Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

"História do Cerco de Lisboa” que PODERIA ter sido inspirada na obra de Dino Buzatti, “O Deserto dos Tártaros”

Será possível conhecer a obra e o legado de um homem, baseado no estudo e conhecimento do que produziu e deixou aos seus, enquanto resultado final?
Neste caso, nesta área de acção - a escrita - e numa alusão algo simplista, um escritor deixa livros publicados ou rascunhos que poderiam ter dado lugar a algo mais substancial. Dessa obra que deixou e que pode sobreviver à morte do autor, serão traçadas as linhas caracterizadoras do seu pensamento; poucas linhas servirão para descrever quem foi "fulano de tal", que morreu na tal data, e que "abaixo se transcreve a sua bibliografia". Isto é o mundanamente vulgar que se inscreve, todos os dias, nos anais da história da literatura.

Daí a pergunta inicial, que cada um poderá dar a sua resposta, com base na experiência própria ou da sua percepção sobre o que é, o que pensa ser, o que gostaria de ser, e também, do que pensa que os outros entendem sobre si.
José Saramago, e na percepção do que eu assumo como meu pensamento principal, é a negação à resposta da minha pergunta.

A minha leitura da extraordinária conversa, entre a jornalista Ana Sousa Dias e José Saramago (Verão de 2006 em Lanzarote), acrescentou ao meu conhecimento mais alguns detalhes sobre a pessoa, o escritor e o intervencionista inquieto e desassossegado, que caracterizaram o autor. Neste caso, mostro-me maravilhado, pelo pormenor revelado sobre a via inicial com que a "História do Cerco de Lisboa", poderia ter sido conduzida pelo punho de Saramago, em eventual analogia à obra de Dino Buzatti, "O Deserto dos Tártaros". 
Qual a importância deste facto? Relevância ou mera curiosidade? Talvez um pouco de cada, mas depois de ter lido estas linhas, perguntei-me: 
«Poderíamos ter perdido e passado ao lado de Raimundo Silva? 
Poderíamos ter perdido a discussão filosófica do peso do "não" e do "sim"? 
O que seria deste quadro histórico se a linha de escrita tivesse sido outra?»

José Saramago, o seu legado, a extensão do seu "mundo", continuam hoje a provar, que, ele enquanto figura inicial e génese da filosofia "Saramaguiana", transcendem toda a sua obra publicada. Não é possível conhecer uma pessoa, só pelo que ela deixou realizado, e, neste caso transmitido em obras devidamente catalogadas. Não só, é obrigatório incluir as obras publicadas, mas também, tudo o que gira à volta do homem e das suas referências, sendo disto exemplo, as crónicas e textos realizados ao longa da vida e que muitas publicações deram disso testemunho, como objecto de reflexão sobre os dias e a história desses tempos passados - refiro-me aos livros de crónicas de teor político e social. Também não poderá faltar, a incursão pela sua poesia; poemas que continuam a ser musicados e cantados por homens e mulheres que sentem a mesma urgência inicial com que o autor os escreveu. Disto, e de entre alguns, são testemunhas Barata Moura, Manuel Freira, Mísia, Luis Pastor.
O intervencionista, o manifestante, a incursão pelos meandros da politica, o agitador de consciências, o homem social, o confronto com os pilares corrompidos da "igreja", a luta pela liberdade, a luta contra as várias formas de censura, as guerras que "comprou" e as em que foi envolvido, fizeram de Saramago, um ícone social, diria até, exterior e independente da obra produzida. O homem que lutou pela causa dos Zapatistas em Chiapas; na defesa do meio ambiente, que inscreveu nos Princípios da Fundação José Saramago; na intervenção conjunta com Sebastião Salgado; ou no apelo feito em defesa da activista e resistente Saharaui Aminatou Haidar; na posição pública perante a causa palestiniana; na oposição frontal a Guantanamo e a G.W.Bush, são momentos de intervenção cívica, que embora não retratados nos romances, não deixam de ficar imortalizados na história em memória daqueles que foram terrivelmente assassinados e oprimidos.  

Saramago, é também conhecido, como tendo sido entusiasta e estudioso de outras áreas das artes e expressões artísticas. Melómano e apreciador de musica clássica, da pintura e cinema, de onde as suas obras disso fazem menção expressa; rapidamente nos lembramos do violoncelista em "As Intermitências da Morte", o espaço cénico e musical sempre presente no "Memorial do Convento", o retratista crítico de si, no "Manual de Pintura e Caligrafia", os barros e artes populares em "A Caverna", e toda a arte na sua forma do retrato que é (foi) Portugal através da "Viagem a Portugal". O seu interesse pela arte, é transportado para dentro dos seus livros e transmitido sob a forma de conhecimento.

José Saramago, foi também a solidariedade e amizade com aqueles que muito prezava e respeitava, dizia-se um solitário cheio de gente à sua volta; as multidões para o ouvir nas inúmeras conferências que realizou, deixava-o de boca aberta, as longas e intermináveis filas de autógrafos que tinha de estoicamente resistir, são exemplos do homem que era mais do que os livros escritos, e que lhe trouxeram a obrigação social de se manter disponível. Após a atribuição do Nobel, percorreu o mundo, deu voltas a Portugal e a muitos lugarejos, mais mundo teria percorrido se lhe fosse humanamente possível. 
Foi com este humanamente impossível, e aqui relembro a visita que efectuou em cadeira de rodas, manifestamente debilitado, à exposição "A Consistência dos Sonhos", que ele involuntariamente ao longo dos tempos alcança uma imagem de força, resistência e tenacidade. 
Ultrapassar o impossível e a alcançar o possível. A urgência de retribuir. O agradecimento. O homem que se sentia reconhecido, e a bondade com que, em forma de romance viveu os seus dias. 
Será Pilar a responsável?

Miguel de Azevedo 




"Depois vem um livro estranho que é a “História do Cerco de Lisboa”. A primeira ideia era na linha de “O Deserto dos Tártaros” do [Dino] Buzzati. Um cerco em que não se percebia muito bem quem cercava nem quem era cercado. Usemos a palavra: um pouco kafkiano. Isso andou na minha cabeça durante uma quantidade de anos até que me dispus a escrever o livro já com um objectivo completamente diferente. Em princípio, toda a gente parte do cerco de 1385, mas não, os cercados são os mouros. E entre as figuras simpáticas do livro algumas delas são mouros."

Extracto da entrevista de Ana Sousa Dias


(Dino Buzatti, 1906/1972)

Pequena referência biográfica do escritor Dino Buzatti,

"Dino Buzzati Traverso (San Pellegrino di Belluno, 16 de outubro, 1906 — Milão, 28 de janeiro, 1972) foi um escritor italiano, bem como jornalista do Corriere della Sera. Sua fama mundial é principalmente devido ao seu romance Il deserto dei Tartari, traduzido para português como O Deserto dos Tártaros, de 1940. Dino Buzzati detém um estilo inconfundível, que não obedece a modas e etiquetas, explorando sempre uma visão fantástica e absurda do real. A sua obra está traduzida em inglês, francês, alemão e espanhol e difundida largamente em todo o mundo.
Dino Buzzati nasceu perto de Belluno em uma pequena propriedade rural de sua família. Sua mãe, veterinária, era veneziana e seu pai, professor universitário, era de uma arntiga família de Belluno. Buzzati foi o segundo dos quatro filhos do casal. Desde muito jovem manifestou as que iam ser as aficções de toda sua vida: escrevia, desenhava, estudava violino e piano, além da paixão pela montanha à que dedicou sua primeira novela, Bárnabo das montanhas (Bàrnabo delle montagne) (1933).
Em 1924 ele entrou para a faculdade de direito da Universidade de Milão, onde seu pai já ensinara. Quando já estava para terminar seu curso de direito, aos 22 anos, tornou-se jornalista do jornal milanês Corriere della Sera, onde permaneceria até a sua morte. Não começou como repórter, onde só depois trabalharia como correspondente especial, ensaista, editor e crítico de arte. É comum dizer que sua profissão como jornalista teve forte influência sobre seus escritos, emprestando mesmo para seus contos mais fantásticos uma aura de realismo. Frequentou o Liceo Classico Parini di Milano e laureou-se em jurisprudência com uma tese La natura giuridica del Concordato.
O sucesso obtido com sua primeira novela, a já citada Bárnabo das montanhas, não se repetiu com a seguinte O segredo do Bosque Velho (Il segreto do Bosco Vecchio) (1935), que foi acolhida com indiferença.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Buzzati serviu na África, como jornalista da Marinha italiana. Após o fim da guerra, publicou sua obra-prima, O Deserto dos Tártaros, alcançando fama mundial e tendo grande sucesso de crítica.
Desde 1936 escreveu numerosos relatos para o Corriere della Sera e outros jornais, posteriormente recopilados em Os sete mensageiros e outros relatos (I sette messaggeri) (1942), Paura alla Scala (1949), Il crollo della Baliverna (1954), Sessanta racconti (1958, prêmio Strega), Esperimento dei magia (1958), Il colombre (1966), As noites difíceis e outros relatos (Lhe notti difficili) (1971).
Em 1960 saiu O grande retrato (Il grande ritratto), quase um experimento de novela]] de ciência ficção]], onde entra em cena o universo feminino, que até então tinha explorado muito pouco. Três anos depois, em Um amor (Um amore) relatou a história de Antonio Dorigo, um homem que encontra o amor aos cinquenta anos: apresenta prováveis rasgos autobiográficos, já que aos sessenta Buzzati casou-se com Almerina Antoniazzi.
Também elaborou roteiros de cinema, como o de Il viaggio de G. Mastorna, colaborando com Federico Fellini, além de libretos de ópera. Entre vários outros, venceu o prêmio jornalístico Mario Massai (1970) pelo artigo publicado no Corriere della Sera nell'estate (1969), sobre a descida do homem à Lua.
Em 1972 morre em decorrência do câncer, após uma prolongada luta contra a doença, na clínica La Madonnina de Milão."

