Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

"José Saramago: Sobre a gravura de David de Almeida"


"José Saramago: Sobre a gravura de David de Almeida"

Link para leitura completa e original, 

"São poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. Na verdade, aquele outro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro da cabeça e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções gerais, vagas, difusas, e sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma ordem às mãos e aos dedos, crê, ou simula crer, que isso era tudo quanto se precisava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparecesse feito.



Nunca teve a curiosidade de perguntar a si mesmo por que razão o resultado final desse processo manipulador, sempre complexo mesmo nas suas mais simples expressões, se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instruções às mãos para que lhe fizessem, também por exemplo, uma gravura. Note-se que ao nascer os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando a pouco e pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é evidentemente importante, mas também o é o auxílio daquilo que por eles vai sendo visto e ali se esconde. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro da cabeça possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que isso signifique, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi necessário primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro intuiu que daquele fragmento de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca ou uma coisa a que chamaria ídolo.

O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo agora, quando nos parece que passou adiante delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar numa ferramenta, a dilaceração aguda do raspador, a mordedura do ácido na chapa, a vibração contida de uma folha de papel deitada, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. E as cores. A verdade é que o cérebro não é tão entendido em cores quanto se supõe. É certo que vê mais ou menos claramente visto o que os olhos lhe mostram, mas muitas vezes sofre do que poderemos designar por dificuldades de orientação na hora de converter o que viu em conhecimento.

Graças à segurança inconsciente com que a duração da vida acabou por beneficiá-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a que chama elementares e complementárias, mas perde-se imediatamente, perplexo, duvidoso, quando experimenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo inefável, de algo indizível, aquela cor ainda não nascida do todo que, com o assentimento, a cumplicidade e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão inventando e que provavelmente nunca chegará a ter o seu justo nome. Ou talvez o tenha já, mas esse só as mãos o conhecem, porque compuseram a tinta como se estivessem a decompor as partes constituintes de uma nota de música, porque se sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse saber invisível dos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado no que os olhos julgaram ter visto, o cérebro da cabeça afirma que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a humidade e a secura, a praia é branca, ou amarela, ou fulva, ou cinzenta, ou qualquer coisa entre isto e aquilo, mas depois vêm os dedos e, com um movimento de recolha, discreto e antigo, levantam da areia todas as cores existentes no mundo.

O que parece único é plural, o que é plural sê-lo-á ainda mais. Não é menos verdade, contudo, que na fulguração exaltada de um só tom, ou na sua musical modulação, estão presentes e vivos todos os outros, tanto os das cores que já têm nome como os das que ainda o esperam, da mesma maneira que uma superfície de aparência lisa e plana poderá estar cobrindo, ao mesmo tempo que os manifesta, os rastos de todo o vivido e acontecido na história do mundo. Toda a arqueologia de materiais é, bem o sabemos, uma arqueologia humana. O que esta gravura esconde e mostra é o trânsito de ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro perguntou e pediu, a mão respondeu e fez."

 * Texto do catálogo de exposição de David de Almeida no Círculo de Bellas Artes,  Madrid, em 2002 (escrito em 1999)




"Breve biografia:
David de Almeida nasceu em S. Pedro do Sul em 1945. Frequentou, na Escola António Arroio, o Curso de Gravador Litógrafo e na Gravura – Cooperativa de Gravadores Portugueses um curso de Gravura em metal sob a orientação de Maria Gabriel. Subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, estagiou nos Moinhos do Vale do Lagat, em França, no sentido de se especializar na feitura manual de papel. Cursou holografia no Goldsmith College (London University) e estagiou com Stanley Hayter no Atelier 17 em Paris, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Artista vastamente premiado, do seu currículo fazem parte inúmeras exposições individuais em Portugal e no estrangeiro, intervenções em espaços públicos e representação em colecções e museus."

Dedicatória "Obrigado, David"
Inscrita no site da Fundação José Saramago, 

José Saramago: "O que me vale, caro Tolentino, é que já não há fogueiras em São Domingos!" (Expresso, 25/10/2009)




Ou o confronto saudável, entre dois homens crentes, cada um à sua maneira, em entrevista a propósito da obra "Caim".


José Tolentino de Mendonça e José Saramago. 
O poeta e o Nobel da Literatura, 
o teólogo católico e o “ateu empedernido”, 
em casa do autor do livro “Caim’’ (Fotografia de António Pedro Ferreira)


José Saramago: "O que me vale, caro Tolentino, é que já não há fogueiras em São Domingos!"

"Em torno do livro "Caim", o Expresso juntou José Saramago e o teólogo católico José Tolentino de Mendonça. Um, de 87 anos, Nobel da Literatura, "ateu empedrenido", como gosta de se apresentar. Outro, de 43, sacerdote e poeta, professor da Universidade Católica. O frente-a-frente foi vivo e aceso."

José Pedro Castanheira, jornalista do Expresso, em 25 de Outubro de 2009

Link, para consulta em http://expresso.sapo.pt/jose-saramago-o-que-me-vale-caro-tolentino-e-que-ja-nao-ha-fogueiras-em-sao-domingos=f543404

"José Saramago (JS) - Eu chamei "livro dos disparates" não à Bíblia, mas a um versículo de uma carta aos hebreus, que está na contracapa e que também serve de epígrafe ao livro. Em toda a Bíblia, depois do assassinato de Abel, não se volta a falar de Caim. Não se sabe porquê, nessa carta aos hebreus há uma referência a Caim e que é completamente absurda e que me permiti chamar-lhe disparate. "Pela fé" - só estas duas palavras dariam para uma larga discussão. "Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus considerou-o seu amigo, etc..". Há alguém capaz de me explicar, em termos racionais e humanos, para que a gente entenda, o que isto quer dizer? É absolutamente incrível!

José Tolentino de Mendonça (JTM)- A tradição, durante séculos, colocou-a no interior das cartas paulinas. Sabe-se, agora, que é de um autor posterior a São Paulo, embora seja um texto do Novo Testamento e com uma teologia admirável.

JS - A teologia admirável atreveu-se a dizer coisas tão impossíveis de aceitar como afirmar que Deus considerou Abel seu amigo. O que é isto? Estamos a jogar com as palavras? Como é que sabemos isso? Quem é que registou? Quando? Como? Onde? Abel e Caim sacrificaram a Deus o que tinham. O pobre Caim, se me permitem que chame pobre a um assassino, ofereceu também o que tinha. Deus desprezou o sacrifício de Caim. Aí, começa tudo: o ciúme nasceu aí, o rancor, a incompreensão, porque Caim não percebe que Deus o rejeite. Isto é um disparate lógico, o que me leva a dizer que este texto faria boa figura num livro de disparates. Mas não chamo à Bíblia um livro de disparates.

