Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Citador #17 - Quadra datada de 1940

Citador #17
Quadra datada de 1940,
Dedicada a Ilda Reis, sua primeira esposa
Esta quadra foi gravada num prato decorativo, em forma de coração, que um seu vizinho, pintor numa fábrica de cerâmica, fez a pedido de José Saramago.

"Cautela, que ninguém ouça
O segredo que te digo:
Dou-te um coração de louça
Porque o meu anda contigo"

Teatro Art'Imagem apresenta "A Maior Flor e outras Histórias segundo José"


Via Fundação José Saramago
"De 2 a 7 de dezembro, no Fórum da Maia, o grupo Teatro Art´Imagem 
apresenta o espectáculo "A maior flor e outras histórias segundo José" 
Mais informações em: www.teatroartimagem.org



«Havia uma aldeia e um menino (ou uma menina?).
Havia também os avós com quem a menina (menino?) vivia, mais os vizinhos.
Um dia sai o menino (menina?) pelos fundos do quintal e toca a andar, toca a andar.
Caminhou, caminhou, correu, correu, parou, parou...
Até que chegou ao limite das terras até onde se aventurara sozinha ( sozinho?).
– Vou ou não vou?
Foi!
À descoberta de si, à descoberta do mundo.»

Inspirado na obra de José Saramago e tendo como base de trabalho dramatúrgico o seu livro para crianças “A Maior Flor do Mundo”, o Teatro Art´Imagem apresenta uma peça de teatro para ser vista por adultos e crianças em conjunto. Uma boa oportunidade para homenagear e divulgar o autor e a sua obra, na esteira do Teatro Art´Imagem cujo lema tem sido apresentar os grandes autores e textos da literatura universal, transformando-os em teatro. 
Acrescentando outros textos que vão desde “Pequenas Memórias” aos contos “Deste Mundo e do Outro”, dos “Cadernos de Lanzarote” aos “Poemas Possíveis” e ao Discurso de aceitação do Prémio Nobel, ao aparecimento de personagens literárias inesquecíveis do universo do autor, como o par Blimunda e Baltazar, os Sete Sóis e Sete Luas, do “Memorial do Convento”, a Mulher do Médico e o Cão das Lágrimas, de “O Ensaio Sobre a Cegueira”, até às criaturas reais, mais ou menos fantasiadas, que povoaram a sua infância, como os seus avós Jerónimo e Josefa e outros familiares, bem como as recordações do que era viver, trabalhar e brincar na aldeia de Azinhaga do Ribatejo, ao despertar dos primeiros amor. Dois actores, uma mulher e um homem, interpretam e representam em palco e na plateia, as palavras e acções escritas e descritas pelo autor, ganhando estas outra dimensão artística de comunicação e partilha. Há corpos em presença, olhos que se cruzam, pessoas de corpo presente, membros que se tocam, vozes que se ouvem, respirações e tempos comuns entre espectadores e artistas, acção dramática, movimento e vida em misturando-se teatro e literatura, palavras e actos, deambulação e realidade, sentimentos, medos e perguntas, recordações e memórias. Em palco toda a humanidade que Saramago descreve e defende nos seus romances e na sua própria vida, à procura de um mundo diferente, melhor.



Ficha artística e técnica

» Inspirado na Obra de José Saramago 
» Dramaturgia e encenação José Leitão 
» Interpretação Daniela Pêgo e Flávio Hamilton
» Pintura Agostinho Santos
» Música Alfredo Teixeira
» Cenário Fátima Maio, José Leitão e José Lopes 
» Figurinos e adereços Fátima Maio
» Apoio ao movimento Renato Vieira e Ana Lígia
» Desenho de Luz Leunam Ordep
» Operação Técnica Sandra Sousa

» Produção Sofia Leal

Classificação Etária: M/6
Duração Aproximada: 50m

104ª Criação do Teatro Art'Imagem - 2014



Data e local de apresentação

Estreia: 28 de Maio de 2014 e temporada até 7 de Junho de 2014, no Teatro do Campo Alegre, Porto.