(Capa da obra de Dino Buzzati)


Sinopse da obra, via Wikipédia, em http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Deserto_dos_Tártaros

"O Deserto dos Tártaros é uma romance escrito pelo escritor italiano Dino Buzzati em 1940, que gerou um filme - homónimo em 1976
A necessidade humana de dar sentido à vida e o desejo de imortalidade através da glória são o tema, sobre o qual circulam as alegorias desta obra. O enredo se desenrola sobre a narração da espera feita ao longo da vida do personagem Drogo, um militar de carreira, que vive se preparando para uma grande guerra na qual ele acredita que sua vida e existência serão postas à prova.
Drogo ainda jovem, é designado a uma remota fortaleza, localizada defronte a um deserto desolado, fronteiriço ao território tártaro. Nela, ele gasta sua carreira esperando e se preparando para uma invasão tártara, sempre temida em renovados rumores, alimentados pelo próprio Estado a que serve.
Só muito tarde, Drogo vai percebendo que ao longo dos anos em sua estadia no forte, ele deixou passar anos e décadas e que, apesar de seus velhos amigos, tanto os da cidade, como os militares que passaram pelo forte, terem tido filhos, casado, e vivido uma vida plena, ele em sua longa e paciente vigília veio acabar com nada, excepto a camaradagem militar.
Quando finalmente o ataque dos tártaros está para ocorrer de verdade, com as tropas inimigas à vista da fortaleza pela primeira vez em todos os seus anos, Drogo já velho e doente é dispensado pelo novo comandante do forte. Em seu caminho de volta à civilização, Drogo morre solitário em uma pousada."

Poema "Aprendamos o rito" de José Saramago (Os Poemas Possíveis) cantado por Carlos do Carmos


Carlos do Carmo - "Aprendamos o Rito"
Poema: José Saramago
Música: Miguel Ramos


"Aprendamos o rito"

"Põe na mesa a toalha adamascada
Traz as rosas mais frescas do jardim
Deita o vinho no copo, corta o pão
Com a faca de prata e de marfim

Alguém veio juntar-se à tua mesa
Alguém a quem não vês mas que pressentes
Cruza as mãos no regaço, não perguntes
Nas perguntas que fazes é que mentes

Prova depois o vinho, come o pão
Rasga a palma da mão no caule agudo
Leva as rosas à fonte, cobre os olhos
Cumpriste o ritual e sabes tudo."

em "Os Poemas Possíveis", 
Caminho, 3.ª edição, página 81

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

"Carta aos meus Avós - A partir de Saramago" de André Raposo e Maria Alice Amaro Gois


"Uma homenagem às avós, aos avôs, aos avós. 
Uma carta que tem as palavras que não são as deles, mas que são para eles. 
A partir da brilhante crónica "Carta para Josefa, minha avó" escrita por José Saramago. 

Com: André Raposo & Maria Alice Amaro Gois

Realização: André Raposo & João Descalço
Assistente de Realização: Cristiana Morais
Cinematografia & Edição: João Descalço"

Link original, via Youtube em https://www.youtube.com/watch?v=NkbAfHXZKRw#t=35

"No ano de 1968, José Saramago publicou no jornal A Capital, de Lisboa, a crónica Carta a Josefa, minha avó. Anos mais tarde, ela seria publicada no livro Deste Mundo e do Outro. Abaixo segue a reprodução da página do jornal A Capital em que foi originalmente publicado o texto."


"Carta para Josefa, minha avó"

"Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e de formadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com  isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?)

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»


É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua." 

José Saramago, jornal A Capital, 1968

Ana Sousa Dias entrevista José Saramago (Lanzarote, fim do Verão de 2006)

Blimunda #5 com destaque à entrevista de Ana Sousa Dias (Lanzarote, fim do Verão de 2006)


"Ao 5.º número da revista Blimunda abrimos espaço para um dos temas que mais está presente, muitas vezes como ferramenta de construção narrativa ou de descrição de espaços e ambientes na literatura universal, a comida. Dos primórdios aos tempos modernos, é esta viagem que aqui pretendemos trazer mostrando a importância que os alimentos, dos mais rudimentares aos mais sofisticados, tiveram na evolução social. Nunca esquecendo a crise alimentar que atravessamos, com consequências que em alguns casos ainda não conseguimos prever.

Este é também um número em que damos lugar às entrevistas. Na secção infantil e juvenil, com uma das mais importantes autoras portuguesas, Alice Vieira. Com mais de 40 anos de carreira e mais de 30 títulos publicados, é de literatura que se fala, sem preconceitos e olhando para o futuro.

No segundo caso, recuperando as palavras de José Saramago numa entrevista concedida a Ana Sousa Dias em Lanzarote, no ano de 2006, acompanhadas pelas belíssimas fotografias de João Francisco Vilhena que captam o espírito da terra que viu nascer obras maiores da literatura universal.


Esta entrevista funciona como preâmbulo para a próxima edição da Blimunda, a de novembro, mês em que comemoramos os 90 anos de José Saramago. Essa será uma edição especial, parte integrante da programação que a Fundação José Saramago anunciará nos próximos dias para celebrar o nascimento do Escritor, do Homem a quem nunca poderemos dizer adeus."

Aqui para ler e descarregar a Revista "Blimunda",
em http://www.josesaramago.org/blimunda-5-outubro-2012/


(Capa da revista, número 5)


Entrevista da jornalista Ana Sousa Dias
Publicada na revista Egoísta de Março de 2007
Aqui para consulta, em http://www.anasousadias.com/jose-saramago-2/

"A casa é sossegada, centrada na ampla cozinha, e está cheia de cavalos – pequenos objectos, delicadas esculturas, desenhos. Há cavalos sobre mesas, nas estantes, nas paredes. A explicação para este, digamos, problema está n’ “As Pequenas Memórias” livro que não estava ainda publicado quando a entrevista foi feita.

Antes de franquear a porta da casa de Pilar e Saramago, há que desembarcar em Lanzarote, a ilha mais oriental das Canárias, salva da aridez por uma perseverante operação de dessalinização da água do mar, salva da avidez da especulação por apertadas regras urbanísticas iniciadas por Cesar Manrique [1919-1992]. O artista moldou amorosamente o território e deixou uma herança de respeito pela ecologia do lugar, hoje considerado Reserva da Biosfera. A marca mais óbvia está na Fundação com o seu nome, na casa onde viveu, mas também no rigoroso funcionamento do turismo em Timanfaya ou no aproveitamento espetacular dos Jameos del Agua e de outros espaços esculpidos pela natureza.

Este é ainda um mês quente do fim do Verão de 2006 e todos os dias há notícias de homens e mulheres exaustos que chegam às ilhas Canárias em frágeis embarcações sobrelotadas, arriscando tudo para trocar a pobreza exangue de África por uma miragem europeia.

A ilha é negra e dura, feita de lava recente, e cada planta protegida dos ventos alísios por um muro de pedra parece um milagre. Dirá Saramago que para pintar a ilha de verde basta um pouco de água, e fará desta imagem uma parábola que caberia, inteira, nos livros que escreve.

No andar de cima da casa fica o lugar onde José Saramago escreve, em baixo o escritório de Pilar, com equipamento para os programas de rádio que faz regularmente em directo e um computador onde se sucedem os e-mails relacionados com ambos.

Do outro lado da rua, seis jovens catalogam os 20 mil livros do casal, finalmente arrumados, na novíssima biblioteca em cujo jardim foi plantada uma frágil haste de oliveira portuguesa. Todos sabem que em pouco tempo a haste se fará árvore, porque assim foi no jardim da casa, onde pequenos rebentos se tornaram romãzeiras, alfarrobeiras, palmeiras, uma altíssima araucária.

A entrevista é gravada na sala, sem interrupções, e começa com Saramago a explicar os cavalos. “Vou ler-te”, anuncia. Pega numa prova d’  “As Pequenas Memórias”: “O meu problema com os cavalos é mais pungente, daquelas coisas que ficam a doer para toda a vida na alma de uma pessoa. Uma irmã da minha mãe, Maria Elvira de seu nome, estava casada com um certo Francisco Dinis…”


Lanzarote é tão diferente da Azinhaga, onde nasceste, uma terra ribatejana fértil, com imensa água, e tão diferente de Lisboa. Os lugares onde vives reflectem-se na sua escrita?
Há um velho romance que publiquei em 1947, a “Terra do Pecado”, que devia chamar-se “A Viúva”, que nunca mais li mas recordo-me que passa muito pela Azinhaga. A classe social ali apresentada não é a minha, são grandes proprietários rurais, que conhecia e sabia como viviam. Algumas situações vividas por mim como criança aparecem no livro. Na minha poesia pode encontrar-se alusões, de forma indirecta, transposta, a ambientes campestres.

Muitos anos mais tarde, aparece o “Levantado do Chão”. O primeiro projeto foi instalar-me na Quinta da Cruz da Légua, na aldeia entre a Azinhaga e Santarém, por onde eu tinha passado. Era um microcosmos, interessava-me saber como eram as relações de trabalho e de dependência, a presença da Igreja. Conhecia demasiado bem a Azinhaga e não queria correr o risco de fazer retratos de pessoas próximas. É nesta altura que se me apresenta o Alentejo, o Lavre. Estávamos em 75, com toda a confusão, perdi o meu trabalho no Diário de Notícias e pensei ir para o Lavre. Escrevi uma carta a perguntar se havia maneira de me acomodar lá e responderam-me: “venha imediatamente, tem todas as condições para estar aqui tranquilo”. Fiquei num quarto de um prédio de um antigo proprietário – aquilo tinha sido ocupado – e foi aí que eu recolhi material, falei com muita gente. O livro está aí.

