivo que adquire estatuto literário. Assim, o literário é um estado decorrente e revelador do real e não um mascaramento deste. Poderíamos até arriscar a dizer que não há diferença significativa entre os Cadernos de Lanzarote e os demais títulos do autor. Todos estão a serviço do homem. Este movimento de retorno ao autor é o mesmo movimento que buscou dar espessor humano tanto para a história (Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa) como para o personagem de ficção criado por Fernando Pessoa (O ano da morte de Ricardo Reis). Neste livro, Ricardo Reis sai do mundo da literatura (onde se caracteriza por um programático abstencionismo) e penetra no mundo dos homens, para morrer como tal. Ele, ser sem corpo, se solidariza com a sofredora espécie humana. Alguém devia estudar as relações entre este romance e o filme Asas do desejo, de Wim Wenders.
Seus diários revelam ainda a precedência do humano no processo de gestação de seu mais recente romance: Todos os nomes, uma parábola sobre a imortalidade conquistada historicamente através da capacidade que o homem tem (e que muitas vezes acaba obliterada) de manter vivas, através da memória, pessoas que já se foram. Toda a busca do personagem de Todos os nomes, o escriturário José, um ser de essência autobiográfica, surgiu de um fato vivido por Saramago. Ele passou a desentranhar dos arquivos informações sobre um irmão morto no início da infância. O interesse pelo irmão deu origem a uma parábola (de caráter histórico e não religioso - que fique bem claro) em que ele propõe o interesse irrestrito por todos os seres humanos. Está aí não só a gênese da literatura de Saramago como também a razão de seu sucesso. Num período em que a maioria escreve a partir de uma concepção literária e artificiosa, ele se vale de suas vivências mais profundas, criando uma obra que encanta pela autenticidade.
É preciso ler os Cadernos de Lanzarote II perseguindo estas discussões e não atrás de exemplos de vaidade. Comecei este artigo dizendo que um diário é um cômodo íntimo de uma casa. A vasta produtividade do autor faz com que ele acolha muita coisa, transformando os cadernos numa espécie de quarto de despejo. No futuro, quando boa parte dos temas envelhecer, será preciso organizar este quarto, deixando apenas os móveis indispensáveis."

Este texto é publicado, respeitando o original do autor