Sugestão de Leitura "José Saramago: Tudo, Provavelmente são Ficções; Mas a Literatura é Vida" de Eula Pinheiro



"José Saramago: tudo, provavelmente, são ficções; mas a literatura é vida" 
Eula Pinheiro
Musa Editora - 2012

A sugestão de leitura, que aqui apresento, é uma obra da autoria da Dra. Eula Carvalho Pinheiro, académica e entusiasta estudiosa sobre a temática "Saramaguiana". A Presidenta, da Fundação José Saramago (onde a obra se apresenta à venda), Pilar del Río, prefacia o livro, de onde considera que: -  "Eula Carvalho, que escreveu um livro indispensável para os que amam a obra de Saramago, ou seja, ao autor que construiu a realidade à base de ficções que nos fortalecem e dignificam."

Sandra Dias, do site http://canelaehortela.com, apresentou o livro desta forma:
"Eula Carvalho Pinheiro investiga esta viagem de Saramago, dialoga com o autor para descobrir que talvez ele não tivesse razão quando fez da sua obra um antes e um depois, parece dizer-lhe que todas as suas ficções, toda a sua vida, são a descrição da pedra porque ela é a matéria mais sólida da qual se ergue a realidade que somos. As ficções e os seres humanos que as lemos. Disto trata Eula Carvalho, que escreveu um livro indispensável para os que amam a obra de Saramago, ou seja, ao autor que construiu a realidade à base de ficções que nos fortalecem e dignificam.
Estas são as palavras de Pilar del Río no prefácio do livro de Eula Carvalho Pinheiro José Saramago: tudo, provavelmente, são ficções; mas a literatura é vida, editado pela Musa Editora e disponível agora na Fundação José Saramago.
Segundo as palavras da autora em entrevista ao jornal Tribuna de Minas na altura do lançamento do livro no Brasil, em Dezembro de 2012. “O meu compromisso é mostrar a coerência de José”.  Nesta obra, feita no âmbito do mestrado concluído em 1993, Eula Pinheiro debruça-se sobre sete livros de José Saramago, entre o Manual de Pintura e Caligrafia e a História do Cerco de Lisboa. Embora Evangelho segundo Jesus Cristo tenha surgido entretanto, Eula não considerou esse livro por ter sido publicado muito próximo da conclusão do estudo. Como sublinha na introdução, dois factos essenciais ocorreram entretanto – o Prémio Nobel da Literatura, em 1998, e a morte do escritor, em 2010.
Em Agosto de 2010, a investigadora conheceu Pilar del Río no Brasil e desde então deslocou-se várias vezes a Portugal e também a Lanzarote. Desenvolve actualmente um trabalho de doutoramento sobre a obra não ficcional de José Saramago.
Domingos Lobo, responsável pelo posfácio, escreve que “Há nesta iinterpretação de Eula Carvalho Pinheiro, nesta certeza certa que só a literatura inscreve em nossos imaginários, uma releitura sagaz e oportuna sobre os objectos, os eixos estruturantes da bagagem metafórica e intáctica de José Saramago: ler este mundo sem preconceitos, descomplexadamente, eis o que faz a autora neste brilhante livro. Apetece voar de novo, atrelado a esta análise, feita de rigor e objectividade, pelos textos de Saramago e redescobrir neles, com redobrado prazer, as determinantes que este estudo configura e expressa.”
A obra, editada pela Musa Editora, foi lançada no mercado brasileiro em Dezembro de 2012 e está agora disponível na loja da Fundação José Saramago, na Casa dos Bicos... " (9 de Maio de 2013)




(imagem da sessão de apresentação da obra, 
"José Saramago: tudo, provavelmente, são ficções; mas a literatura é vida"
na sede da Fundação José Saramago, na Casa dos Bicos)

A Musa Editora, que publicou o livro, apresenta a autora e o livro, assim:
"José Saramago: tudo, provavelmente, são ficções; mas a literatura é vida analisa a primeira fase da obra saramaguiana, a fase “estátua”: do romance Manual de pintura e caligrafia à História do Cerco de Lisboa. Para Pilar Del Río é “livro indispensável para os que amam a obra de Saramago, ou seja, ao autor que construiu a realidade à base de ficções que nos fortalecem e dignificam.”

Sumário da obra:
Prefácio Pilar del Río | Apresentação Eula Pinheiro

Traçando um caminho
Manual de Pintura e Caligrafia: ponto de partida
O diálogo com a literatura
“Todos os caminhos portugueses vão dar a Camões”
“O poeta é um fingidor”: o jogo intertextual e o texto como construção
O diálogo com a Bíblia
O diálogo com a tradição oral
Saramago conversa com Saramago
História do Cerco de Lisboa: “toda a verdade é ficção” .