Estás a falar sobretudo das pessoas, a pergunta era sobre os lugares.
Sim, são pessoas e também o lado físico da questão: o sítio, o lugar, as casas, a paisagem. A primeira ideia a seguir ao “Levantado do Chão” – ficou atrás o “Manual de Pintura e Caligrafia”, mas deixemo-lo – foi para “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Assustou-me a ideia de meter-me no sarilho de falar de Fernando Pessoa e de Ricardo Reis, com os pessoanos todos de Portugal de olho posto no livro à procura dos disparates. Tinha-me entretanto aparecido a ideia do “Memorial”, que nasceu simplesmente de uma frase dita diante do Convento a três ou quatro pessoas que estavam comigo. Disse, olhando para o Palácio (aquilo que a gente vê de fora é o palácio, não é o convento): “Gostava de meter isto um dia dentro de um romance”. E disse isto em voz alta. Se eu tivesse pensado apenas, talvez o romance não existisse. Mas tinha assumido publicamente um compromisso. Então deixei o Ricardo Reis em paz e atirei-me ao “Memorial do Convento” e do balanço adquirido veio “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Os dois estão aí.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis” passa-se em Lisboa.
É Lisboa mas não a Lisboa da ocasião, é um pouco da minha própria memória. Nasci em 1922, aquilo é 1935 ou 36, portanto andava pelos meus 13 anos a caminho dos 14. Algumas coisas são autênticas recordações de ambientes, não de factos.

Numa conversa com uma jornalista brasileira em Lisboa, estávamos a dizer que os portugueses têm sempre um pé cá e outro lá. E eu de repente disse: “É assim como se a península se tivesse ido embora”. Uma frase solta, desta maneira. Continuei a pensar nela, e nasce “A Jangada de Pedra”. Aparece na altura da integração dos dois países ibéricos na Europa e o livro foi tomado como um ataque porque aparentemente assim é: se a península se vai embora é porque não quer estar na Europa. Um crítico catalão escreveu um artigo em que diz “o que o José Saramago quer é levar a Europa para o sul, a Península Ibérica puxando a Europa para o sul”. E de facto…

É aí que a Espanha se junta a Portugal na tua obra?
Sim, mas repara que isso tem uma relação forte com algo que eu andava a dizer já há tempos: em primeiro lugar sou português, depois sou ibérico, e em terceiro lugar, se me apetecer, sou europeu.

E apetece-te?
Ninguém sabe o que é a Europa. O Eduardo Lourenço disse uma vez que a Europa não existe. O problema sempre foi este: quem manda? Um manda e os outros vão atrás, a contragosto ou não, não têm outro remédio. Agora é menos fácil identificar quem manda mas a cabeça não está em Paris nem em Londres, está em Berlim. O Umberto Eco disse que dentro de 50 anos a Europa será islâmica. Pode acontecer, outras coisas se viram no passado.

A ideia da Península Ibérica disparada para o sul era um bocado ingénua, evidentemente, mas a gente também vive da ingenuidade. Falamos tanto do sul, o sul vítima da exploração, o sul como ideal, o sul como lugar do paraíso, para onde correm os turistas sempre… era como se a Península Ibérica, colocando-se ali, fosse o embrião de um desenvolvimento cultural que reunisse a Europa, a América e a África e fosse, de uma certa maneira, uma ponte. Ilusões de adolescente, mesmo se eu já tinha muita idade na altura. Mas o livro está aí. E gostei de que esse homem tivesse dito que eu queria levar a Europa para o Sul. Tornou-se-me claro algo que eu apenas intuía confusamente.

Lanzarote é a tua jangada de pedra?

Tudo são jangadas e isto não é exactamente a minha, vim parar aqui por acaso, como sabes, e conheces a história. Não escolhi. É curioso como são as coisas: o primeiro-ministro do governo que censurou “O Evangelho segundo Jesus Cristo” é hoje Presidente da República e não tem vergonha de o ser.

Depois vem um livro estranho que é a “História do Cerco de Lisboa”. A primeira ideia era na linha de “O Deserto dos Tártaros” do [Dino] Buzzati. Um cerco em que não se percebia muito bem quem cercava nem quem era cercado. Usemos a palavra: um pouco kafkiano. Isso andou na minha cabeça durante uma quantidade de anos até que me dispus a escrever o livro já com um objetivo completamente diferente. Em princípio, toda a gente parte do cerco de 1385, mas não, os cercados são os mouros. E entre as figuras simpáticas do livro algumas delas são mouros.

Estavas a islamizar a história…
Não tarda muito chamam-me infiltrado do Islão… Não era um Islão pacífico mas era um Islão sem terrorismo, vamos pôr a questão assim. Também se pode pensar nas actividades terroristas dos exércitos quando matavam crianças e mulheres à espadeirada e queimavam as casas. Isto não mudou muito. Continuamos a ser aquilo que éramos e vamos continuar, se Deus quiser. E como Deus não parece querer outra coisa…

Achas que não mudou muito?
O ser humano? Não, o ser humano é uma besta. E pior que isso: não temos solução. Sinceramente, e não o digo para me fazer interessante. Olho para trás, olho para o agora e imagino o que vem. Não vejo nada que me diga que o Homem tenha solução. Não resolvemos nada de essencial. Criámos riqueza material, muitas vezes à custa de reduzir à pobreza, à humilhação e à fome massas humanas enormes.

E a ciência?
A ciência é como todas as coisas que saem da nossa cabeça, tem um lado bom, tem um lado mau, confirme as utilizes. Evidentemente que sim, criámos a ciência, e criámos até uma coisa que parecia que não estava na tabela: criámos o amor, inventámo-lo.

Não estava previsto?
Como é que poderia estar? Uns quantos animais que andavam por aí, meio macacos, meio humanos, governados praticamente pelo instinto e que se desenvolveram ao longo de uma quantidade de anos. Foi preciso inventá-lo.

E isso não mudou tudo?
Mudou tudo mas não mudou tudo. Mudou a vida, ou pode mudar a vida, ou influir na vida das pessoas que experimentam esse tipo de sentimentos, mas no fundo não muda. Não muda, não muda.

Há sempre nos teus romances alguma coisa que é redentora, e é sempre o amor.
Mas durante quanto tempo? Podemos falar do amor no “Memorial”, embora não haja aí palavras de amor.

Um dos acontecimentos mais extraordinários da minha vida de escritor é ter escrito um romance com uma grande história de amor – não tenho pejo nenhum de dizê-lo – sem que nenhum dos dois tenha tido necessidade alguma vez de dizer Gosto de ti, Amo-te, Os teus olhos são como as estrelas, não sei o quê. Não há nada disso e não foi intencional. Só no fim é que me dei conta de que não havia uma palavra de amor, uma só, em todo o livro. Pode parecer deliberado ao leitor, ao crítico, ao estudioso, mas foi involuntário.

E quando digo que não temos solução…

Realmente as pessoas recuperam a vista, de acordo. Realmente há essa figura admirável da mulher do médico – não porque eu a tenha feito assim mas porque ela é assim. Mas no fim, quando toda a gente está celebrando o regresso da visão, ela vê o céu todo branco e julga que chegou a sua vez, que vai perdê-la. Não é assim, e ela baixa os olhos e diz: “A cidade ainda estava ali”. A possibilidade de viver juntos é negada ao longo do livro, a não ser esse grupo solidário que se espera que não tenha sido o único, que tenha havido nessa mesma cidade outros que não entraram na história.

A frase “A cidade ainda estava ali” é um aviso, como quem diz: “Vocês aprenderam a lição ou não aprenderam? Eu ainda aqui estou” Não é tão otimista quanto se crê, porque eu não sou. Somos uma espécie que fez o que fez, no bom, no mau, no maravilhoso, no sublime, no horrendo, fizemos o que fizemos. Aqui não se trata de pôr numa balança o que fizemos de bom e o que fizemos de mau, aqui tínhamos de pôr a Capela Sistina, ou um quadro do Rembrandt, ou uma sinfonia de Beethoven, e do outro lado tínhamos de pôr Auschwitz, Buchenwald, todos os horrores, os genocídios. Eu não sei o que pesa mais, mas o lado negro da História da Humanidade é de tal modo horrendo que é difícil que a 9ª. Sinfonia sirva para equilibrar.

Estou pasmada com este sítio, sobressai o poder da natureza, ao mesmo tempo destruidor e incrivelmente fértil – tu disseste que basta cair uma chuvada para isto ficar tudo verde. É isto que me parece marcante.
Sim, mas se é marcante já o era antes de eu estar aqui. Há aqui uma série de contradições.

Disseste que não escolheste este sítio, mas na verdade também não o recusaste.
Quando cheguei aqui senti-me bem. Venho de outro lugar, da lezíria, todo o contrário de uma terra como esta. Aqui joga o temperamento de cada um. Havendo em mim, como há, uma tendência tão forte para… não diria o ensimesmamento, a contemplação… para a solidão. Vivo rodeado de pessoas e no fundo sou muito solitário. Chegar a esta ilha e subir estes vulcões – agora não, porque já não posso…

Este grande aqui atrás, chamado Montanha Branca, subi-o em maio de 1993, quando tinha 70 anos. Fui até lá acima, vê-se dali a ilha toda, de um lado e do outro, a outra costa e esta costa daqui, e o vale de La Geria, até ao vulcão do norte chamado La Corona. Foi realmente um dia de glória para mim. Não tinha o propósito de subir a montanha, fui naquela direção, depois olhei para aquilo, subi um bocado, 50 metros, “e se eu fosse até lá acima?”, e fui. Não é alpinismo de primeira qualidade, evidentemente, mas não é fácil porque se resvala, porque não tens onde agarrar-te, aquilo não é uma montanha no sentido habitual, com rochas, no fundo aquilo é um cone liso. Desci por outro lado, por um barranco, e descer é muito pior do que subir, escorreguei, feri-me numa mão. Entre subir e voltar a casa foram pelo menos quatro horas.