JTM - Não encaro esta conversa como um duelo ou sequer como um confronto. Este é um território onde a humildade é extraordinariamente necessária. No fundo, o não-crente e o crente têm ambos as mãos vazias, ainda que de forma diferente. Ambos são buscadores, procuradores. A fé nasce de uma interrogação, de uma abertura à revelação de Deus e do irmão. Tenho o maior apreço pela pessoa de José Saramago e pelo seu trabalho. Um grande criador é um dom extraordinário. E todos, de alguma forma, somos devedores a essa arte humaníssima, artesanal, extraordinariamente solitária e funda, que é a arte de um contador de histórias, de um escritor. Tenho o maior respeito, também, pelo interesse que José Saramago manifesta pelo texto bíblico. É, sem dúvida, dos autores portugueses, dos que mais se interessa, mais convive e mais procura o texto bíblico. Às vezes de uma forma consciente, num confronto e numa luta corpo-a-corpo, como no caso do "Evangelho Segundo Jesus Cristo", ou, agora, em "Caim", onde há luta forte com o texto bíblico. Outras vezes de forma implícita. E às vezes num certo tom, no seu português maravilhoso e inesquecível, que até tem um tom e uma respiração bíblicas, no sentido de um certo tom cosmogónico que, por vezes, a sua narrativa tem.

Há duas coisas que é preciso distinguir. Uma, é a obra literária, que agora foi lançada; outra, é o hipertexto: aquelas declarações de José Saramago em Penafiel, no lançamento do livro, e que acabaram por criar um acontecimento mediático. Sobre isso, algumas pessoas da Igreja e de outras confissões religiosas manifestaram-se, com toda a legitimidade, porque vivemos numa sociedade aberta e de liberdade. São leituras de uma declaração muito virulenta de José Saramago em relação à Bíblia e ao fenómeno religioso. Foi uma declaração nada consensual, e por isso são mais que expectáveis as reacções. Atacar a Bíblia desta maneira, tratá-la como uma coisa que podemos dispensar, e as palavras, com a gravidade com que foram ditas, é alguma coisa que nos enche de perplexidade. Porque a Bíblia é um livro de fé. É inegável que ao longo de séculos tem sido uma fonte de bem, uma fonte de ânimo na aventura humana e uma fonte de criatividade espantosa. A Bíblia é também um grande código da nossa civilização. Claro que podemos criticar esse código, mas um grande homem de cultura, mesmo agnóstico ou ateu, por amor a Bach, por amor a Mozart, a John Steinbeck, a O'Connor, a Faulkner, a Ruy Belo, a Maria Gabriela Llansol, a José Saramago, tem de ter este livro em sua casa."

(José Tolentino Mendonça, José Pedro Castanheira jornalista do Expresso, e José Saramago)


"JS - Eu não preciso de ter, porque em minha casa tenho sete ou oito exemplares. Desde uma Bíblia espanhola do século XVII ou XVIII, até uma Bíblia que me foi oferecida numa Feira do Livro, há três ou quatro anos, em português corrente. Até posso estar de acordo consigo quando diz que na minha prosa e estilo há uma ressonância, uma música que pode ser relacionado com a música, o ritmo, o sentido da pausa, o sentido expositivo, que se encontra na Bíblia. Não nego. Outra das minhas grandes influências, já o disse, é o padre António Vieira, cujos sermões li e reli - algumas vezes terei treslido... Mas acho que terá sido necessário um grande esforço para converter a Bíblia num livro de fé.

JTM - Mas a Bíblia é uma biblioteca. Tem muitos livros. Acha que foi difícil tornar um livro de fé o livro do profeta Isaías?

JS - Não! Como não acho impossível o livro de Job.

JTM - Ou os Salmos. Ou os Livros da Sabedoria ou das Origens.

JS - Tudo isso é certo. Mas ponha-se agora, por um ou dois minutos, no meu lugar. Tomar o Caim como personagem central de uma história não tem nada de gratuito. A questão do Caim é uma velha questão que eu tenho com a Bíblia.

JTM - Mas leu alguns comentários sobre a figura de Caim? Para mim, como exegeta, um dos textos mais admiráveis sobre Caim é o texto de Paul Ricoeur, que faz uma interpretação que, penso, o próprio Saramago achará extraordinária. Ele lê o episódio de Abel e Caim como a história e a construção da fraternidade. O Génesis é uma meditação sapiencial sobre a condição humana. O que são, afinal, os mitos? São meditações sobre a vida. Os autores bíblicos são contadores de histórias, que repassam a vida com um olhar crente, se quisermos. Depois da Bíblia, a fraternidade já não está dependente dos laços do sangue, mas de uma decisão ética. Eu não sou irmão do outro simplesmente porque sou do seu sangue; sou irmão dele se escolher ser seu irmão.

JS - Isso é forçar um pouco as histórias... O que teria acontecido se Deus tivesse aceite o sacrifício de Caim, como aceitou o de Abel? Porque é que Deus recusou o sacrifício de Caim? Esta pergunta não tem resposta.

JTM - As grandes experiências humanas são experiências de escolha com a qual temos de lidar. Veja: porque ama a Pilar e não uma outra mulher?

JS - Eu cá sei!

JTM - Sabe, mas o amor é um lugar sem resposta, sem lógica.

JS - A literatura e a lógica não são incompatíveis!

JTM - Não são incompatíveis, mas não é uma lógica matemática.

JS - É absurdo que Deus tenha recusado o sacrifício de Caim. Não há palavras, não há exegeses ou leituras simbólicas que o justifiquem. Temos aí um obstáculo sério: é que não podemos fazer perguntas aos redactores da Bíblia. Gostaria de saber quais eram as intenções do autor.

JTM - Mas há um sentido imanente no texto.

JS - A Bíblia está traduzida em quase todas as línguas.

JTM - Mas a exegese é feita sobre os textos originais. Eu trabalho sobre o hebraico e sobre o grego.

JS - Textos originais sobre os quais eu não sei nada.

JTM - Não sabe porque não tem investigado.

JS - Não! Simplesmente porque a minha vida é outra.

JTM - Todo o texto bíblico tem em si um densidade inesgotável. É um livro que nunca se acaba de ler. Depois de mil leituras, o texto vence sempre. Este texto é muito importante. Como a carta aos hebreus, que acho injusto que lhe chame "livro dos disparates".

JS - Tenha paciência: eu não lhe chamei isso. O que eu digo, e repito, é que este texto concreto, tal como está redigido, merecia ser incluído num livro dos disparates universais. Esta frase, qualquer pessoa achará que é uma frase completamente disparatada.

JTM - Mas a fé é um paradoxo. Eu não diria um disparate. Querer tratar Deus com lógica é chegar a um beco sem saída.

JS - Então se o beco não tem saída, voltemos para trás.

JTM - Mas acha que pode entender a condição humana eliminando o paradoxo?

JS - Não, não.

JTM - Acha que as grandes emoções, as grandes janelas interiores que o homem traz se justificam apenas pela lógica?

JS - Mas os meus livros estão cheios disso. A questão é que eu não escrevi nenhum livro sagrado! Esse é o problema.

JTM - Sabe que numa sociedade secularizada o José Saramago é uma espécie de referência sagrada. Um homem que vende 200 mil exemplares e tem uma cobertura global... Hoje, o sagrado tem outras formas. E, no fundo, a sua pretensão é também uma pretensão sagrada.

JS - É possível. Aliás, uma das minhas frases preferidas é que "para fazer um ateu como eu, é necessário um altíssimo grau de religiosidade".

JTM - Sem dúvida!

JS - Como é uma frase minha, o que o teólogo Juan José Tamayo escreveu recentemente no diário "El País": "Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio". Eu não sou o tipo de ateu ferrabrás, armado de um chuço para deitar abaixo aquilo que eu não posso deitar abaixo, que é a crença, a fé, na qual eu não toco - na condição que não façam afirmações tão ilógicas como esta.

JTM - Mas podíamos tirar qualquer afirmação de um dos seus livros e colocá-la no livro dos paradoxos universais.

JS - Não me importaria nada. Mas ficaria muito desgostoso se incluíssem uma frase minha no livro dos disparates. A Igreja insiste em que há que fazer uma leitura simbólica dos textos bíblicos. Os crentes e leitores da Bíblia estão instruídos, educados, treinados, manipulados para aceitar aquilo que...

JTM - Porque diz manipulados?

JS - Porque é assim. A palavra é essa. Quer outra palavra? Eu dou-lha.

JTM - É muito importante perceber que os cristãos são criados por liberdade, por amor à liberdade.

JS - À liberdade? Mas o que é que a história da Igreja, e do catolicismo em particular, tem que ver com a liberdade?

JTM - Tem tudo a ver com a liberdade.

JS - Ai sim? Curioso!

JTM - Foi para a liberdade que Cristo nos libertou, afirmou um homem como Paulo de Tarso.

JS - Deixe Cristo em paz!

JTM - Mas esse é o seu erro de base. Deixe-me falar, para voltar à história de Caim e Abel. A Bíblia, precisamente para ilustrar a liberdade, coloca a escolha dos filhos mais novos - Abel, mas também uma galeria imensa de filhos mais novos, que são os preferidos em relação ao poder estabelecido socialmente pelo mais velho. Todo o direito e a lei estão do lado do mais velho. E, contudo, Deus escolhe o mais pequeno. Deus escolhe o último, a vítima, aquele que não tem voz nem vez, o que não é protagonista da História, para ser protagonista de uma história. Tudo isto é uma convulsão social. A Bíblia é um texto inquieto. Se escrutarmos a Bíblia a partir de um raciocínio lógico, claro que vamos encontrar imensos nós cegos, coisas sem resposta. Mas a nossa vida é assim. A história de Abel e Caim é a história desta inquietação sem resposta que a experiência do mal e do bem é na nossa vida. Não é verdade que na Bíblia nunca mais se volte a falar de Abel. Jesus identifica-se muito com a figura de Abel. A Bíblia identifica-se com a figura daqueles que na história são as vítimas. Por isso, dizer que a Bíblia é uma espécie de livro que reúne toda a crueldade do mundo, é dizer uma coisa ao lado do que verdadeiramente é. No seu espírito profundo, a Bíblia é um manual de liberdade, um livro de perguntas. Por muito que lhe custe, José Saramago, quero dizer-lhe que o cristianismo é uma aventura de liberdade.

JS - A mim, o que me vale, meu caro Tolentino, é que já não há fogueiras em São Domingos.

JTM - Não vamos falar das fogueiras, porque infelizmente o fumo das fogueiras enche a história de todos os tempos. Nós estamos aqui, dois homens, a falar no século XXI. E é com a verdade do que vivemos e fazemos que nos temos de encontrar. Aqueles que pensam que são isentos do mal é que me metem medo!

JS - O cristianismo uma aventura de liberdade!? Dizer isso com os albigenses, as cruzadas, o santo ofício, as masmorras da inquisição, as fogueiras a arder e tudo isso...

JTM - Esquece que no tempo da Inquisição havia santos. Nos tempos dos albigenses e das masmorras não deixou o cristianismo de ser uma história de liberdade e humanidade. Você tem uma visão parcial do cristianismo!

JS - Não tenho.

JTM - Como leu o facto do papa João Paulo II ter pedido perdão...

JS - Não sou leitor do papa João Paulo II!

JTM - Não, mas soube, concerteza. Não pode escapar a esta questão. Porque lhe custa reconhecer que um Papa pode ter um gesto humanamente admirável? Porque lhe custa? Não cai do pedestal.

JS - Pontualmente não me custará nada reconhecer algo que de bom, de perfeito, de belo, Papa A, B, C ou D tenha feito.

JTM - Mas então diga o que achou do Papa João Paulo II ter pedido perdão pelos crimes e erros do passado, feitos em nome do cristianismo e da fé? O que acha desse gesto?

JS - Até agora, que eu saiba, deixaram no rol do esquecimento, por exemplo, uma figura como o Giordano Bruno. Porquê? Perdoou mais ou menos a Galileu. Mas Giordano Bruno foi levado à fogueira com um pedaço de madeira fixado na boca.

JTM - Mas o Giordano Bruno era um crente!

JS - É isso que a Igreja não suporta: quer crentes, sim, mas disciplinados.

JTM - Não é verdade. Dentro do Cristianismo, há muitos cristianismos.

JS - O rebanho que vai a Fátima é o que a Igreja quer!

JTM - Não sejamos generalistas, porque entre os milhares de pessoas que vão a Fátima há-de haver quem vá com um espírito de sinceridade e liberdade que nós nunca teremos. Não julguemos!

JS - Não perca tempo a dizer isso, porque eu sei que isso é assim, e respeito a crença e a fé.

JTM - A fé dos simples.

JS - Eu não toco nisso. O meu objectivo é outro: a Igreja como instituição de domínio, como poder, como castradora de algumas das virtudes naturais do homem.

JTM - Mas essa é uma posição, um olhar demasiado ideológico. A igreja não é assim!

JS - Mas porquê demasiado ideológico? Eu sou o único que tem ideologia? Você não tem?

JTM - Tenho! Tenho a ideologia e a pretensão cristã.

JS - Então por que se fala da minha?

JTM - Eu não o acuso de dominador ou de senhor do mundo.

JS - Mas eu também não o acuso a si. Mas posso acusar a instituição a que pertence.

JTM - Mas em que bases?

JS - A história do papado é algo de terrível, de simplesmente tenebroso. E você sabe-o perfeitamente.

JTM - O terrível da história, a experiência do mal e da ferida, está em todas as vidas. Não há nenhuma isenta. Não há vidas e instituições que não tenham sombra. Essa ideia que é preciso um manipulador por trás para se entender a Bíblia é uma ideia peregrina.

JS - Quando o manipulador não está imediatamente por trás, está um pouco mais atrás e mais atrás - mas está lá. Garanto que está.

JTM - Mas donde lhe vem essa desconfiança?

JS - Da história, da realidade, dos factos. Não lhe parece que vivemos numa sociedade altamente manipulada?

JTM - Eu acho que sim e que um espaço de liberdade é precisamente a complexidade dos textos fundadores, entre os quais se conta a Bíblia, que é um manifesto contra esta sociedade da manipulação.

JS - Mas ajudou muito.

JTM - As ajudas podem ser involuntárias. Não podemos culpar a Bíblia das leituras erróneas.

JS - Mas que ideia é a vossa de que eu culpo a Bíblia!?

JTM - São palavras suas! Voltou a ler as palavras que disse em Penafiel?

JS - Eu tenho um livro na mão, e é um livro cheio de violência, de carnificinas, incestos. Um manual de...

JTM - Mas toda a literatura é isso. Podemos dizer isso das obras completas de Shakespeare, ou das obras completas de Saramago.

JS - E o que é que eu resolvo com essa justificação?

JTM - A vida é literatura e a Bíblia usa aquilo que é próprio da literatura para fazer uma leitura crente da condição humana. Porque poucos lugares há, para além da literatura, capazes de espelhar a condição humana na sua inteireza. A Bíblia não é um código de direito, nem um livro de lógica.

JS - Mas foi-o. E sem esquecer o Deuterónimo!

JTM - Eu não percebo esse seu... Há um poema da Adília Lopes que dia que "a literatura não é um ajuste de contas, é um ajuste de cantos".

JS - Desculpe: esse verso é muito interessante, mas é um simples jogo de palavras.

JTM - Acha que a poesia é um simples jogo de palavras?

JS - Não torça aquilo que eu disse.

JTM - Estes versos são só um jogo de palavras?

JS - Não lhe permito que tire essa conclusão. O dístico que acabou de citar é um jogo de palavras. Que nós, escritores, fazemos muito, e muitas vezes com a má consciência de que não significa grande coisa, mas que soa bem e é bonito. Há pouco, disse que Deus está do lado da vítima. Efectivamente, Abel é uma vítima do irmão. E Caim, não é vítima de ninguém?

JTM - Todos somos vítimas.

JS - Que nós, simples humanos, sejamos vítimas e carrascos uns dos outros, muito bem. Agora, que Caim seja vítima de Deus, não há lógica no mundo, nem exegese, que o justifique.

JTM - Porque diz que Caim é vítima de Deus e não compreende que é uma leitura sapiencial que o livro do Génesis faz?

JS - O que é isso de uma leitura sapiencial?

JTM - A Bíblia é um teatro de Deus, uma reflexão sobre Deus.

JS - Um teatro de Deus? O que é que vocês sabem de Deus?

JTM - Nós sabemos de Deus o que Jesus de Nazaré nos revelou acerca de Deus!

JS - Não misturemos alhos com bugalhos. Não vale a pena! Repare nisto: antes da criação do universo, Deus, que se saiba, não fez nada. Não consta. Chegou um momento em que, não se sabe nem porquê nem para quê, decide formar o universo.

JTM - O mistério aflige-o sempre...

JS - Limito-me a verificar. Construiu um universo. Coisa que, durante muito tempo, pareceu relativamente fácil, mas a partir de Darwin já não é tão fácil - e com as novas descobertas científicas... Depois, ao sétimo dia, descansou e continuou a descansar até hoje - não teve mais participação.

JTM - Não é a opinião de milhões de seres humanos ao longo de gerações. Porque não é sensível à experiência que os outros vivem?

JS - Não! Eu, às vezes, digo que deus e o diabo só têm um lugar onde habitar: é na cabeça humana. Não há outro lugar em parte nenhuma do universo onde eles possam estar. Estão na nossa cabeça. Até mesmo na minha cabeça.

JTM - Essa é uma visão sua.

JS - Minha?

JTM - O que é estranho é o seu desejo de excluir a Bíblia, de fazer de contas que ela não existe.

JS - Como pode dizer isso a mim, que escrevi o "Evangelho Segundo Jesus Cristo" e, agora, o "Caim"? Eu sou aquele que diz que, embora seja ateu, estou empapado de valores cristãos.

JTM - Isso é muito bonito - e verdadeiro!

JS - Já o disse e repito-o em qualquer lugar. Mas isso não me impede de fazer juízos críticos sobre a religião.

JTM - No entanto, as suas entrevistas redundam facilmente numa caricatura. O que choca, por vezes, na sua linguagem, é o lado caricatural.

JS - Perdão: vocês merecem, tal como qualquer instituição, serem caricaturados. Vocês não estão acima da caricatura.

JTM - Nós não estamos, nem o José Saramago está.

JS - De acordo.

JTM - Mas é que, hoje, você tem muito mais força...

JS - Que a Igreja Católica?

JTM - Não! Isso não sei se é a sua ambição - mas não é a realidade. É preciso ver que a sua palavra tem uma responsabilidade social e civilizacional.

JS - Assumo-o totalmente.

JTM - Quando um homem de cultura diz que a Bíblia é um livro de crueldade, penso que isto, em termos civilizacionais, é um erro.

JS - É a sua opinião, não é a minha.

JTM - É um erro porque põe em xeque algumas das obras mais belas e extraordinárias que a nossa tradição cultural nos legou.

JS - Escute uma coisa: eu nunca neguei que a Bíblia é tudo isso que se diz dela. Claro que é.

JTM - Então diga alguma coisa bela da Bíblia. Fale com o coração!

JS - É quase uma simples questão estatística: milhões de exemplares da Bíblia lidos, estudados, aprendidos, decorados, em todo o mundo.

JTM - Ainda esta semana saiu mais uma tradução da Bíblia para português.

JS - Já tínhamos tantas! Porquê mais uma?

JTM - Dizer isso não parece uma coisa digna de si.

JS - Estou na brincadeira, homem!

JTM - Pois é! Está a ver? É que diz as coisas em tom jocoso, mas elas têm um alcance que não é justo. Você não pode dizer isso!

JS - O que me valeu foi ter escrito este livro donde a jocosidade não está ausente. Já o leu até ao fim?

JTM - Evidentemente que sim.

JS - Até ao dilúvio?

JTM - Até ao dilúvio e até a uma frase terrível com que o livro acaba, que é talvez uma das frases mais terríveis da literatura portuguesa: "A história acabou, não haverá nada mais que contar". Dá muito que pensar deste fecho definitivo da história. O exercício que faz, em si, é mais que legítimo. Mas a grande questão é que aquilo que diz, muitas vezes, é marcado por um exercício de intolerância.

JS - Eu, intolerante? Eu?

JTM - Todos podemos ser intolerantes. O José Saramago porque não pode ser intolerante? Todos podemos ser e todos certamente o somos.

JS - Se lhe quiser chamar radicalismo, aceito. Mas não intolerância. Não sou intolerante.

JTM - Aquelas declarações de Penafiel são declarações de intolerância.

JS - Não são nada!

JTM - Diz o José Saramago. É um manifesto de intolerância do ponto de vista cívico.

JS - Não é certo que o livro está cheio de crueldades? Que não lhe faltam incestos? Que tem isso e muito mais, e carnificinas de todo o tipo?

JTM - E acha que a Bíblia é só isso? Acha que descrevendo isso se descreve o que é a Bíblia? Acha que esquecendo tudo aquilo que a Bíblia é, que é também a sua natureza de milagre, está a ser tolerante? De que parábola é que gosta mais, das que Jesus contou?

JS - Talvez a do semeador. A semente que cai na pedra...

JTM - A Simone Weil dizia que entre dois homens que estão a discutir, um que crê e outro que não crê, o que não crê está mais perto de Deus do que aquele que crê.

JS - Oh diabo! Oh diabo!

JTM - Por isso é que o discurso cristão nunca pode ser um discurso de exclusão. Dizer que o cristianismo é sobretudo uma aventura de liberdade é para levar muito a sério. Ver o cristianismo do ponto de vista do poder, da força, da imposição, é um olhar possível, mas não faz justiça à radicalidade humana que o cristianismo foi semeando. Se quisermos fazer justiça à história, temos que perceber que o cristianismo está do lado dos heterodoxos, dos insubmissos, dos mártires, das vítimas, daqueles que não têm voz.

JS - Mas no que toca a vítimas, o cristianismo contribuiu com uma quota importante, não?

JTM - E chora e arrepende-se de todo o mal que fez.

JS - Desculpe, Tolentino, mas não demos por isso. Aqui, pelo menos, não chegou uma palavra que signifique isso. O que está a dizer são palavras de ouro, mas que provavelmente estão no seu desejo. Você desejaria que assim fosse.

JTM - Há tanta gente a dizer isto!

JS - Meu caro: não me tiram nem sequer um grama ou um átomo da minha raiva contra a instituição chamada igreja católica. Eu não sou nenhum ferrabrás, nem nenhum enviado do demónio. Mas o que merece crítica, pode contar com a minha pessoa. Ao contrário do que diz, eu não sou intolerante. Radical, sim. E a isso não renuncio. É uma atitude muito exigente, moralmente exigente, que me leva a insurgir-me contra o que não me parece bem.

JTM - Eu não digo que o José Saramago é intolerante. Digo que as suas palavras de domingo foram intolerantes, o que é uma coisa diferente. Ninguém está imune à intolerância. Talvez os momentos mais difíceis do cristianismo tenham sido aqueles em que, fechados em nós próprios, achámos que temos a razão, ou que não errámos, ou que estamos costurados no interior de uma certeza. Há palavras nossas que iluminam e outras que enegrecem. A sua postura ética, atitude moral, a sua intransigência, enobrece-nos a todos. É bom que um escritor seja exigente. Isto não significa que nas palavras que proferiu nós não víssemos uma limitação muito grande. E na forma como o seu romance está construído, há também zonas de ambiguidade, a começar pelo "livro dos disparates". A Bíblia é um grande património da humanidade, é um lugar onde todos nos encontramos. Pela primeira vez, todas as componentes da sociedade estão presentes numa grande narrativa literária, porque precisamente a Bíblia não exclui. A Bíblia é um coral de vozes humanas. E por isso é tão importante o papel de Caim - ele é o nosso irmão...

JS - Disse que é um coral, mas, sem querer ser frívolo - que não está nada na minha natureza, porque tomo tudo a sério -, com muitas desafinações.

JTM - Mas as desafinações fazem parte da história humana. É preciso amar a imperfeição!

JS - Não escrevi um livro sobre a Bíblia. Escrevi a partir de um episódio bíblico e construí uma história. Caim não foi um capricho de há uns meses, é algo que sempre me preocupou. A mim, a Bíblia permitiu-me escrever o que não estava dito - embora não tenha sido a primeira pessoa a fazê-lo.

JTM - Dizer isso é fazer um elogio extraordinário à Bíblia.

JS - Para terminar: escrevi, penso, alguns bons livros. No meu estado de espírito presente, considero este o meu melhor livro.

JTM - Tenho a humildade de não concordar. No conjunto da sua obra, este é um exercício, a par dos seus grandes livros.

JS - De exercício não tem nada, meu caro. Tire lá esses óculos e ponha outros, e leia-o como deve ser lido.

JTM - Li o livro com muita atenção e hei-de voltar a ele. Mas é uma narrativa que não tem a grande complexidade nem a invenção romanesca de outros romances. Mas percebo que esteja tremendamente ligado a este livro.

JS - Assim é. Dois homens de boa fé sempre se podem entender."

Versão integral do texto publicado na edição do Expresso de 24 de Outubro de 2009, 1.º Caderno, página 20 e 21.

Pilar del Río entrevistada por Daniel Benevides - "A musa veemente" (Revista Brasileiros 14/01/2014)

"A musa veemente"

"Pilar del Río, viúva de Saramago, fala sobre sua carreira de 40 anos de jornalismo e da vida ao lado do escritor"

Por Daniel Benevides (14/01/2014)

Pilar del Río... nas suas palavras

Recuperação da entrevista, respeitando o conteúdo existente no site brasileiros.com.br

Link original da entrevista,

"Pilar não poderia ser nome mais apropriado. Magra, alta, elegante, é ela quem sustenta, com disposição inabalável, a Fundação Saramago, em Lisboa. Antes, a espanhola de sobrenome Del Río (também apropriado, pois é muito fluente na fala e no raciocínio, rápido e certeiro como uma flecha) era o apoio imprescindível do marido, José, escritor de obras-primas, como Ensaio sobre a Cegueira e tantas outras, Prêmio Nobel em 1998.
Somados o senso de humor, a inteligência e a integridade de ambos, formavam um casal mítico, de um glamour romântico-intelectual comparável a Sartre e Beauvoir. Um casal de filme. Tanto que realmente o foram, pelas mãos sensíveis do diretor português Miguel Gonçalves Mendes. José e Pilar mostra a intimidade e o cotidiano de ambos em um período de dois anos, entre viagens e o refúgio na ilha de Lanzarote, para onde se mudaram em 1993.

