Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Crónica "O grande teatro do mundo" publicada em "As opiniões que o DL teve" (14/12/1972)

"O grande teatro do mundo"
14 de dezembro de 1972

"A representação teatral de ações simultâneas não foi invenção do nosso tempo, ao contrário do que poderão pensar a pessoas inclinadas a acreditar que o passado terá sido pouco mais do que um espesso casulo ou um ovo de trevas. Um palco que hoje se estrutura em vários níveis e planos, e onde os atores que gesticulem e falem em articulação ou não com outros atores, repete mistérios medievais e representações mais recuadas ainda. 
Tudo isto são banalíssimas verificações, certamente o pretexto adequado a uma reflexão anacronicamente moralista, pois se trata, como anuncia o título, de ver o mundo como um palco imenso de ações simultâneas, muitas delas decorrentes umas das outras, outras ainda marcadas pelo absurdo dos contrastes. Também a reflexão não terá nada de original. Este modo de ser do mundo é o responsável pela multidão de misantropos que arrastarão a vida numa áspera derrota, recusando-se a ser peso na balança e cúmplices no absurdo. Infelizmente para eles o mundo inclui-os na sua grande máquina misturadora: tudo é gente transportada nos remoinhos movediços da História, girando ao parecer no mesmo lugar, e contudo avançando no fluido inapreensível do tempo. Talvez seja a insensível fricção desse fluido que envelhece os homens como a água que corre sobre as pedras, as desgasta, as reduz a lâminas, a areia, e, por fim a átomos invisíveis... 
Revertamos, porém, ao ponto: o mundo é, evidentemente, um palco imenso de ações simultâneas, de que partem três homens para a Lua, fortes de ciência e técnica, e onde centenas de outros homens se esforçam humildes por tomar lugar numa carruagem de metropolitano, num autocarro, num elétrico, num simples táxi, se possível... E isto para só falarmos no angustiante, mas no entender de muita gente pitoresco, problema dos transportes, porque se contemplarmos o plano da moral comezinha veremos cinquenta religiões, entre pequenas e grandes, difundirem por todos os meios palavras de paz, enquanto as guerras metodicamente vão fazendo pela vida... e pela morte. Repare-se também no presidente Thieu do Vietname do Sul, que benevolamente condescende em tréguas de Natal, sob condição (ou pouco menos) de que a guerra prossiga depois desse breve intervalo que provavelmente nem bastará para enterrar decentemente os mortos. Veja-se, para não sair daquelas partes do mundo, como um povo tem vindo a ser literalmente sangrado há dezenas de anos, não obstante o clamor de protesto que a todas as horas se levanta das nações. Atente-se nos altíssimos e luxuosos edifícios de cujos terraços quaisquer honestos olhos distinguirão o vexame dos bairros de lata, agora cosmopolitamente rebatizados como bidonvilles. Tome-se a medida do conforto e veja-se como ela se recusa a assentar no corpo de quem nasceu sobre estrelas malévolas. 
Esta enumeração não acabaria nunca, mesmo que pretendêssemos dedicar-lhe as colunas inteiras do jornal. O teatro do mundo é realmente grande e capaz de conter a multiplicação de todas as disformidades e injustiças, sobre a capa pacificadora de uma resignação infinita que se exprime na desolada verificação de que o mundo já assim era quando nascemos, razão bastante boa para que aos olhos de muita gente assim deva continuar... Entretanto, neste teatro absurdo o pano vai caindo, para cada um de nós, na altura devida. É uma espécie de roleta russa em que todos acabaremos por ser alvejados. Em todo o caso, mesmo sem misantropia excessiva, haveremos de convir que o mundo assim organizado merecia bem que o pano caísse de vez. Universalmente. Tranquilizemo-nos, porém: o homem é o animal mais resistente da Terra, porque se nutre de um a alimento invisível chamado esperança. 

in, "As opiniões que o DL teve", 1.ª edição de 1974
14 de Dezembro de 1972
Edição Porto Editora, edição de 2014) páginas 74 a 76