Nunca mais voltei a subir mas tenho a imagem de estar num ponto alto numa ilha e poder vê-la praticamente toda. Tive a sorte – não fui com certeza a única pessoa que o fez – de, por um capricho de adolescente, ter dito: tenho de chegar lá acima. E cheguei.

Há uns campos de lava, fora do parque [de Timanfaya], relativamente perto daqui. Uma pessoa entra por esses campos… É essa coisa da solidão, de estar só, e o vento que sopra. Senti que nesta ilha havia qualquer coisa que tinha que ver comigo. Mas tinha que ver comigo como pessoa. Não creio que tenha passado para a escrita, e disso é que estamos falando. Ou então na escrita já estava.

Não será este o sítio certo para esta fase da tua vida?
Aí podemos estar de acordo. O que se pode dizer é que este sítio estava à minha espera. Andei quilómetros pela ilha e realmente estou bem aqui. Estou bem em Lisboa, também.

Tenho um problema com as Finanças espanholas, querem à viva força que pague impostos aqui. Apesar de ser um tipo suspeito em alguns aspectos, sou um bom contribuinte, um bom patriota e pago os meus impostos em Portugal. Andamos há quatro anos num conflito sério que já teve que meter instâncias superiores governamentais de um lado e do outro, não sei como isto vai acabar. Portanto, também há lados incómodos e vamos ver como é que esta questão se resolve.

Viajas muito mas é aqui que as pessoas vêm visitar-te. Percebi que muita gente vem aqui, sentam-se naquela cozinha.
Esteve cá o Mário Soares, quando viemos para aqui, em 1993. Foi um gesto muito simpático que lhe agradeço, embora ao longo da vida ele e eu tenhamos tido as nossas turras. Nessa altura era Presidente da República, fui despedir-me dele, expliquei-lhe por que vinha para aqui. Ele veio dar conferências em Tenerife, aproveitou e veio visitar-me. Vinham com ele o Manuel Alegre, a Maria de Jesus Barroso, o José Manuel dos Santos. Tem vindo aqui muita gente. Estiveram cá não há muito tempo o Bertolucci, o Pedro Almodóvar, o Rodriguez Zapatero.

Esta é a tua casa, o lugar onde tens os teus livros?
Os livros estão aqui. Em Lisboa tenho uma centena, aqui tenho 20 mil ou coisa que o valha. Pode dizer-se que a casa do escritor é o lugar onde estão os seus livros. Tinha de ser aqui. A minha primeira ideia era passar uma temporada em cada sítio, mas pouco a pouco, pela lógica do emprego do tempo e das deslocações, foi tomando mais evidência que o lugar para estar é aqui. O que não significa que não me sinta bem em Lisboa.

Disseste que o homem não tem solução mas não há sempre uma espécie de parábola nos teus romances?
O risco que os meus romances correm, e que assumem, é o de parecer que têm lições morais, se se quiser malevolamente olhá-los assim. Sou o primeiro a dizer que correm esse risco. Mas não é disso que se trata.

Não tens a intenção de mudar o mundo?
A minha única intenção é dizer como o mundo é, não venho dizer como transformá-lo. O estranho é que só volto a publicar em 1966, com “Os Poemas Possíveis” que tem duas fontes: um episódio sentimental que vivi nessa época e a leitura de “O Filho do Homem” de José Régio. Esse livro, não sei porquê, sacudiu-me. Como se estivesse a dizer a mim mesmo: eu também sou capaz. Em 1970 aparece o “Provavelmente Alegria” [poemas], depois publico crónicas que vinha publicando no Jornal do Fundão e n’A Capital [“Deste Mundo e do Outro”, 1971]. E aqui estamos à borda da Revolução.

Em 75, quando publico “O Ano de 1993”, tenho 53 anos. O que teria acontecido se tivesse continuado a escrever depois do primeiro livro? Apesar de tudo, escrevi outro romance, “Claraboia”.

Não conheço esse livro.
Ninguém conhece, nunca publiquei. Tem uma história com muita piada, é a vida dentro de um prédio que tem uma clarabóia na escada. É um pouco a história do “Diabo Coxo” do Vélez de Guevara [Écija,1579 - Madrid, 1644] que levantava os telhados das casas para ver o que estava dentro. Tem um antecedente literário e se calhar não é o único. Acabei o livro e não o levei a nenhum editor, não sei porquê. Um amigo meu, o desenhador Figueiredo Sobral, que fez desenhos para contos meus nessa época, trabalhava na Editorial Notícias, da Empresa Nacional de Publicidade. Disse-me um dia: “Dá cá o livro que eu vou levá-lo, pode ser que eles publiquem”. Como tantas vezes acontece, a vida separou-nos, não voltei a vê-lo.

Só havia um exemplar?
Só um exemplar, escrito à máquina. Isto deve ter sido no princípio dos anos 1950. Para mim, o livro estava perdido. Em 1987 ou 88, recebo uma carta da Empresa Nacional de Publicidade onde diziam que, reorganizando os arquivos, tinham encontrado um original com o meu nome, informavam-me disso e manifestavam interesse em publicá-lo. Fui lá, sou fulano, sim senhor, está aqui o livro, se quiser nós podemos publicá-lo. Não, não quero. Um livro desaparecido durante quase 40 anos reaparece!

Portanto, se tivesses continuado a escrever…
Se escrevi dois romances, por que não escreveria um terceiro? Pois não, a coisa ficou assim. Não sei o que teria acontecido. Perguntam-me: ficou todo esse tempo a ganhar experiência? Não, simplesmente não tinha nada para dizer. Mas há aqui três tempos. Um é o tempo de silêncio até 1966, depois o tempo intermédio que começa com “Os Poemas Possíveis” e que vai terminar em 1975 com “O Ano de 1993”. Em 1977 começa um período de tenteio, com o “Manual de Pintura e Caligrafia”, o livro de contos – “Objecto Quase”, e o “Levantado do Chão” em 1980.

O “Manual de Pintura e Caligrafia” sai nessa época mas eu já vinha a escrevê-lo há tempos. Alguma crítica considera o mais interessante que eu fiz porque é, supostamente, mais moderno na construção, mas tínhamos de saber de que é que estamos a falar porque o moderno de 1987 não é o moderno de 20 anos depois. São coisas que eles dizem.

E depois aparece o “Levantado do Chão” e aí começa realmente outra coisa, quando eu tenho 58 anos. No “Memorial do Convento” tenho 60"

(Fotografia de Alfredo Cunha)


"Começas outra vida?
Boa idade para ter juízo. Não parece ser uma idade em que se deva começar uma carreira de escritor que será, parece que está demonstrado, comparado com o que foi feito antes, a parte séria de um trabalho.

De um trabalho que também tem dois tempos, um que acaba com “O Evangelho segundo Jesus Cristo” e outro que começa com o “Ensaio sobre a Cegueira”. Disseste que são parábolas, eu prefiro dizer alegorias.

Numa conferência que dei em Turim, a que chamei “A Estátua e a Pedra”, tentava explicar a diferença destes tempos: até ao “Evangelho segundo Jesus Cristo”, andei a descrever uma estátua, o lado de fora da pedra, a superfície. É como se a partir do “Ensaio sobre a Cegueira” eu tivesse passado para o interior da pedra, lá onde a pedra não sabe que é estátua. Porque a pedra de dentro não sabe que é estátua.

Nessa altura já vivias em Lanzarote?
O “Ensaio sobre a Cegueira” começou a ser escrito em Lisboa, dez páginas, nada mais. E talvez não seja uma casualidade, aqui podíamos discutir, examinar isto até à saciedade: se o tivesse escrito em Lisboa, seria a mesma coisa que o “Ensaio sobre a Cegueira” escrito em Lanzarote? Enfim, fica a pergunta no ar, que não tem resposta.

É um facto que não poderias ter escrito o “Ensaio sobre a Cegueira” aos 30 anos. É um livro de maturidade.
Aos 30 anos não, claro que não. É um livro de maturidade e é um livro de assombro. Como se eu me perguntasse constantemente: como é que não conseguimos ser outra coisa?

Ainda tens essa pergunta?
Ainda tenho, e cada vez mais. Não somos boa gente.

Por que é que escreveste sobre a infância? É uma tendência natural quando se chega a certa altura de vida?
Não creio que seja, nem toda a gente o faz. A ideia deste livro [“As Memórias Pequenas”, 2006] tem mais de 20 anos mas apareciam outras ideias, para mim mais interessantes ou mais importantes nesse momento. Até que chegou a hora. Pensei: agora é que tem de ser, vou acabar o livro.

E foi rápido?
Não foi muito rápido porque tive uns problemas, essa história do soluço que não desejo nem ao meu pior inimigo. Um mês e meio de soluços contínuos, de três em três segundos, dia e noite. Três ou quatro quilos foram-se embora e ainda não os recuperei. Preocupante, porque se tu tens soluços não dormes. Se apesar de tudo tens a sorte de entrar no sono, enquanto dormes não soluças. Mas abres os olhos e imediatamente recomeçam. Isto arrasou-me. Também me arrasou a medicação, causou-me perdas de equilíbrio. Foi funesto, realmente.

