Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"O conto burocrático do capitão do porto e do director da alfândega"

Segundo José Saramago relata em "Cadernos de Lanzarote Diário IV" (página 13, 7 de Janeiro de 1996), este conto tem origem numa ideia de Ângela Almeida, onde teria sido abordada uma situação real de excesso de trabalho (anteriormente mencionado nos "Cadernos de Lanzarote Diário I", página 11, de 15 de Abril de 1993), e transmitida num encontro de escritores em Ponta Delgada, por volta dos anos de 1986 ou 87.
Foi originalmente enviado como texto de homenagem ao professor Césare Acutis, da Universidade de Turim - Itália, a pedido de Pablo Luis Ávila, e cuja obra onde foi inserido com textos e testemunhos de outras personalidades, teve o título de "Claridade Alarmada". 
Posteriormente, o conto foi revisto e melhorado, referindo José Saramago «aproveitei a ocasião para o limpar de redundâncias, tropeços, inutilidades, palhadas e outras excrescências», será publicado na revista da Associação Portuguesa de Escritores, por intermédio de José Manuel Mendes.
Rui Santos


"O conto burocrático do capitão do porto e do director da alfândega"
«Quando o capitão do porto entrou no gabinete e viu em cima da mesa a folha de papel azul, acenou ligeiramente com a cabeça e fez uma cara que qualquer observador, mesmo desconhecendo antecedentes e razões, não teria dúvidas em qualificar de irónica, como se a simples presença daquele papel tivesse acabado de confirmar certas gozosas e de antemão saboreadas expectativas. Sentou-se à secretária, e o seu primeiro gesto, após ter esticado as mangas do casaco da farda e sacudi-do das reluzentes divisas um pó invisível, foi afastar para o lado a folha de papel. Depois, metodicamente, examinou e assinou documentos, fez e atendeu chama-das telefónicas, deu instruções e ordens aos funcionários da capitania, recebeu e conversou com dois comandantes de barcos fundeados no porto, e, chegada a hora, foi almoçar a casa, como sempre. No fim, a mulher, enquanto deitava o café nas chávenas, perguntou-lhe se já tinha dado despacho ao requerimento, ao que ele respondeu que trataria disso à tarde. Com efeito, de volta ao escritório, o capitão do porto, depois de sentar-se e repetir os gestos de puxar as mangas e espoar as divisas, pegou no papel que de manhã repelira e, sem dar-se ao trabalho de o ler, apurando uma caligrafia arejada e redonda, própria de marinheiro, que contendia com a letrinha miúda e arrastada do requerimento, escreveu, Tendo em conta a manifesta inoportunidade de um pedido que parece ignorar cientemente a precária situação dos serviços, desfalcados de pessoal, indefiro. Tocou a campainha e disse ao marinheiro que fazia de contínuo, Vai à alfândega e põe isto na secretária do director. Quando, horas mais tarde, terminado o trabalho, o capitão do porto regressou a casa, a mulher tornou a perguntar-lhe, Despachaste, e ele respondeu, Despachei. Não disse como, porque, em seu entender, comprovado por uma longa experiência, a separação de funções implica que em caso algum o conhecimento dos factos seja antecipado ao momento do seu efectivo acontecer, pois de contrário se alteraria perigosamente a harmonia consequente do mundo, a qual, entregue à irreflexão e ao arbítrio, não sobreviviria por muito tempo. 

«No dia seguinte, o director da alfândega entrou no seu gabinete e, vendo o requerimento, sentiu uma pancada no coração. Sabia que não eram boas as notícias do despacho. Como uma vela cheia de vento, curva e tensa, o desenho caligráfico do capitão do porto, lançado de través no papel e dominando a escrita rasa do peticionário, era a imagem duma armada vencedora, pairando soberbamente à vista dos destroços flutuantes do cargueiro inimigo. O director da alfândega não precisou de ler a fundamentação do despacho, olhou apenas a ominosa palavra, Indefiro. Num rompante de ira, atirou o papel para o chão, de onde logo, humilde, o foi recolher. Depois, fazendo por não pensar na sorte que o obrigava, sendo director, a ser também subordinado, deitou mãos ao trabalho, acumulado desde o dia anterior. Consultou pautas, aplicou percentagens, calculou taxas, deu instruções e ordens, recebeu dois exportadores descontentes e um importador agradecido, mandou dizer a um despachante que voltasse daí a dois dias, e, chegada a hora, foi almoçar a casa, como sempre. Mal entrou a porta, perguntou-lhe a mulher, Então, e ele respondeu, Indeferido, Queres dizer que não vamos para férias, Exactamente, não vamos para férias, E porquê, Porque estamos com falta de pessoal na alfândega e na capitania, Tu não pertences à capitania, és director da alfândega, Pois sou, mas na escala hierárquica da administração o capitão do porto está acima do director da alfândega, E agora, Vamos ter de esperar que a situação melhore, E entretanto não haverá férias, Sim, não haverá férias, E a ti parece te isso bem, Não me parece bem nem mal, provavelmente teria feito o mesmo se estivesse no lugar dele, Por que não lhe escreves uma carta simpática, falando-lhe aos sentimentos, que estás muito cansado, que a tua mulher andava a sonhar com estas férias, coisas neste estilo, Não creio que dê resultado, mas posso tentar. Assim fez. Regressado à alfândega, avisou o contínuo de que durante a próxima hora não estaria para ninguém, depois fechou-se no seu gabinete de director e pôs-se a escrever. Não uma carta, mas várias, porque não gostou das primeiras redacções, pareceram-lhe frouxas, sem nervo, pouco persuasivas, e se nem mesmo a si, que as escrevia, o convenciam, menos capazes ainda seriam de levar o capitão do porto a mudar de ideias. Deu-se por satisfeito, finalmente, quando, estremecido de pura compaixão da sua pessoa, sentiu que os olhos se lhe iam humedecendo à medida que as palavras fluíam da alma magoada. Só se o capitão do porto tivesse uma pedra no lugar do coração, é que não se deixaria abalar. Dobrou a carta, meteu-a num sobrescrito e chamou o contínuo, Vá à capitania e ponha isto na secretária do capitão. Depois, sozinho, recostou-se no espaldar da cadeira e deixou-se levar pela imaginação até ao sítio das desejadas férias, pois queria acreditar que, diante de uma carta tão repassada de humildade, pungente, desgarradora até, o capitão do porto, de puro enternecimento, anularia o primeiro despacho e deferiria o pedido. Em casa, a mulher, mesmo sem ler a carta, era da mesma opinião e partilhava a mesma esperança, e, para adiantar, começou a fazer as malas.