“Eu quis assassinar o Miguel”, diz Pilar, ao lembrar uma das cenas em que ela não sabia que estava sendo filmada. Famosa pela veemência com que dá suas opiniões (mesmo brincando), Pilar sempre militou pelos oprimidos: seduzida pela igreja progressista, foi monja teresiana ao mesmo tempo que lia Marx. Lutou contra a ditadura de Franco em programas de rádio e TV, tendo participado ativamente do período de transição democrática na Espanha. Feminista ferrenha, ecologista e vegetariana, também defende com forte convicção causas polêmicas, como a legalização das drogas e a eutanásia.

Dividia as convicções de esquerda com Saramago, cuidava de sua agenda, montou sua biblioteca e traduzia suas obras para o espanhol. Eram diferentes em muitos aspectos, mas não no essencial; quando Saramago falava da mulher, poderia estar definindo-se a si mesmo: “A Pilar tem uma consciência muito clara sobre o mundo em que vive. (…) A injustiça, a indignidade, a falta de escrúpulos, a hipocrisia põem-na completamente fora de si”. Ao que completava, com a convicção de eterno apaixonado: “Tenho muitas razões para acreditar que o grande acontecimento da minha vida foi tê-la conhecido”.

De fato, quem conhece María del Pilar del Río Sánchez, nascida em Granada em 1950, fica impressionado com sua força. É assim por onde passa nas dezenas de seminários, feiras e conferências a que vai todo ano para divulgar a obra e as ideias de Saramago. E foi assim na Fliporto, em Olinda, onde ela conversou generosamente com a Brasileiros.

Brasileiros – Sabendo tudo o que você faz e sempre com tão boa disposição, fica inevitável perguntar: de onde tira tanta energia?

Pilar Del Río – É o meu jeito, sou assim, não paro nunca. Sou a mais velha de 15 irmãos, então sou muito ativa desde pequena. E detesto essa coisa que muita gente faz de dizer “não sei…”. Como não sabe? Se você quer algo da vida tem de saber tudo o que se passa a seu redor. Conheço jovens que dizem estar cansados com 20 anos… Como podem? Precisam dar a volta ao mundo três vezes para ficarem cansados. Durmo quatro horas por noite. É o suficiente.

Brasileiros – Você não é muito exigente consigo mesma?

P.D.R. – Sou e, ainda assim, não consigo ser a pessoa que eu deveria ser.

Brasileiros – E quem você deveria ser?

P.D.R. – Uma pessoa mais capaz, mais completa, mais útil. Não consigo. Tenho uma responsabilidade e um trabalho muito grandes, de ajudar a abrir portas para a obra de Saramago. Mas mesmo com todo o tempo que dedico à Fundação, sinto que meu papel é ínfimo. Meu grande pavor é que a dimensão fabulosa de Saramago – e não digo isso por adoração, mas por acreditar mesmo que sua obra é universal, admirável e necessária – se perca ou fique relegada a um espaço pequeno.

Brasileiros – E o que, para você, torna a obra de Saramago tão necessária?

P.D.R. – Acho que Saramago tinha um grande respeito pelo leitor, de forma que quem o lê se sente um ser humano mais inteligente.

Brasileiros – Não foi exatamente isso que você disse para ele quando o conheceu?

P.D.R. – Sim, e é verdade, ele desperta ideias e sensações que te fazem parar e dizer: por que não me ocorreu isso antes? Em sua obra está construída a possibilidade de um mundo que não precisa de poder e riqueza, um mundo que se faz simplesmente com honestidade e inteligência. Mas abdicamos disso todos os dias e não nos damos conta. Esvaziamos o edifício democrático. Nós, cidadãos, somos muito frágeis. E não nos damos conta de que se os governos são corruptos, é porque a sociedade é corrupta. Se um governo é indiferente, é porque a sociedade é indiferente. Os governos nascem da sociedade, não vêm de Marte

Brasileiros – Muita gente diz não ver mais distinção entre esquerda e direita, como é isso para você?

P.D.R. – Acho que as políticas econômicas de governos de esquerda e direita não se distinguem muito. Mas quero que haja governos de esquerda. Para mim, há muita diferença, por exemplo, que no Chile governe a Bachelet, e não o Piñera. Na Espanha, não é o mesmo para mim que governe o Partido Socialista ou o Partido Popular. Para os radicais de esquerda, é tudo a mesma merda. Para mim, não. Se as políticas econômicas não são distintas, há diferenças importantes nas políticas sociais.

Brasileiros – Conta um pouco da sua trajetória em rádio e TV.

P.D.R. – Comecei no rádio, e logo fui para a TV, sempre colaborando com a imprensa escrita. Era basicamente jornalismo político disfarçado de informação cultural, para enganar a censura. Fui crescendo até ganhar espaço nacional. Todas as ocasiões eram boas para colocar em evidência que existiam outras pessoas além dos franquistas, e outras formas de entender a vida. Fiz algumas reportagens que hoje me surpreendem: era ousada e não sabia…

Brasileiros – E fez também grandes entrevistas. Lembra de algumas?

P.D.R. – Entrevistei pessoas que nem podiam crer que existissem. Claro, sabia quem eram, mas descobria nelas mundos impressionantes. A verdade é que éramos militantes de uma forma de estar no mundo, tanto nós jornalistas, como artistas, políticos na clandestinidade, escritores… Sentíamos que estávamos criando um mundo distinto. Não havia objetividade jornalística, se tratava de abrir caminhos. Lembro da entrevista com (Miguel Ángel) Astúrias em Sevilha, e de haver contado como tinha sido a seu filho, que estava na guerrilha. Lembro de ter tido problemas por dizer que Neruda era comunista; lembro da gentileza de um escritor que colocou seu paletó em meus ombros e disse, com delicadeza, que minha blusa estava manchada com leite; lembro de subir ao trem que trazia Rafael Alberti do exílio, convidada pelo sindicato de ferroviários… Enfim, lembro de mil batalhas de quem já tem 40 anos de profissão. E nomes preciosos, como o escritor Manuel Vázquez Montalbán, cuja morte prematura dói todo dia. E claro, entrevistei escritores universais e magníficos como José Saramago e políticos interessantíssimos, de esquerda e direita, como Aldo Moro…

Brasileiros – Você falou também com admiração de Pilar Manjón e uma comandante zapatista…

P.D.R. – A comandante zapatista e Pilar Manjón, mãe de um jovem assassinado em um ato terrorista, falaram aos parlamentos do México e da Espanha, e as duas foram deslumbrantes, fizeram emudecer seus países, falaram com emoção e simplicidade dos assuntos mais importantes. Deram lições de dignidade, que nem quero nem posso esquecer nunca. Tampouco a alguns políticos da transição espanhola que entrevistei e dos que, em certos casos – Adolfo Suárez, Santiago Carrillo –, recebi confidências extraordinárias, como, por exemplo, o que intimamente haviam sentido diante da tentativa de golpe de Estado, ou quando o Partido Comunista foi legalizado. Creio que essas confidências justificam uma vida de jornalista.