Estavas ainda doente quando acabaste o livro?
Em maio do ano passado tive um descolamento de retina, fui operado em Barcelona. No fim de maio, ainda com o olho tapado da intervenção cirúrgica, acabo “As Intermitências da Morte” e depois aparece-me o soluço. Foi já este ano. O soluço durou um mês e meio, as consequências arrastaram-se, posso dizer, praticamente até ao dia de hoje. Mas já estou outra coisa, já estou ressuscitado.

A notícia de que tinhas escrito as “Pequenas Memórias” aparece na mesma altura em que aparece o livro de Günter Grass [“Descascando a Cebola”, 2006], toda a gente os relacionou.
Por favor, não tem nada que ver.

O que têm em comum é só olharem para trás e coincidirem na publicação?
Sim, claro. Eu quis, de alguma forma, recuperar o miúdo que fui. O livro não segue uma cronologia, são fragmentos que podem ter uma página, duas, três, ou meia página. É como se o livro tivesse sido escrito de acordo com a sequência das recordações tal como elas se me apresentavam. Eu chamava-lhe “O Livro das Tentações”, recordas-te disso? Mas depois achei que não, embora o mundo para uma criança seja uma tentação contínua. Mas era preciso explicar isso para que o leitor não tivesse dúvidas sobre a lógica do título.

Isso tinha nascido no tempo em que eu andava com o “Memorial do Convento”, de uma ideia que estava fora do meu alcance, e que era que a santidade perturba a natureza. Uma ideia inspirada nas “Tentações de Santo Antão” do Bosch, em que aquilo que a gente vê é uma espécie de rebelião da natureza, representada num caso pela beleza, na maior parte dos casos pelo horror, pelo grotesco, pelo disforme e tudo isso. A natureza é provocada pela santidade e manifesta-se.

Mas não tardei muito tempo a perceber que não tinha unhas para tocar esta viola. Isto tinha de ser um Eduardo Lourenço ou alguma pessoa mais por aí. Deixei ficar o título até ao momento em que realmente decidi acabar o livro, porque já tinha muita coisa escrita, e percebi que não fazia qualquer sentido, tinha de assumir que de facto não, vamos arranjar outro título. E saiu este, as “Pequenas Memórias”. São as pequenas memórias de um tempo em que eu era pequeno. Não tem nada que ver com o Günter Grass, é outro projeto, a intenção é outra. Eu só quis pegar na criança, e a criança não tem idade para se matricular nas SS.

E não vais escrever mais memórias?
A continuação? Não. O livro acaba com um episódio na aldeia, teria ou ia a caminho dos 16 anos. O resto não me interessa. Eu nunca escreveria uma autobiografia da minha idade adulta, dos triunfos ou do Prémio Nobel.

Mas publicaste os “Cadernos de Lanzarote”.
Sim, que curiosamente acabaram em 1997. E eu embora tenha material para 1998, decidi não escrever.

Mantens um diário?
Não. Os “Cadernos de Lanzarote” são um diário, durante esses cinco anos. Se não é o caso do Nobel, é possível que eu tivesse continuado. Agora, escrever o ano de 1998 e os seguintes para ter de falar todos os dias do Nobel, ou das consequências do Nobel, não. Acabou aqui. Acabou.

Disse-se que o livro do Günter Grass era uma operação comercial. Estás de acordo?
Nisso não acredito. O Vasco Graça Moura também disse que ainda bem que o “Evangelho Segundo Jesus Cristo” foi proibido, porque assim vendi mais livros. Em declarações à imprensa, defendi o Grass. Ele cometeu um erro aos 17 anos. E a vida depois não conta? Vamos ficar a martelar o homem? Ele já tinha dito que tinha entrado no exército. Enfim, não podia negar-se, e toda a gente aceitou isso, tinha sido ferido, tinha 17 anos, parece que não disparou um tiro sequer. Mas de facto quando ele disse que tinha estado no exército, sabia que tinha estado nas SS. E calou.

E depois há outra circunstância que é o facto de o Günter Grass se ter apresentado como uma consciência moral da Alemanha, tendo ele próprio essa mancha. Além disso, está claríssimo que ele se apresentou voluntariamente nas SS.

Como é que ele viveu com esse segredo? Não é uma situação literariamente fascinante?
É fascinante. A gente faz algumas coisas mal na vida e vivemos com elas. Ele deve ter tido dias maus, mas viveu a sua vida com essa sombra no passado. Podia ter deixado ficar mas provavelmente um dia a verdade sairia ao de cima e ele quis, suponho que foi assim, que essa verdade saísse da sua boca. Demasiado tarde? Quem é que agora julga? Realmente saiu tarde. E sobretudo porque escondeu. Porque ao dizer “estive no exército” estava a esconder, estava a dizer meia verdade.

A verdade é que nós não vivemos aquele momento na Alemanha. Todos os juízos morais esbarram nisso. O que é que nós teríamos feito?
O problema aqui não é o que nós teríamos feito. Eu também fui para a Mocidade [Portuguesa], a inscrição era obrigatória, isso é outra coisa, e a Mocidade Portuguesa, por muito má que fosse, não era as SS. A questão central não é essa, é o papel que o Günter Grass assumiu ao longo da vida. E estava lá aquilo. Podia ter dito: com que direito estou eu a dar lições de moral à comunidade se tenho essa nódoa lá atrás? Deve ter feito essa reflexão agora.

Na tua vida há um facto marcante, tens o antes do Nobel e o depois do Nobel. Mas há também a Pilar.
É o que eu ia a dizer, há outra coisa marcante. Ia interromper-te. Há um antes do Nobel e um depois do Nobel, e há um antes da Pilar e um depois da Pilar.

O que é que mudou na tua vida?
Tudo. Essa é a grande mudança. Ganhar o Prémio Nobel… se escreves, e não escreves mal, e os outros dão por isso, pode acontecer. Mas é muito difícil acontecer o que aconteceu com a Pilar, porque eu estava em Lisboa, ela estava em Sevilha. Como é que estes dois iam encontrar-se alguma vez? É ela que viaja de Sevilha a Lisboa porque me tinha lido – “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e o “Memorial do Convento” – e queria conhecer-me. Não veio à procura de uma aventura.

Ela tinha ido a Lisboa com uns amigos e telefonou para minha casa: “Gosto muito dos seus livros, chamo-me Pilar del Rio, sou de Sevilha. Tem um minuto?” Ela estava no [Hotel] Mundial, combinámos encontrar-nos às quatro horas da tarde de um sábado. Lá fui, não sabia quem ela era, não estava muito habituado a que acontecessem coisas assim mas enfim… Aparece-me e quando olho para ela não acredito porque era uma mulher bonita, elegante. Levantei-me, apresentámo-nos, conversámos. Ela não tinha muito tempo, conversámos sobre o Fernando Pessoa, o Ricardo Reis, o “Memorial”. Fomos ao Cemitério dos Prazeres para mostrar-lhe o jazigo do Pessoa, curiosamente estava partida a cruz que estava em cima do jazigo. Alguém tinha partido a cruz e a tinha levado, algum admirador, algum necrófilo de alguma seita iniciática. Comentei isso mas ninguém fez caso. Depois fomos aos Jerónimos.

Em que dia? Claro que sabes a data.
Catorze de junho de 1986. Levei-a ao hotel, trocámos direções e assim acabou. Alguns relógios aqui de casa estão parados às quatro horas da tarde, os que não funcionam. Há sempre relógios que não funcionam. Ela foi-se embora, mantivemos contacto telefónico, não muito frequente em todo o caso. Ela mandou-me uma ou duas vezes um artigo que tinham sido escritos lá sobre os meus livros. Eu tinha de dar uma conferência em Barcelona e em Granada, em Outubro de 1986. Então aí escrevo a carta mais inteligente de toda a minha vida. Porque eu não sabia nada dela, não sabia se estava casada, se estava divorciada, se era solteira. “Vou aí, tenho uma conferência em Barcelona e em Granada”, e acrescentei: “Se as circunstâncias da tua vida o permitem, gostaria de que nos encontrássemos” e tal e tal. Elegantíssimo.

E ela percebeu o que queria dizer?
Ela respondeu que as circunstâncias da sua vida o permitiam, entendeu o que eu queria dizer. Aí começou a nossa relação, depois ela foi viver para Lisboa, deixou tudo, Sevilha, amigos, família, casámos em 1988. A Pilar é uma pessoa fora do comum em tudo, de uma exigência consigo mesma quase doentia. Ela considera que está neste mundo para servir, coisa que lhe vem da adolescência – ela foi monja teresiana entre os 13 anos e os 20. De certa maneira, continua a ser monja. Já não tem nada que ver com a Igreja, ficou-lhe lá por essa educação mas também porque ela era um campo fértil para isso.

Eu tinha 63 anos, ela tinha 36, alguns dos meus amigos diziam “o que é que vais fazer, é uma loucura”.

Foi o melhor que podia ter acontecido na minha vida. Não quero falar agora do meu passado sentimental, cada um teve e tem o seu, mas não esperava encontrar uma pessoa como a Pilar. Não estava escrito. Ou então estava escrito numa página qualquer do livro do destino a que eu nunca tinha chegado, nunca lá tinha ido ver. Ainda bem para mim. E também quero pensar que ainda bem para ela.

Assim parece.
Creio que sim. Chateia um bocado agora, tenho 84 anos quase e estes 20 anos com ela foram bem vividos, foram anos bons, foram anos felizes, e chateia-me, chateia-me, chateia-me profundamente pensar que viverei mais três ou quatro anos, numa hipótese bastante favorável, chateia-me que seja tão pouco. Percebes? Por várias razões, uma é que uma pessoa não está interessada em morrer, salvo alguma exceção. E a outra é como eu às vezes digo: viver é estar, morrer é já não estar. E isso é que chateia, é que já não estás. Eu posso imaginar esta casa com todo o trabalho que a Pilar vai continuar a ter com a biblioteca, a gestão dos meus livros, neste mesmo salão, ou na cozinha onde sempre vamos parar, ou no jardim que é aqui ao lado. Mas a filhadaputice é que eu já não estou.

E agora pensas muito nisso?
Penso mais do que pensava antes. Não é uma expressão do medo da morte, eu não tenho medo. Não sei o que acontecerá no momento. Tive medo da morte aí pelos meus 16 ou 17 anos, tive a consciência claríssima de que queria morrer. Foi a minha descoberta pessoal da morte. Já tinha assistido a funerais mas aquilo não tinha nada que ver comigo. E houve um momento, que durou duas semanas ou talvez mais, em que eu ia na rua e parava como que fulminado com esta ideia: terás de morrer. Depois, ao longo do tempo, mesmo em situações complicadas, nunca pensei que me pudesse acontecer qualquer coisa definitivamente grave. E é esta coisa, estavas e já não estás. Isso é que é realmente a morte.

É verdade que a Pilar te apareceu numa idade em que muitas pessoas já não estão à espera de nada.
O melhor da minha vida chegou fora do tempo habitual. Acho que foi melhor assim, porque a velhice pode ser uma coisa muito chata. A decadência física, a perda da curiosidade, a perda da memória, todas essas coisas que vêm com a idade, eu felizmente pelo menos até agora ainda não fui alcançado por isso, e então posso dizer que é uma sorte dos diabos. Ter ao mesmo tempo – porque é praticamente ao mesmo tempo – uma obra literária que tem algum mérito, o que é reconhecido pelos leitores, que foi reconhecido pelo Prémio, num tempo em que sentimentalmente encontro uma pessoa como a Pilar, não só pelo facto de conhecê-la mas também porque era a melhor companheira que podia desejar para viver este tempo, em todos os aspectos. O Eduardo Lourenço no outro dia dizia-me: “Eh pá, a tua vida é um milagre!”.

E achas que é?
Talvez seja. Porque nada podia ser previsto, nada. A partir da adolescência podes começar a fazer uma ideia do que será o futuro, ou pelo menos o futuro que tu queres, ou o futuro que tu desejarias, a ver se alguém me ajuda a chegar lá. Nasci onde nasci, vivi como vivi, trabalhei como serralheiro mecânico, durante um tempo que não foi muito, mas fui operário – nem me vanglorio nem me desprezo a mim mesmo por esse facto. Uma vida que não tem um objectivo, percebes? Se tu entrares na Faculdade de Medicina é porque queres ser médico, na Faculdade de Direito vais ser advogado ou juiz. E eu não. Andei de emprego em emprego: Caixa de Previdência da Cerâmica, depois a Companhia Previdente que embora aquilo que alguns escrevedores dizem não e uma companhia de seguros, era uma companhia metalomecânica; vou para os Estúdios Cor, conheço gente.

Não é nos Estúdios Cor que começas um novo caminho?
É um momento importante da minha vida. O diretor literário dos Estúdios Cor era o Nataniel Costa, uma pessoa interessantíssima, casado com a Celeste Andrade, que era sobrinha do João Pedro de Andrade, crítico literário e autor teatral. O Nataniel entrou na carreira diplomática, o que o obrigou a sair para um posto em França.

A gente reunia-se no café Chiado. E um dia em torno do café, o Fernando Piteira Santos, malta assim mais ou menos conspirativa e conspiradora, o Nataniel saiu e disse-me “queria falar consigo, não se importa de me acompanhar?” E saímos.

“Como sabe eu vou para fora, tenho de deixar os Estúdios Cor, claro que continuarei a acompanhar de longe mas tenho de deixar, e gostaria, se você quisesse, que tomasse o meu lugar na editora.” Tínhamos uma boa relação, mas não de amigos-amigos, era uma boa relação, sem mais. Disse-lhe: “É um caso a pensar. Mas por que é que você pensou em mim para isso?” E ele teve uma resposta: “Claro que não faltariam pessoas a quem eu convidar, mas pelo menos algumas delas a primeira coisa que fariam seria esfaquear-me pelas costas, e eu sei que você não é desses”. Bom, de acordo, eu efetivamente não era desses.

Nunca foste desses de esfaquear pelas costas?
Nunca fui desses. Há um episódio anterior. Eu encontrava-me com alguns amigos que não tinham nada que ver com as letras no Café Chiado. Um dia, estava sozinho, pára um táxi em frente da porta, e sai o Humberto d’Ávila, olhando para um lado para o outro e de repente põe os olhos em mim. Nunca tínhamos falado. Eu conhecia-o, sabia quem ele era, ele conhecia-me a mim. “Tenho aqui dois bilhetes para um concerto no São Carlos. Quer vir comigo?”

Era de um violoncelista, salvo erro o Pierre Fournier [Paris, 1906-1986]. E lá fui eu, que conhecia o São Carlos dos tempos da ópera, quando ia com 18 ou 19 anos para o galinheiro porque o meu pai, que era polícia, conhecia os porteiros e eles deixavam-me entrar. Mas estar sentado na plateia do São Carlos nunca tinha acontecido. Se o Humberto d’Ávila tivesse visto outra pessoa que lhe fosse mais próxima… mas quis o acaso, ou o destino, que fosse comigo. E isso também mudou a minha vida, porque a partir daí, embora continuasse com os mesmos amigos passei também a estar com outras mesas onde estavam, por exemplo, o Abelaira, o Zé Gomes, o Piteira, e isso foi uma entrada num mundo que não era o meu, e onde está o Nataniel com quem depois aparece esta conversa.

Os milagres acontecem, mas as pessoas têm de estar a jeito.
A gente tem de estar lá no sítio. Depois, comecei uma carreira literária sem grandes objectivos, com “Os Poemas Possíveis”, o “Provavelmente Alegria”. Aonde é que isto me leva? Eu próprio não sabia. Aquilo que me faz perceber que há um lugar onde tenho de chegar é o “Levantado do Chão”. As coisas iam acontecendo, após um livro tinha a ideia de outro e escrevia. Não vou agora pensar em forças superiores, não tem nada que ver com isso. Há um poema meu n’ “Os Poemas Possíveis” que foi escrito aos 20 ou 21 anos, qualquer coisa assim, que acaba desta maneira:

“Que quem se cala quando me calei/Não poderá morrer sem dizer tudo.” [Poema à boca fechada, “Os Poemas Possíveis”, 1966]

A gente já sabe que não diz tudo nem poderá dizer tudo, mas é como se houvesse algo que tinha de crescer e que crescia de uma forma diferente daquilo que é habitual, crescia mais devagar e eu tinha de ter a paciência de esperar que isso acontecesse, e não forçar, não escrever depois de “Clarabóia”. O que é que eu escreveria mais? Em que direção é que eu iria? Foi preciso vivê-lo para saber. Agora sabemos.

O que estás a escrever agora?
Tenho uma ideia para um livro mas é muito difícil, muito difícil.

Já tens título?
Teria, mas o problema é que lhe falta o miolo. Tenho de deixar que a coisa ande por cá, não mexer muito nela, não pensar muito e um dia pode ser que as coisas se me apresentem mais claras. Estou centrado nisso mas não tenho a certeza do que possa dar. [Este livro virá a ser “A Viagem do Elefante”, publicado em 2008].

Hoje em dia lês muito? O que procuras na leitura?
Ainda leio, leio. Não vou dizer que agora, sobretudo, releio, embora isso aconteça. Mas cansa-me ler um romance, o que não está bem. Então sou autor de romances e isto quer dizer que os meus romances sim e os outros não? Não é isso, evidentemente, sou capaz de reconhecer um bom livro quando o encontro. Parece que tenho um certo instinto para ir a um livro que, por isto ou por aquilo, sinto que aquele, sim, vale a pena. Leio muita coisa que não tem que ver com literatura, tem que ver com filosofia, com história, com astrofísica.

Imagino que leste muita ficção e daí a minha pergunta. Agora é diferente?
Sim, agora é diferente. Recordo-me muitas vezes de uma frase do Alexandre O’Neill a propósito da escrita. Ele dizia: “Não contes a vidinha”. E a impressão que me dá a maior parte do que se escreve hoje em Portugal é que se conta a vidinha. Francamente, não creio que valha a pena."

No site da jornalista, estão diversas entrevistas com "personagens", muitas delas fazem parte do nosso imaginário. São entrevistas riquíssimas, quer pelos temas abordados, mas também pelas experiências que da sua leitura são absorvidos.
Estão presentes, para além de José Saramago, Pacheco Pereira, Vasco Graça Moura, Maria Teresa Horta, Eduardo Lourenço, João Lobo Antunes, Valter Hugo Mãe, e dois textos "O Avô" e "De alma e coração".
Brilhante, aqui, para leitura obrigatória, em http://www.anasousadias.com/

José Saramago: exposição "A Consistência dos Sonhos" - Vídeo de apresentação


Vídeo de apresentação
Exposição "A Consistência dos Sonhos"
 sobre a vida e obra de José Saramago, no Palácio Nacional da Ajuda.