Posfácio Domingos Lobo | Bibliografia | Lista de obras de José Saramago e abreviaturas | Caderno de fotos (em cores)

Eula Pinheiro, a autora

Eula Carvalho Pinheiro nasceu em Paraíba do Sul, RJ. Graduou-se em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora –UFJF, Mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Há 27 anos lê a obra de José Saramago. É, no momento, investigadora de doutoramento em Lisboa: acolhida pela Fundação José Saramago. Cursa o doutoramento na Universidade Nova de Lisboa. Colabora com a Fundação José Saramago com o objetivo e a vontade de levar adiante o estudo da obra saramaguiana e sua consequente divulgação a todas as pessoas que desejarem conhecer a escrita e a vida de José Saramago."



O "Estadão" publicou a crónica sobre esta matéria e que o site da Musa Editora, reproduz. Aqui, o respectivo link, do através site da editora.

"Eula Pinheiro não transformou a dissertação de mestrado que fez sobre a obra de José Saramago em livro assim que a apresentou na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1993. Tampouco aproveitou o fato de seu objeto de estudo ter conquistado o Prêmio Camões em 1995 ou o Nobel em 1998. A morte dele em 2010 também não a fez apertar o passo. E não foi por falta de editora.
Ana Cândida ainda trabalhava em uma grande casa em meados dos anos 90 quando conheceu o trabalho de Eula. Gostou tanto que resolveu guardar para a Musa, sua editora que começava a caminhar, a ideia de publicá-lo. Mas também não o fez.
O ano de 2011 foi decisivo para que esse projeto saísse da gaveta e abrisse espaço para uma série de outras ideias que a pesquisadora pretende colocar em prática quando estiver reestabelecida em Lisboa, cidade onde passou a maior parte do ano passado e que foi responsável pela mudança do vento.
Foi nesse período que ela pode se aproximar de Pilar Del Río, a viúva de José Saramago, e conviver com as pessoas que o cercavam. Participou de importantes momentos relacionados à memória dele: a abertura da biblioteca da casa de Lanzarote, a pré-estreia de José e Pilar no Rio e a deposição de suas cinzas na oliveira da Casa dos Bicos, que abrigará a Fundação Saramago, em Lisboa. Toda essa dedicação está para ser recompensada com uma mesinha com vista para o Tejo nessa mesma fundação.
Enquanto isso não acontece, Eula se ocupa com a edição de José Saramago - Tudo, Provavelmente, São Ficções; Mas a Literatura É Vida, prevista para abril. No bairro de Perdizes, em São Paulo, editora e autora se encontram na nova sede da Musa para discutir o projeto gráfico e selecionar as imagens. Eula trouxe muitas fotografias de Portugal – das viagens que fez pelas rotas saramaguianas e dos eventos de que participou. Elas devem vir em um caderno e serão alternadas com citações dos romances estudados. A capa foi feita por Raquel Matsushita a partir da tela O Dia Seguinte, do artista plástico português Júlio César – ele também um fã de Saramago.

Há 26 anos acompanhando a trajetória do escritor, a pesquisadora analisou, em sua dissertação transformada agora em livro, os cinco primeiros romances publicados no Brasil - Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Jangada de Pedra e História do Cerco de Lisboa -, e a edição portuguesa de Manual de Pintura e Caligrafia, livro que só seria lançado no País às vésperas da defesa da tese. Outro romance chegou ao País quando Eula concluía o trabalho, mas acabou ficando de fora: O Evangelho Segundo Jesus Cristo, um dos mais polêmicos dele.
Essas sete obras pertencem à fase que o próprio autor chamou de estátua. O que veio depois pertence à fase pedra, ou universal. “José Saramago, sendo já autor de uma vasta obra, deu-se conta de que até O Evangelho Segundo Jesus Cristo tinha estado empenhado em descobrir a estátua, mas que a partir de Ensaio Sobre a Cegueira o seu interesse era outro, tratava-se de descrever a pedra de que a estátua é feita”, escreve Pilar no prefácio.
Eula explica: “A fase estátua é o trabalho com a pedra, ou seja, a abordagem de temas locais e particulares. Memorial do Convento conta a história da construção do convento de Mafra no século 18. Levantado do Chão aborda toda a problemática de um país agrícola na ditadura do século 20. Depois vem Jangada de Pedra e a questão do iberismo. Já em O Ano da Morte de Ricardo Reis, o tema é Fernando Pessoa”. Nas obras posteriores, ele trabalha com a pedra, que é a essência da estátua. “Mas no fim tudo foi pedra porque ele sempre falou do homem”, reavalia.
A ideia da divisão de sua obra em fases não é muito difundida no Brasil, analisa a autora. Saramago usou a expressão pela primeira vez em um discurso que fez em Turim. Improvisada, essa fala foi transcrita em Portugal para voltar a Turim, para as mãos da artista Luciana Stegagno Picchio, que produziu 126 exemplares da peça A Estátua e a Pedra."