«O director da alfândega tinha razão, mas só até um certo ponto. De facto, no dia seguinte, o capitão do porto não pôde segurar duas lágrimas enquanto ia lendo a carta, é certo que foram só duas, mas, tratando-se de um oficial, o efeito é digno de nota. Se a comoção durou mais do que o tempo estritamente necessário para enxugar os olhos, não se sabe, mas a mão não lhe tremeu quando, por sua vez, escreveu as palavras que iriam fazer murchar e secar a tímida flor de esperança do director da alfândega. Que não, que sentia muito, que ninguém melhor do que ele compreendia a situação, mas o dever do cargo e a responsabilidade das duas funções não lhe permitiam faltar à justiça e ignorar a letra e o espírito das leis e regulamentos atinentes, que, nestas circunstâncias, como em todas, exigem ao serviço público a dignidade exemplar que representa o sacrifício dos interesses particulares em aras do bem comum. Por estas razões, e embora lamentando o transtorno, confirmava o despacho e mantinha o indeferimento. Mandou levar a carta ao gabinete do director da alfândega e, desgostoso, foi para casa mais cedo. A mulher estranhou, preocupou-se, Não me digas que estás doente, agora que o director da alfândega tirou férias, e ele respondeu, Nem eu estou doente, nem o director da alfândega irá para férias, Mas então, a carta, Fez-me muita pena, mas os regulamentos existem para serem cumpridos, eu apenas sou a mão com que a lei assina as sentenças, Achas que se conformará, Não terá outro remédio, rematou o capitão do porto. Fez uma pausa, e depois disse, Vou-me deitar um bocado, talvez possa dormir, e enquanto durmo, esqueço, Espera um pouco, deixa-me desfazer as malas primeiro. 

«O director da alfândega, no dia seguinte, reagiu com uma carta furibunda em que, começando por acusar o capitão do porto de falta de solidariedade institucional, terminava perguntando-se, com ironia fingida, e sem medir as distâncias, se ele, capitão, não seria um caso clínico, agudo, de mania das grandezas, Subiram-lhe os galões à cabeça, julga-se almirante, rematava. O capitão do porto, ofendido na sua autoridade, não levou a bem a impertinência. Em nova carta, ameaçou o director da alfândega com processo disciplinar, castigo, suspensão, mas foram penas perdidas, porque o director retorquiu-lhe com insolência, Suspenda, suspenda, que será a maneira de eu ir mesmo de férias. Não houve, portanto, processo disciplinar, e a azeda troca de correspondência continuou. A partir de certa altura, o motivo inicial do desacordo deixou de ser referido, de férias não se falou mais, as cartas, tanto de um lado como do outro, passaram a encher-se de acusações, de denúncias de erros antigos e recentes, de faltas, uma história completa de desmazelos burocráticos, e, pior do que isto, primeiro por insinuações, depois com aberta exibição das provas, de actos de corrupção activa e passiva cometidos pelas duas partes no exercício das suas funções, De onde é que lhe veio o dinheiro para comprar o automóvel, De onde é que lhe veio o dinheiro para fazer a casa. Tanto o capitão do porto como o director da alfândega andavam de cabeça perdida, na febre de escrever cartas até se lhes tinha alterado a caligrafia, a do capitão era agora rasa, miudinha, a do director altaneira e desafiadora. Em casa, os beligerantes desabafavam com a mulher, Aquele capitão merecia era ir para a cadeia, Aquele director devia era estar no manicómio, mas as respostas que ela dava, se bem que proferidas com intenção e inflexão diferentes, eram, palavra por palavra, iguais, Tudo por causa de umas férias, ao que o capitão ripostava, Não, tudo por causa de um indisciplinado, e o director, Não, tudo por causa de um autoritário. Em tentativa que iria ser a última, o director da alfândega mudou de tom. Tarde de mais, se diria, se alguma vez a obstinada resistência do capitão do porto pôde ter sido demovida. Ao tom novamente implorativo do director, respondeu o capitão com uma só palavra, seca e definitiva, Arquive-se. 

«Então, o director da alfândega suicidou-se. A caminho do cemitério, o préstito fúnebre deteve-se durante dois minutos diante dos edifícios da capitania e da alfândega. Em um e outro as bandeiras estavam a meia haste, e, às janelas, os marinheiros e os funcionários civis, que por obrigação de serviço não podiam acompanhar o féretro, despediam-se do seu chefe. Acabrunhada pelo inesperado luto, a mulher fora aconselhada a ficar em casa. Quando as amigas se retiraram, deixando muitas recomendações de resignação e paciência, foi reler o bilhete de despedida do marido. Dizia assim, simplesmente, Agora já podes ir de férias, o capitão nunca mais indeferirá requerimentos. Então, a pensar que vestidos conviria tingir de preto, a viúva abriu o guarda-fato. Ali estava, com os galões reluzindo, a farda do capitão do porto.» 

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