Revista Digital "Blimunda" #7 - Dezembro de 2012

Capa da "Blimunda" #7 - Dezembro de 2012

Destaque para uma compilação de fotografias, devidamente comentadas.
Não é segredo! Nem são as tradicionais selfies dos modernos tempos dos smartphones.
São memórias que muito orgulha a vasta e universal família Saramaguiana. Reviver é recordar, imaginar os momentos, como que, deles tivéssemos feito parte fisicamente, estar lá ao mesmo tempo que estávamos no mundo todo.
Não é segredo! Há que visitar o n.º 7 da nossa "Blimunda":


Link para descarregar, gratuitamente,

Sinopse que pode ser lida e recordada na página da Fundação José Saramago

"Somos a memória que temos,
sem memória não saberíamos quem somos.
José Saramago

A Blimunda 7, segundo número com concepção gráfica de Jorge Silva/Silva Designers, chega com o seu tema de capa dedicado à Memória, a memória de que necessitamos para sabermos quem somos. E, com as palavras de Sara Figueiredo Costa, a memória na Blimunda revisita Istambul e o Museu da Inocência, casa dos objectos elencados na obra homónima de Orhan Pamuk. Mas a memória faz-se também daqueles que desapareceram. Visitámos um cemitério de Lisboa e através das imagens de Sílvia Moldes traçamos um roteiro pelas memórias daqueles que todos os anos, a 1 de novembro, aí se dirigem para homenagear os que, mesmo que apenas fisicamente, já não estão entre nós. E se por ordem do Governo da República Portuguesa o dia 1 de novembro deixará, em 2013, de ser feriado nacional, esta é, também, uma afirmação política.

No infantil e juvenil, Andreia Brites revisita a tradição através de dois livros recentemente publicados que fazem pontes com a tradição ancestral das histórias que todos conhecemos.

A Blimunda despede-se de 2012, desejando a todos os seus leitores um Bom 2013."

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

"José Saramago: Sobre a gravura de David de Almeida"


"José Saramago: Sobre a gravura de David de Almeida"

Link para leitura completa e original, 

"São poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a falanginha e a falangeta. Na verdade, aquele outro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro da cabeça e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções gerais, vagas, difusas, e sobretudo pouco variadas, acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma ordem às mãos e aos dedos, crê, ou simula crer, que isso era tudo quanto se precisava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparecesse feito.



Nunca teve a curiosidade de perguntar a si mesmo por que razão o resultado final desse processo manipulador, sempre complexo mesmo nas suas mais simples expressões, se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instruções às mãos para que lhe fizessem, também por exemplo, uma gravura. Note-se que ao nascer os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando a pouco e pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é evidentemente importante, mas também o é o auxílio daquilo que por eles vai sendo visto e ali se esconde. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro da cabeça possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que isso signifique, foram os dedos e os seus pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi necessário primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito tempo depois o cérebro intuiu que daquele fragmento de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca ou uma coisa a que chamaria ídolo.

O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo agora, quando nos parece que passou adiante delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar numa ferramenta, a dilaceração aguda do raspador, a mordedura do ácido na chapa, a vibração contida de uma folha de papel deitada, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. E as cores. A verdade é que o cérebro não é tão entendido em cores quanto se supõe. É certo que vê mais ou menos claramente visto o que os olhos lhe mostram, mas muitas vezes sofre do que poderemos designar por dificuldades de orientação na hora de converter o que viu em conhecimento.

Graças à segurança inconsciente com que a duração da vida acabou por beneficiá-lo, pronuncia sem hesitar os nomes das cores a que chama elementares e complementárias, mas perde-se imediatamente, perplexo, duvidoso, quando experimenta formar palavras que possam servir de rótulos ou dísticos explicativos de algo inefável, de algo indizível, aquela cor ainda não nascida do todo que, com o assentimento, a cumplicidade e não raro a surpresa dos próprios olhos, as mãos e os dedos vão inventando e que provavelmente nunca chegará a ter o seu justo nome. Ou talvez o tenha já, mas esse só as mãos o conhecem, porque compuseram a tinta como se estivessem a decompor as partes constituintes de uma nota de música, porque se sujaram na sua cor e guardaram a mancha no interior profundo da derme, porque só com esse saber invisível dos dedos se poderá alguma vez pintar a infinita tela dos sonhos. Fiado no que os olhos julgaram ter visto, o cérebro da cabeça afirma que, segundo a luz e as sombras, o vento e a calma, a humidade e a secura, a praia é branca, ou amarela, ou fulva, ou cinzenta, ou qualquer coisa entre isto e aquilo, mas depois vêm os dedos e, com um movimento de recolha, discreto e antigo, levantam da areia todas as cores existentes no mundo.

O que parece único é plural, o que é plural sê-lo-á ainda mais. Não é menos verdade, contudo, que na fulguração exaltada de um só tom, ou na sua musical modulação, estão presentes e vivos todos os outros, tanto os das cores que já têm nome como os das que ainda o esperam, da mesma maneira que uma superfície de aparência lisa e plana poderá estar cobrindo, ao mesmo tempo que os manifesta, os rastos de todo o vivido e acontecido na história do mundo. Toda a arqueologia de materiais é, bem o sabemos, uma arqueologia humana. O que esta gravura esconde e mostra é o trânsito de ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro perguntou e pediu, a mão respondeu e fez."

 * Texto do catálogo de exposição de David de Almeida no Círculo de Bellas Artes,  Madrid, em 2002 (escrito em 1999)




"Breve biografia:
David de Almeida nasceu em S. Pedro do Sul em 1945. Frequentou, na Escola António Arroio, o Curso de Gravador Litógrafo e na Gravura – Cooperativa de Gravadores Portugueses um curso de Gravura em metal sob a orientação de Maria Gabriel. Subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, estagiou nos Moinhos do Vale do Lagat, em França, no sentido de se especializar na feitura manual de papel. Cursou holografia no Goldsmith College (London University) e estagiou com Stanley Hayter no Atelier 17 em Paris, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Artista vastamente premiado, do seu currículo fazem parte inúmeras exposições individuais em Portugal e no estrangeiro, intervenções em espaços públicos e representação em colecções e museus."

Dedicatória "Obrigado, David"
Inscrita no site da Fundação José Saramago, 

José Saramago: "O que me vale, caro Tolentino, é que já não há fogueiras em São Domingos!" (Expresso, 25/10/2009)




Ou o confronto saudável, entre dois homens crentes, cada um à sua maneira, em entrevista a propósito da obra "Caim".


José Tolentino de Mendonça e José Saramago. 
O poeta e o Nobel da Literatura, 
o teólogo católico e o “ateu empedernido”, 
em casa do autor do livro “Caim’’ (Fotografia de António Pedro Ferreira)


José Saramago: "O que me vale, caro Tolentino, é que já não há fogueiras em São Domingos!"

"Em torno do livro "Caim", o Expresso juntou José Saramago e o teólogo católico José Tolentino de Mendonça. Um, de 87 anos, Nobel da Literatura, "ateu empedrenido", como gosta de se apresentar. Outro, de 43, sacerdote e poeta, professor da Universidade Católica. O frente-a-frente foi vivo e aceso."

José Pedro Castanheira, jornalista do Expresso, em 25 de Outubro de 2009

Link, para consulta em http://expresso.sapo.pt/jose-saramago-o-que-me-vale-caro-tolentino-e-que-ja-nao-ha-fogueiras-em-sao-domingos=f543404

"José Saramago (JS) - Eu chamei "livro dos disparates" não à Bíblia, mas a um versículo de uma carta aos hebreus, que está na contracapa e que também serve de epígrafe ao livro. Em toda a Bíblia, depois do assassinato de Abel, não se volta a falar de Caim. Não se sabe porquê, nessa carta aos hebreus há uma referência a Caim e que é completamente absurda e que me permiti chamar-lhe disparate. "Pela fé" - só estas duas palavras dariam para uma larga discussão. "Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus considerou-o seu amigo, etc..". Há alguém capaz de me explicar, em termos racionais e humanos, para que a gente entenda, o que isto quer dizer? É absolutamente incrível!

José Tolentino de Mendonça (JTM)- A tradição, durante séculos, colocou-a no interior das cartas paulinas. Sabe-se, agora, que é de um autor posterior a São Paulo, embora seja um texto do Novo Testamento e com uma teologia admirável.

JS - A teologia admirável atreveu-se a dizer coisas tão impossíveis de aceitar como afirmar que Deus considerou Abel seu amigo. O que é isto? Estamos a jogar com as palavras? Como é que sabemos isso? Quem é que registou? Quando? Como? Onde? Abel e Caim sacrificaram a Deus o que tinham. O pobre Caim, se me permitem que chame pobre a um assassino, ofereceu também o que tinha. Deus desprezou o sacrifício de Caim. Aí, começa tudo: o ciúme nasceu aí, o rancor, a incompreensão, porque Caim não percebe que Deus o rejeite. Isto é um disparate lógico, o que me leva a dizer que este texto faria boa figura num livro de disparates. Mas não chamo à Bíblia um livro de disparates.

JTM - Não encaro esta conversa como um duelo ou sequer como um confronto. Este é um território onde a humildade é extraordinariamente necessária. No fundo, o não-crente e o crente têm ambos as mãos vazias, ainda que de forma diferente. Ambos são buscadores, procuradores. A fé nasce de uma interrogação, de uma abertura à revelação de Deus e do irmão. Tenho o maior apreço pela pessoa de José Saramago e pelo seu trabalho. Um grande criador é um dom extraordinário. E todos, de alguma forma, somos devedores a essa arte humaníssima, artesanal, extraordinariamente solitária e funda, que é a arte de um contador de histórias, de um escritor. Tenho o maior respeito, também, pelo interesse que José Saramago manifesta pelo texto bíblico. É, sem dúvida, dos autores portugueses, dos que mais se interessa, mais convive e mais procura o texto bíblico. Às vezes de uma forma consciente, num confronto e numa luta corpo-a-corpo, como no caso do "Evangelho Segundo Jesus Cristo", ou, agora, em "Caim", onde há luta forte com o texto bíblico. Outras vezes de forma implícita. E às vezes num certo tom, no seu português maravilhoso e inesquecível, que até tem um tom e uma respiração bíblicas, no sentido de um certo tom cosmogónico que, por vezes, a sua narrativa tem.