"No dia 29 de Junho comemorou-se o 4.º aniversário da Fundação José Saramago com uma leitura pública do livro "Palavras para José Saramago", que recolhe os textos publicados por todo o mundo nos dias que se seguiram à morte de José Saramago. - Leitura de Eula Pinheiro"


"O percurso da leitura feito por Eula não foi totalmente cronológico. “Eu havia lido do Levantado até História do Cerco de Lisboa e pensei que se o Manual de Pintura e Caligrafia trouxesse as respostas às perguntas que estava a fazer-me, fecharia o meu trabalho. Ali, vi que ele já antecipava questões que viria a tratar até a última linha escrita, e conclui minha tese.” O livro que clareou as ideias da pesquisadora é de 1976 e foi o primeiro da nova fase de Saramago, que já tinha lançado, em 1947, Terra do Pecado.
O escritor Domingos Lobo destaca, no posfácio, a análise que Eula faz desse romance antigo, “um dos menos amados de Saramago”, e o que nele encontra: o jogo intertextual e com as derivantes da sabedoria popular, a tradição oral, as componentes metonímicas, a herança dos campos semânticos, o sentido humano da literatura e a sua ligação com as outras artes, o mágico e o fantástico e o sentido de que toda a verdade é ficção. A memória do ouvido e do vivido, o cotidiano das pessoas comuns e os pequenos acontecimentos já estão nesse primeiro livro e serão vistos nos seguintes.
“A metáfora que fiz em 1990, que foi algo de bastante vanguarda pelo que disseram depois, foi a da construção. Coloquei o Manual de Pintura e Caligrafia como alicerce, os quatro outros romances como paredes e numa laje, com a possibilidade de novas paredes, o História do Cerco de Lisboa. Deixei isso preparado. Claraboia completou a casa”, diz referindo-se ao romance escrito por Saramago aos 30 anos e que só foi publicado em 2011.
Com seu livro lançado e divulgado, Eula mergulha em outros projetos. As rotas saramaguianas, por exemplo, que começou a percorrer no ano passado, devem virar livros infantis em que a autora mostrará os cenários onde Saramago situa suas histórias. E o doutorado, sobre a obra não ficcional do escritor, deve ser transferido da PUC do Rio para alguma universidade lisboeta. O título provisório é O Intelectual se Levanta no Silêncio do Mundo para Intervir na Realidade."

De Eula Pinheiro, pode também ser consultada, outra matéria de estudo e análise, neste caso sobre a obra "Ensaio sobre a Cegueira", na Revista Blimunda (edição digital), de Fevereiro de 2014 - N.º 21
Páginas 60 a 69



Ensaio "Da Justiça à Democracia, passando pelos Sinos" no FSM de Porto Alegre (Fevereiro de 2003)

DA JUSTIÇA À DEMOCRACIA, PASSANDO PELOS SINOS
Por José Saramago (Fevereiro de 2003, Fórum Social Mundial de Porto Alegre)

(Texto gentilmente cedido, pela Dra. Eula Carvalho Pinheiro, 
académica e estudiosa da temática "Saramagiana")


"Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século 16) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. “O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino”, foi a resposta do camponês. “Mas então não morreu ninguém?”, tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: “Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta.”

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido… Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo…

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aqueles trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização econômica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros “comissários políticos” do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os de certas conhecidas minorias eternamente descontentes…

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor."