Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

José Saramago escreve texto para livro sobre Mário Soares e a cultura (Cadernos de Lanzarote Diário III - 19/11/95)


1989 - José Saramago com Mário Soares, na apresentação do seu livro 
"História do Cerco de Lisboa", no Castelo de São Jorge - Lisboa (Foto © Eduardo Tomé)

19 de Novembro (1995)
Para um livro que vai ser publicado, sobre Mário Soares e a cultura, escrevi o seguinte: 
«Cinco milhões e meio de analfabetos funcionais num País de dez milhões de habitantes são pesadelos a mais para qualquer governante, e em particular para um presidente da República, uma vez que ele está obriga-do a ser, por propósito, quando não por definição, presidente de todos, ou, com mais rigor, presidente para todos. Na hora de deixar por imperativo constitucional a função mais alta do Estado, que durante dez anos desempenhou, o presidente Mário Soares irá provavelmente fazer o balanço da sua magistratura, ponderando os acertos e os erros, os seus próprios, decerto, mas também os do País que é o seu, sem esquecer as ilusões perdidas e as frustrações mais ou menos dolorosas que são a expiação de todo o homem, seja ele presidente ou cidadão comum. Um tal balanço, para ser completo, não poderá ignorar o que foi a acção política anterior de Mário Soares, isto é, desde a revolução que nos trouxe a liberdade e a possibilidade duma democracia até à primeira eleição que o tornou presidente. Em tudo aquilo que é hoje Portugal, encontra-se, mais do que qualquer outra, a marca indelével, positiva ou negativa, em branco ou em cinza, da pessoa de Mário Soares e das suas ideias e práticas políticas, tanto no plano nacional como europeu. Esse balanço político, que ardentemente desejo poder ouvir ou ler, em caso algum deverá representar um adeus à vida pública. Tal como o entendo, representaria, isso sim, a assunção do significado pessoal e público de uma vida que ininterruptamente tem acompanhado, e em não poucos momentos determinou de forma decisiva, o rumo da vida colectiva portuguesa. Representaria, igualmente, o modo mais aberto e generoso de avançar no caminho onde mais me agradaria encontrá-lo a partir do dia em que deixe o cargo de presidente da República e os seus condicionamentos constitucionais, tácticos ou apenas prudentes: a luta, como simples e pedestre cidadão, pela sobrevivência cultural de Portugal. 
«Por mais que às orelhas nos gritem os pregoeiros da chamada modernização, quase todos eles meros adventícios deslumbrados pelo exercício de um poder afinal mais fácil do que imaginavam, a nossa terra está doente de gravidade, como doente também o está a nossa democracia, tão levianamente invocada quando se trata de chamar ao voto. Aqueles cinco milhões e meio de analfabetos funcionais, conviria não esquecer, são, na sua grande maioria, eleitores. Eleitores que vão votar sem terem percebido com suficiente clareza o conteúdo real das propostas políticas, sociais e económicas dos partidos, eleitores a quem, quantas vezes, porque honestamente não se lhes poderia aplaudir a consciência da opção, baixamente se lhes vai lisonjeando o instinto, como se o não saber fosse, afinal, uma expressão superior de sabedoria. Não faltam a Portugal problemas, mas o menor não é decerto a questão cultural colectiva, isto é, nacional, diante de cujas dimensões perde algum sentido, por exemplo, a habitual e interminável discussão sobre os dinheiros públicos destinados a subsidiar o teatro, o cinema ou a ópera. A doença está na raiz. As folhas, quando murchas, os frutos, quando desenxabidos, representam somente os sinais mais evidentes do mal profundo que nos está corroendo. 
«A cultura portuguesa, aquela que, segundo a gíria tecnocrática destes tempos, se veio processando e desenvolvendo nos níveis superiores da criação artística e literária e da investigação científica, teve sempre em Mário Soares, enquanto presidente da República, não apenas o observador atento a que em todos os casos o cargo estava obrigando, mas a presença calorosa e interveniente de alguém que, por vocação e exercício, é, e foi sempre, um homem de cultura. A partir da hora em que deixar o palácio de Belém, Mário Soares não terá mais de cumprir o dever protocolar, mas para ele sempre grato, de proferir discursos, inaugurar congressos e entregar prémios. Deixará os palcos e as cadeiras de espaldar alto, tornar-se-á num simples cidadão português entre cidadãos portugueses. Rendo homenagem, como escritor que sou, a esse presidente da República para quem a cultura nunca foi palavra vã nem pretexto demagógico. E, como cidadão que acima de tudo me prezo de ser, apelo ao cidadão Mário Soares para que, a partir daquele dia, já liberto de travas institucionais, ponha o seu prestígio pessoal e a sua influência cívica ao serviço da batalha por uma educação e por uma formação seriamente entendidas. É o futuro dos Portugueses que está em causa. Por muito importantes que sejam as memórias políticas que Mário Soares venha a escrever, é ainda para o futuro do País que deverá olhar. Será uma maneira também de continuar a ser presidente. A melhor de todas.» 
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 201 a 203 (19 de Novembro de 1995)