Brasileiros – Lembra do período de monja teresiana? Do “ver, ouvir e não calar”? Como era a sua atuação?

P.D.R. – Fui teresiana porque sentia a urgência de ser útil. Conheci o funcionamento da Igreja, vivi o Vaticano II com expectativa que não correspondia à minha idade, aprendi sobre Santa Teresa, mas um dia me disseram que eu estava empenhada em viver de uma forma que não me deixava feliz. Pode-se dizer que me recomendaram a felicidade; acho que ninguém jamais foi despedido com tanta elegância. Anos mais tarde me dei conta de que tinham razão.

Brasileiros – Você participa ativamente na escolha dos vencedores do Prêmio Saramago?

P.D.R. – Participo como os outros jurados, lendo os livros que chegam e tendo de optar por um, o que é terrível, pois vários merecem o prêmio… Sei o quanto é importante ganhar esse prêmio para os autores, pois dá a eles nome e prestígio. Me dá muito orgulho ver como a literatura em português está se renovando e que José Saramago está por trás disso tudo, com sua generosidade sem limites.

Brasileiros – Em linhas gerais, de que livros é composta a Biblioteca Saramago?

P.D.R. – A biblioteca geral está em Lanzarote, na Espanha. Em Lisboa, só há uma seleção que José Saramago deixou em seu escritório pessoal, quando se construiu o edifício que abrigaria a biblioteca na ilha. Tem de tudo: as leituras de uma vida – ou de duas vidas, porque estão meus livros em espanhol –, os livros que os amigos iam mandando, os comprados com dificuldade por causa da censura ou da falta de recursos e os mais recentes, os utilizados para pesquisa, os dicionários, os livros de História e Filosofia, os de entretenimento, os lidos várias vezes e os que nunca foram abertos… Não é uma biblioteca valiosa do ponto de vista acadêmico, simplesmente está cheia de vida porque José Saramago dizia que cada livro traz dentro de si uma pessoa, portanto é uma reunião de gente, que eu quis preservar assim para que quem a visite ouça as vozes desses autores que nos chamam.

Brasileiros – Você já declarou que escreve para “queimar a página”. É uma mulher de paixões fortes, a quem muitos atribuem qualificativos como firme, veemente, inflexível, corajosa e com senso de humor agudo. Nunca teve momentos em que fraquejou ou viu-se perdida em dúvidas?

P.D.R. – Não passa um dia que eu não tenha dúvidas sobre tudo. E são dúvidas tão profundas que não se podem resolver, eu nem sequer comento com ninguém. A segurança que eu aparento vem de saber que tenho de terminar um projeto que tem a ver com uma cultura, uma língua e um país. E que esse projeto foi encomendado a quem não pertence a essa cultura nem a essa língua – ao país sim, pois pedi a nacionalidade portuguesa. Sei o que é a solidão do corredor de maratona. Quanto ao humor… Sobretudo, rio de mim mesma o dia inteiro. E isso ajuda muito!

Brasileiros – Para você, não havia diferença entre o Saramago sujeito e sua obra. Como tradutora, você se põe na margem oposta, invisível.

P.D.R. – Que o autor queira ou pretenda ser invisível é algo em que não acredito. Os autores estão sempre presentes em suas obras. Não é que contem suas vidas, muitas vezes anódina, mas são a matéria central de seu trabalho, seja narrando adultérios, viagens à Lua ou desmistificando os livros sagrados. Quem tem de estar invisível, ainda que tenha de entregar-se ao texto 100% é o tradutor, que será sempre um alquimista desconhecido e sofredor, pois sabe que nunca conseguirá transformar ouro em ouro, no máximo em prata…

Brasileiros – E como começou a traduzir Saramago?

P.D.R. – Eu havia traduzido várias edições de Os Cadernos de Lanzarote, conferências, O Conto da Ilha Desconhecida, cartas e teatro. Comecei a traduzir os romances porque o tradutor Basilio Losada teve um problema com a vista, enquanto traduzia Ensaio sobre a Cegueira. E não deixei escapar a ocasião. (Leia comentários sobre as traduções ao lado.)

Brasileiros – Qual, afinal, é a cena do filme José e Pilar que você detesta tanto? A da cozinha?

P.D.R. – Essa cena me dá tanta raiva que não quero nem comentar, mas não é a da cozinha. Tenho raiva de mim mesma de não ter colocado limites… Consequências da liberdade.

Brasileiros – O que espera da Fundação para os próximos anos?

P.D.R. – Fazer com que a sede, a Casa dos Bicos, decole como um foguete. Chegar a todos os leitores do mundo, com os livros de Saramago e também com a revista eletrônica Blimunda, que editamos. Conseguir convencê-los de que ou assumimos nossos deveres como seres humanos ou perderemos os direitos, que temos o dever de exigir os direitos. Quero convencer os investidores do Brasil que apoiar a cultura e o conhecimento é também lucrativo e espero que me chamem. Quero que a Fundação, tanto em Lisboa como a Casa de José Saramago, em Lanzarote, construa pontes. Quero ver, da Fundação, como se espalha a generosidade de José Saramago, que compartilhava tudo."


TRADUÇÕES COMENTADAS

TODOS OS NOMES
“Primeiro impacto. Vivi a tradução em estado de medo permanente. Perdi 30 páginas que não pude recuperar. A estupidez cometida me deprimiu tanto que até saí de Lanzarote para esquecer e fiquei com minha mãe em seu povoado. Quando voltei a traduzir, me dei conta de que continuava com as mesmas dúvidas. O lançamento em 
Madri ficou a cargo de um grande jornalista, que elogiou o trabalho, à parte considerar o romance um monumento. Nesse dia, consegui respirar depois de um ano sufocada.”

ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ 
“O livro de minha militância, o épico de quem, nesses dias, não se resigna. Um livro para ser lido nas faculdades e nas fábricas. Um livro indispensável para saber que nós, cidadãos, somos o centro do mundo. Um orgulho tê-lo traduzido.”

CLARABOIA
“Esperei até o 12 de dezembro de 2010, à meia-noite, para traduzir a última página. Fiquei o resto de minha vida acompanhada pela voz de José Saramago. Esse era seu primeiro livro, mas também nossas últimas conversas. Quem disse que a sensibilidade não se prolonga depois da morte? Nunca deixei de sentir essa companhia.”

CAIM
“Também um grito: José Saramago não queria morrer sem ter dito tudo. Disse aqui o que pensa das organizações religiosas e dos que utilizam o medo dos seres humanos para dominá-los. Quando assinei a tradução, estava também assinando o grito e a rebeldia de José Saramago.”

VIAGEM DO ELEFANTE 
“José Saramago havia escapado da morte. Escrever esse livro era um sinal de vida. E a tradução, uma celebração dessa vida: cada linha, cada palavra era um grito de triunfo: sim, conseguimos, estamos aqui, vivos, pensando, compartilhando.”

(Todos os livros são da Companhia das Letras.)

"Uma inesgotável esperança" - Obra conjunta de José Saramago e Antoni Tàpies para Elkarri

"Presentación de la obra conjunta de José Saramago y Antoni Tàpies para Elkarri"
Barcelona, 12 de marzo de 2005

José Saramago e Antoni Tápies

Artigo para consulta, via Elkarri


 Introducción

«Por la irreversibilidad»

"Elkarri ha presentado hoy en el Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona una obra conjunta de José Saramago y Antoni Tàpies cuyo motivo es apoyar la lucha de la sociedad vasca por hacer irreversible un tiempo de paz, diálogo y soluciones Elkarri ha presentado hoy en el Convent dels Àngels del Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona una obra conjunta de José Saramago y Antoni Tàpies con la presencia de los dos creadores y de un amplio abanico de personalidades políticas y del ámbito socio cultural, entre las que cabe destacar el Conseller en cap, Josep Bargalló; el Lehendakari, Juan José Ibarretxe; el President del Parlament, Ernest Benach; el Conseller de relaciones institucionales, Joan Saura; la vicepresidenta del PSC, Manuela de Madre; el vicepresidente segundo de la Mesa del Congreso de los Diputados de CiU, Jordi Vilajoana; el secretario general de ERC, Josep-Lluís Carod-Rovira; y el senador y vicepresidente de ICV, Jordi Guillot.
El acto, que ha sido presentado por Anna Sallés, Profesora de Historia Contemporánea de la Universidad Autónoma de Barcelona y mujer de Manuel Vázquez Montalbán, escritor fallecido y gran colaborador de Elkarri, ha contado con las intervenciones del coordinador general de este movimiento social, Jonan Fernandez, y del Premio Nobel de Literatura, José Saramago, así como con los saludos institucionales del President del Parlament, del Conseller en cap y del Lehendakari.
En octubre del pasado año, Elkarri propuso a Antoni Tàpies y José Saramago que prestasen, el primero, una obra gráfica y, el segundo, un breve texto para participar en esta iniciativa. Los dos autores respondieron positivamente y ofrecieron su aportación artística para colaborar con el trabajo de este movimiento social. El título de la obra conjunta de José Saramago y Antoni Tàpies es «Por la irreversibilidad» y su motivo es apoyar la lucha de la sociedad vasca por hacer irreversible un tiempo de paz, diálogo y soluciones. Es un homenaje a su exigencia y a su esperanza.
La edición de esta obra constituye una única iniciativa pero está compuesta de dos proyectos diferenciados. Por un lado, la edición limitada, que se ha presentado hoy, de dos láminas serigrafiadas, una con la obra de Tàpies y otra con la de Saramago. Por otro lado, la edición popular y masiva de un cartel que integrará las obras de ambos artistas y que se presentará y divulgará a partir de mayo.
La edición limitada está compuesta de 60+XV copias de dos láminas serigrafiadas, numeradas y firmadas por los autores, que reproducen un texto de José Saramago (Esperanza inagotable, 2004) y una obra gráfica de Antoni Tàpies (sin título, 2004). Las obras se han serigrafiado mediante técnica manual en el Taller de serigrafía de Arteleku por Nerea Zapirain y se presentan en una carpeta diseñada por Zut. La estampación se ha realizado en papel artesanal de 300 grs/m2, hecho a medida por Eskulan. La composición del papel es de 90% algodón y 10% lino. Su tamaño es de 544x444mm. Esta carpeta se ha editado en febrero de 2005 por Elkarri y ha contado con la estrecha colaboración técnica de la Fundació Antoni Tàpies y del Centro Arteleku de la Diputación Foral de Gipuzkoa.
A través de esta iniciativa, Elkarri se propone alcanzar dos objetivos. Con la edición limitada, obtener fondos para impulsar los proyectos por el diálogo y la paz de este movimiento social. Con la edición popular y mediante una iniciativa de gran impacto cultural y creativo, difundir masivamente ese mensaje concreto de nuestra sociedad que exige hacer irreversible un tiempo de paz, diálogo y soluciones. En definitiva, difundir cultura de paz mediante dos obras de arte. Intervención de Jonan Fernandez, Coordinador de Elkarri «Nuestra sociedad está exigiendo un compromiso irreversible, irrevocable, definitivo, inmediato... con un nuevo tiempo de no violencia, diálogo y soluciones»."

As artes de Antoni Tàpies e José Saramago, patentes na Fundação José Saramago

"Uma inesgotável esperança"
"É certo que existe uma terrível desigualdade entre as forças materiais que proclamam a necessidade da guerra e as forças morais que defendem o direito à paz, mas também é certo que, em toda a História, só pela vontade dos homens a vontade doutros homens pôde ser vencida. Não é com forças transcendentes que teremos de confrontar-nos, mas sim, e apenas, com outros homens. Trata-se, portanto, de tornar mais forte a vontade de paz que a vontade de guerra. Trata-se de participar na mobilização geral da luta pela paz: é a vida da Humanidade que assim estaremos defendendo, esta de hoje e a de amanhã, que talvez se perca se não começarmos a defendê-la agora mesmo. A Humanidade não é uma abstracção retórica, é carne sofredora e espírito ansioso, e é também uma inesgotável esperança. A paz é possível se nos mobilizarmos para ela. Nas consciências e nas ruas."
José Saramago


Serigrafia de Antoni Tàpies

Link para a Fundació Antoni Tàpies, em http://www.fundaciotapies.org/site/spip.php?rubrique65


Texto de José Saramago