"O conto burocrático do capitão do porto e do director da alfândega"

Segundo José Saramago relata em "Cadernos de Lanzarote Diário IV" (página 13, 7 de Janeiro de 1996), este conto tem origem numa ideia de Ângela Almeida, onde teria sido abordada uma situação real de excesso de trabalho (anteriormente mencionado nos "Cadernos de Lanzarote Diário I", página 11, de 15 de Abril de 1993), e transmitida num encontro de escritores em Ponta Delgada, por volta dos anos de 1986 ou 87.
Foi originalmente enviado como texto de homenagem ao professor Césare Acutis, da Universidade de Turim - Itália, a pedido de Pablo Luis Ávila, e cuja obra onde foi inserido com textos e testemunhos de outras personalidades, teve o título de "Claridade Alarmada". 
Posteriormente, o conto foi revisto e melhorado, referindo José Saramago «aproveitei a ocasião para o limpar de redundâncias, tropeços, inutilidades, palhadas e outras excrescências», será publicado na revista da Associação Portuguesa de Escritores, por intermédio de José Manuel Mendes.
Rui Santos


"O conto burocrático do capitão do porto e do director da alfândega"
«Quando o capitão do porto entrou no gabinete e viu em cima da mesa a folha de papel azul, acenou ligeiramente com a cabeça e fez uma cara que qualquer observador, mesmo desconhecendo antecedentes e razões, não teria dúvidas em qualificar de irónica, como se a simples presença daquele papel tivesse acabado de confirmar certas gozosas e de antemão saboreadas expectativas. Sentou-se à secretária, e o seu primeiro gesto, após ter esticado as mangas do casaco da farda e sacudi-do das reluzentes divisas um pó invisível, foi afastar para o lado a folha de papel. Depois, metodicamente, examinou e assinou documentos, fez e atendeu chama-das telefónicas, deu instruções e ordens aos funcionários da capitania, recebeu e conversou com dois comandantes de barcos fundeados no porto, e, chegada a hora, foi almoçar a casa, como sempre. No fim, a mulher, enquanto deitava o café nas chávenas, perguntou-lhe se já tinha dado despacho ao requerimento, ao que ele respondeu que trataria disso à tarde. Com efeito, de volta ao escritório, o capitão do porto, depois de sentar-se e repetir os gestos de puxar as mangas e espoar as divisas, pegou no papel que de manhã repelira e, sem dar-se ao trabalho de o ler, apurando uma caligrafia arejada e redonda, própria de marinheiro, que contendia com a letrinha miúda e arrastada do requerimento, escreveu, Tendo em conta a manifesta inoportunidade de um pedido que parece ignorar cientemente a precária situação dos serviços, desfalcados de pessoal, indefiro. Tocou a campainha e disse ao marinheiro que fazia de contínuo, Vai à alfândega e põe isto na secretária do director. Quando, horas mais tarde, terminado o trabalho, o capitão do porto regressou a casa, a mulher tornou a perguntar-lhe, Despachaste, e ele respondeu, Despachei. Não disse como, porque, em seu entender, comprovado por uma longa experiência, a separação de funções implica que em caso algum o conhecimento dos factos seja antecipado ao momento do seu efectivo acontecer, pois de contrário se alteraria perigosamente a harmonia consequente do mundo, a qual, entregue à irreflexão e ao arbítrio, não sobreviviria por muito tempo. 

«No dia seguinte, o director da alfândega entrou no seu gabinete e, vendo o requerimento, sentiu uma pancada no coração. Sabia que não eram boas as notícias do despacho. Como uma vela cheia de vento, curva e tensa, o desenho caligráfico do capitão do porto, lançado de través no papel e dominando a escrita rasa do peticionário, era a imagem duma armada vencedora, pairando soberbamente à vista dos destroços flutuantes do cargueiro inimigo. O director da alfândega não precisou de ler a fundamentação do despacho, olhou apenas a ominosa palavra, Indefiro. Num rompante de ira, atirou o papel para o chão, de onde logo, humilde, o foi recolher. Depois, fazendo por não pensar na sorte que o obrigava, sendo director, a ser também subordinado, deitou mãos ao trabalho, acumulado desde o dia anterior. Consultou pautas, aplicou percentagens, calculou taxas, deu instruções e ordens, recebeu dois exportadores descontentes e um importador agradecido, mandou dizer a um despachante que voltasse daí a dois dias, e, chegada a hora, foi almoçar a casa, como sempre. Mal entrou a porta, perguntou-lhe a mulher, Então, e ele respondeu, Indeferido, Queres dizer que não vamos para férias, Exactamente, não vamos para férias, E porquê, Porque estamos com falta de pessoal na alfândega e na capitania, Tu não pertences à capitania, és director da alfândega, Pois sou, mas na escala hierárquica da administração o capitão do porto está acima do director da alfândega, E agora, Vamos ter de esperar que a situação melhore, E entretanto não haverá férias, Sim, não haverá férias, E a ti parece te isso bem, Não me parece bem nem mal, provavelmente teria feito o mesmo se estivesse no lugar dele, Por que não lhe escreves uma carta simpática, falando-lhe aos sentimentos, que estás muito cansado, que a tua mulher andava a sonhar com estas férias, coisas neste estilo, Não creio que dê resultado, mas posso tentar. Assim fez. Regressado à alfândega, avisou o contínuo de que durante a próxima hora não estaria para ninguém, depois fechou-se no seu gabinete de director e pôs-se a escrever. Não uma carta, mas várias, porque não gostou das primeiras redacções, pareceram-lhe frouxas, sem nervo, pouco persuasivas, e se nem mesmo a si, que as escrevia, o convenciam, menos capazes ainda seriam de levar o capitão do porto a mudar de ideias. Deu-se por satisfeito, finalmente, quando, estremecido de pura compaixão da sua pessoa, sentiu que os olhos se lhe iam humedecendo à medida que as palavras fluíam da alma magoada. Só se o capitão do porto tivesse uma pedra no lugar do coração, é que não se deixaria abalar. Dobrou a carta, meteu-a num sobrescrito e chamou o contínuo, Vá à capitania e ponha isto na secretária do capitão. Depois, sozinho, recostou-se no espaldar da cadeira e deixou-se levar pela imaginação até ao sítio das desejadas férias, pois queria acreditar que, diante de uma carta tão repassada de humildade, pungente, desgarradora até, o capitão do porto, de puro enternecimento, anularia o primeiro despacho e deferiria o pedido. Em casa, a mulher, mesmo sem ler a carta, era da mesma opinião e partilhava a mesma esperança, e, para adiantar, começou a fazer as malas.

«O director da alfândega tinha razão, mas só até um certo ponto. De facto, no dia seguinte, o capitão do porto não pôde segurar duas lágrimas enquanto ia lendo a carta, é certo que foram só duas, mas, tratando-se de um oficial, o efeito é digno de nota. Se a comoção durou mais do que o tempo estritamente necessário para enxugar os olhos, não se sabe, mas a mão não lhe tremeu quando, por sua vez, escreveu as palavras que iriam fazer murchar e secar a tímida flor de esperança do director da alfândega. Que não, que sentia muito, que ninguém melhor do que ele compreendia a situação, mas o dever do cargo e a responsabilidade das duas funções não lhe permitiam faltar à justiça e ignorar a letra e o espírito das leis e regulamentos atinentes, que, nestas circunstâncias, como em todas, exigem ao serviço público a dignidade exemplar que representa o sacrifício dos interesses particulares em aras do bem comum. Por estas razões, e embora lamentando o transtorno, confirmava o despacho e mantinha o indeferimento. Mandou levar a carta ao gabinete do director da alfândega e, desgostoso, foi para casa mais cedo. A mulher estranhou, preocupou-se, Não me digas que estás doente, agora que o director da alfândega tirou férias, e ele respondeu, Nem eu estou doente, nem o director da alfândega irá para férias, Mas então, a carta, Fez-me muita pena, mas os regulamentos existem para serem cumpridos, eu apenas sou a mão com que a lei assina as sentenças, Achas que se conformará, Não terá outro remédio, rematou o capitão do porto. Fez uma pausa, e depois disse, Vou-me deitar um bocado, talvez possa dormir, e enquanto durmo, esqueço, Espera um pouco, deixa-me desfazer as malas primeiro. 

«O director da alfândega, no dia seguinte, reagiu com uma carta furibunda em que, começando por acusar o capitão do porto de falta de solidariedade institucional, terminava perguntando-se, com ironia fingida, e sem medir as distâncias, se ele, capitão, não seria um caso clínico, agudo, de mania das grandezas, Subiram-lhe os galões à cabeça, julga-se almirante, rematava. O capitão do porto, ofendido na sua autoridade, não levou a bem a impertinência. Em nova carta, ameaçou o director da alfândega com processo disciplinar, castigo, suspensão, mas foram penas perdidas, porque o director retorquiu-lhe com insolência, Suspenda, suspenda, que será a maneira de eu ir mesmo de férias. Não houve, portanto, processo disciplinar, e a azeda troca de correspondência continuou. A partir de certa altura, o motivo inicial do desacordo deixou de ser referido, de férias não se falou mais, as cartas, tanto de um lado como do outro, passaram a encher-se de acusações, de denúncias de erros antigos e recentes, de faltas, uma história completa de desmazelos burocráticos, e, pior do que isto, primeiro por insinuações, depois com aberta exibição das provas, de actos de corrupção activa e passiva cometidos pelas duas partes no exercício das suas funções, De onde é que lhe veio o dinheiro para comprar o automóvel, De onde é que lhe veio o dinheiro para fazer a casa. Tanto o capitão do porto como o director da alfândega andavam de cabeça perdida, na febre de escrever cartas até se lhes tinha alterado a caligrafia, a do capitão era agora rasa, miudinha, a do director altaneira e desafiadora. Em casa, os beligerantes desabafavam com a mulher, Aquele capitão merecia era ir para a cadeia, Aquele director devia era estar no manicómio, mas as respostas que ela dava, se bem que proferidas com intenção e inflexão diferentes, eram, palavra por palavra, iguais, Tudo por causa de umas férias, ao que o capitão ripostava, Não, tudo por causa de um indisciplinado, e o director, Não, tudo por causa de um autoritário. Em tentativa que iria ser a última, o director da alfândega mudou de tom. Tarde de mais, se diria, se alguma vez a obstinada resistência do capitão do porto pôde ter sido demovida. Ao tom novamente implorativo do director, respondeu o capitão com uma só palavra, seca e definitiva, Arquive-se. 

«Então, o director da alfândega suicidou-se. A caminho do cemitério, o préstito fúnebre deteve-se durante dois minutos diante dos edifícios da capitania e da alfândega. Em um e outro as bandeiras estavam a meia haste, e, às janelas, os marinheiros e os funcionários civis, que por obrigação de serviço não podiam acompanhar o féretro, despediam-se do seu chefe. Acabrunhada pelo inesperado luto, a mulher fora aconselhada a ficar em casa. Quando as amigas se retiraram, deixando muitas recomendações de resignação e paciência, foi reler o bilhete de despedida do marido. Dizia assim, simplesmente, Agora já podes ir de férias, o capitão nunca mais indeferirá requerimentos. Então, a pensar que vestidos conviria tingir de preto, a viúva abriu o guarda-fato. Ali estava, com os galões reluzindo, a farda do capitão do porto.» 

"Problema de Homens" texto de José Saramago a propósito da violência contra as mulheres (Obvious Mag.)

Artigo completo publicado, aqui
em http://lounge.obviousmag.org/desmistificador_de_dalias/2015/03/problema-de-homens-por-saramago.html
Autoria de J. Douglas Alves, e publicado na Obvious (link geral http://obviousmag.org/)

(Desenho de Vitor Teixeira, inserido no trabalho que se publica - 2015)

"Problema de Homens (por José Saramago)"
"Vejo nas sondagens que a violência contra as mulheres é o assunto número catorze nas preocupações dos espanhóis, apesar de que todos os meses se contem pelos dedos, e desgraçadamente faltam dedos, as mulheres assassinadas por aqueles que creem ser seus donos. Vejo também que a sociedade, na publicidade institucional e em distintas iniciativas cívicas, assume é certo que só pouco a pouco, que esta violência é um problema dos homens e que o homem tem que resolver.

De Sevilha e da Estremadura espanhola chegaram-nos, há tempos, notícias de um bom exemplo: manifestações de homens contra a violência. Até agora eram somente as mulheres que saíam à praça pública a protestar contra os contínuos maus tratos sofridos às mãos dos maridos e companheiros (companheiros, triste ironia esta), e que, a par de em muitíssimos casos tomarem aspectos de fria e deliberada tortura, não recuam perante o assassínio, o estrangulamento, a punhalada, a degolação, o ácido, o fogo.

A violência desde sempre exercida sobre a mulher encontrou no cárcere em que se transformou o lugar de coabitação (neguemo-nos a chamar-lhe de lar) o espaço por excelência para a humilhação diária, para o espancamento habitual, para a crueldade psicológica como instrumento de domínio.
É o problema das mulheres, diz-se, e isso é verdade. O problema é dos homens, do egoísmo dos homens, do doentio sentimento possessivo dos homens, da poltronaria dos homens, essa miserável covardia que os autoriza a usar a força contra um ser fisicamente mais débil e a quem foi reduzida sistematicamente a capacidade de resistência psíquica.

Há poucos dias, em Huelva, cumprindo as regras habituais dos mais velhos, vários adolescentes de treze e catorze anos violaram uma rapariga da mesma idade com uma deficiência psíquica, talvez por pensarem que tinham direito ao crime e á violência. Direito de usar o que consideravam seu. Este novo ato de violência de género, mais os que se produziram neste fim de semana, em Madrid uma menina foi assassinada, em Toledo uma mulher de 33 anos morta diante de sua filha de seis anos, deveriam ter feito sair os homens à rua. Talvez 100 mil homens, só homens, nada mais que homens, manifestando-se nas ruas, enquanto as mulheres, nos passeios, lhes lançariam flores, este poderia ser o sinal de que a sociedade necessita para combater, desde o seu próprio interior e sem demora, esta vergonha insuportável. E para que a violência de género, como resultado de morte ou não, passe a ser uma das primeiras dores."

Nota sobre a origem do texto, publicado no link mencionado
"Texto transcrito da Revista Mátria, Ano 8, Vol. 1, n. 8, março de 2010 (que, por sua vez, transcreveu da Revista Presença da Mulher, ano XXII, nº 57, setembro/2009)."

Documentário "Levantado do Chão" - Um testemunho a revisitar...

O documentário pode ser visualizado, via YouTube, aqui

Sinopse do documentário
"Documentário inédito sobre a vida e obra do Prémio Nobel da Literatura, José Saramago. No dia em que se assinalam os dez anos da atribuição do primeiro Prémio Nobel da Literatura da Língua Portuguesa, a RTP exibe um documentário que retrata o percurso singular do escritor José Saramago, que se afirma "pessimista pela razão, otimista pela vontade". Durante quase um ano, uma equipe da RTP reconstitui os pontos cardeais em que a vida e obra de Saramago se fundem, num trabalho que aborda a história do escritor português mais lido e conhecido do mundo. Mais do que uma biografia, este documentário pretende dar a conhecer ao grande público os momentos decisivos da vida de um homem que aos cinquenta e três anos não era ainda escritor. Filho e neto de camponeses sem terra, José Saramago imigrou para Lisboa com dois anos.

Tradução de Margaret Jull Costa 
Capa da edição, pela Vintage Books, Harvill - Reino Unido

Grande parte da sua vida decorreu na capital, que serve de cenário a alguns dos seus romances. Mas durante a adolescência, foram muitas e prolongadas as suas estadias na aldeia natal, Azinhaga, Golegã, que o marcou para toda a vida. Ficou célebre, o discurso que Saramago proferiu há dez anos na entrega do prémio Nobel, evocando com emoção os avós Jerónimo e Josefa, que dormiam com porcos na cama, única forma de sobreviverem todos. José Saramago frequentou o liceu e a escola industrial mas, por dificuldades económicas, não pôde prosseguir os estudos. É um homem "Levantado do Chão", título de uma das suas obras, e título escolhido também, para este documentário. O seu primeiro emprego foi de serralheiro mecânico e neste trabalho reencontramos a oficina dessa época assim como ex-colegas de ofício."