Há duas coisas que é preciso distinguir. Uma, é a obra literária, que agora foi lançada; outra, é o hipertexto: aquelas declarações de José Saramago em Penafiel, no lançamento do livro, e que acabaram por criar um acontecimento mediático. Sobre isso, algumas pessoas da Igreja e de outras confissões religiosas manifestaram-se, com toda a legitimidade, porque vivemos numa sociedade aberta e de liberdade. São leituras de uma declaração muito virulenta de José Saramago em relação à Bíblia e ao fenómeno religioso. Foi uma declaração nada consensual, e por isso são mais que expectáveis as reacções. Atacar a Bíblia desta maneira, tratá-la como uma coisa que podemos dispensar, e as palavras, com a gravidade com que foram ditas, é alguma coisa que nos enche de perplexidade. Porque a Bíblia é um livro de fé. É inegável que ao longo de séculos tem sido uma fonte de bem, uma fonte de ânimo na aventura humana e uma fonte de criatividade espantosa. A Bíblia é também um grande código da nossa civilização. Claro que podemos criticar esse código, mas um grande homem de cultura, mesmo agnóstico ou ateu, por amor a Bach, por amor a Mozart, a John Steinbeck, a O'Connor, a Faulkner, a Ruy Belo, a Maria Gabriela Llansol, a José Saramago, tem de ter este livro em sua casa."

(José Tolentino Mendonça, José Pedro Castanheira jornalista do Expresso, e José Saramago)


"JS - Eu não preciso de ter, porque em minha casa tenho sete ou oito exemplares. Desde uma Bíblia espanhola do século XVII ou XVIII, até uma Bíblia que me foi oferecida numa Feira do Livro, há três ou quatro anos, em português corrente. Até posso estar de acordo consigo quando diz que na minha prosa e estilo há uma ressonância, uma música que pode ser relacionado com a música, o ritmo, o sentido da pausa, o sentido expositivo, que se encontra na Bíblia. Não nego. Outra das minhas grandes influências, já o disse, é o padre António Vieira, cujos sermões li e reli - algumas vezes terei treslido... Mas acho que terá sido necessário um grande esforço para converter a Bíblia num livro de fé.

JTM - Mas a Bíblia é uma biblioteca. Tem muitos livros. Acha que foi difícil tornar um livro de fé o livro do profeta Isaías?

JS - Não! Como não acho impossível o livro de Job.

JTM - Ou os Salmos. Ou os Livros da Sabedoria ou das Origens.

JS - Tudo isso é certo. Mas ponha-se agora, por um ou dois minutos, no meu lugar. Tomar o Caim como personagem central de uma história não tem nada de gratuito. A questão do Caim é uma velha questão que eu tenho com a Bíblia.

JTM - Mas leu alguns comentários sobre a figura de Caim? Para mim, como exegeta, um dos textos mais admiráveis sobre Caim é o texto de Paul Ricoeur, que faz uma interpretação que, penso, o próprio Saramago achará extraordinária. Ele lê o episódio de Abel e Caim como a história e a construção da fraternidade. O Génesis é uma meditação sapiencial sobre a condição humana. O que são, afinal, os mitos? São meditações sobre a vida. Os autores bíblicos são contadores de histórias, que repassam a vida com um olhar crente, se quisermos. Depois da Bíblia, a fraternidade já não está dependente dos laços do sangue, mas de uma decisão ética. Eu não sou irmão do outro simplesmente porque sou do seu sangue; sou irmão dele se escolher ser seu irmão.

JS - Isso é forçar um pouco as histórias... O que teria acontecido se Deus tivesse aceite o sacrifício de Caim, como aceitou o de Abel? Porque é que Deus recusou o sacrifício de Caim? Esta pergunta não tem resposta.

JTM - As grandes experiências humanas são experiências de escolha com a qual temos de lidar. Veja: porque ama a Pilar e não uma outra mulher?

JS - Eu cá sei!

JTM - Sabe, mas o amor é um lugar sem resposta, sem lógica.

JS - A literatura e a lógica não são incompatíveis!

JTM - Não são incompatíveis, mas não é uma lógica matemática.

JS - É absurdo que Deus tenha recusado o sacrifício de Caim. Não há palavras, não há exegeses ou leituras simbólicas que o justifiquem. Temos aí um obstáculo sério: é que não podemos fazer perguntas aos redactores da Bíblia. Gostaria de saber quais eram as intenções do autor.

JTM - Mas há um sentido imanente no texto.

JS - A Bíblia está traduzida em quase todas as línguas.

JTM - Mas a exegese é feita sobre os textos originais. Eu trabalho sobre o hebraico e sobre o grego.

JS - Textos originais sobre os quais eu não sei nada.

JTM - Não sabe porque não tem investigado.

JS - Não! Simplesmente porque a minha vida é outra.

JTM - Todo o texto bíblico tem em si um densidade inesgotável. É um livro que nunca se acaba de ler. Depois de mil leituras, o texto vence sempre. Este texto é muito importante. Como a carta aos hebreus, que acho injusto que lhe chame "livro dos disparates".

JS - Tenha paciência: eu não lhe chamei isso. O que eu digo, e repito, é que este texto concreto, tal como está redigido, merecia ser incluído num livro dos disparates universais. Esta frase, qualquer pessoa achará que é uma frase completamente disparatada.

JTM - Mas a fé é um paradoxo. Eu não diria um disparate. Querer tratar Deus com lógica é chegar a um beco sem saída.

JS - Então se o beco não tem saída, voltemos para trás.

JTM - Mas acha que pode entender a condição humana eliminando o paradoxo?

JS - Não, não.

JTM - Acha que as grandes emoções, as grandes janelas interiores que o homem traz se justificam apenas pela lógica?

JS - Mas os meus livros estão cheios disso. A questão é que eu não escrevi nenhum livro sagrado! Esse é o problema.

JTM - Sabe que numa sociedade secularizada o José Saramago é uma espécie de referência sagrada. Um homem que vende 200 mil exemplares e tem uma cobertura global... Hoje, o sagrado tem outras formas. E, no fundo, a sua pretensão é também uma pretensão sagrada.

JS - É possível. Aliás, uma das minhas frases preferidas é que "para fazer um ateu como eu, é necessário um altíssimo grau de religiosidade".

JTM - Sem dúvida!

JS - Como é uma frase minha, o que o teólogo Juan José Tamayo escreveu recentemente no diário "El País": "Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio". Eu não sou o tipo de ateu ferrabrás, armado de um chuço para deitar abaixo aquilo que eu não posso deitar abaixo, que é a crença, a fé, na qual eu não toco - na condição que não façam afirmações tão ilógicas como esta.

JTM - Mas podíamos tirar qualquer afirmação de um dos seus livros e colocá-la no livro dos paradoxos universais.

JS - Não me importaria nada. Mas ficaria muito desgostoso se incluíssem uma frase minha no livro dos disparates. A Igreja insiste em que há que fazer uma leitura simbólica dos textos bíblicos. Os crentes e leitores da Bíblia estão instruídos, educados, treinados, manipulados para aceitar aquilo que...

JTM - Porque diz manipulados?

JS - Porque é assim. A palavra é essa. Quer outra palavra? Eu dou-lha.

JTM - É muito importante perceber que os cristãos são criados por liberdade, por amor à liberdade.

JS - À liberdade? Mas o que é que a história da Igreja, e do catolicismo em particular, tem que ver com a liberdade?

JTM - Tem tudo a ver com a liberdade.

JS - Ai sim? Curioso!

JTM - Foi para a liberdade que Cristo nos libertou, afirmou um homem como Paulo de Tarso.

JS - Deixe Cristo em paz!

JTM - Mas esse é o seu erro de base. Deixe-me falar, para voltar à história de Caim e Abel. A Bíblia, precisamente para ilustrar a liberdade, coloca a escolha dos filhos mais novos - Abel, mas também uma galeria imensa de filhos mais novos, que são os preferidos em relação ao poder estabelecido socialmente pelo mais velho. Todo o direito e a lei estão do lado do mais velho. E, contudo, Deus escolhe o mais pequeno. Deus escolhe o último, a vítima, aquele que não tem voz nem vez, o que não é protagonista da História, para ser protagonista de uma história. Tudo isto é uma convulsão social. A Bíblia é um texto inquieto. Se escrutarmos a Bíblia a partir de um raciocínio lógico, claro que vamos encontrar imensos nós cegos, coisas sem resposta. Mas a nossa vida é assim. A história de Abel e Caim é a história desta inquietação sem resposta que a experiência do mal e do bem é na nossa vida. Não é verdade que na Bíblia nunca mais se volte a falar de Abel. Jesus identifica-se muito com a figura de Abel. A Bíblia identifica-se com a figura daqueles que na história são as vítimas. Por isso, dizer que a Bíblia é uma espécie de livro que reúne toda a crueldade do mundo, é dizer uma coisa ao lado do que verdadeiramente é. No seu espírito profundo, a Bíblia é um manual de liberdade, um livro de perguntas. Por muito que lhe custe, José Saramago, quero dizer-lhe que o cristianismo é uma aventura de liberdade.

JS - A mim, o que me vale, meu caro Tolentino, é que já não há fogueiras em São Domingos.

JTM - Não vamos falar das fogueiras, porque infelizmente o fumo das fogueiras enche a história de todos os tempos. Nós estamos aqui, dois homens, a falar no século XXI. E é com a verdade do que vivemos e fazemos que nos temos de encontrar. Aqueles que pensam que são isentos do mal é que me metem medo!

JS - O cristianismo uma aventura de liberdade!? Dizer isso com os albigenses, as cruzadas, o santo ofício, as masmorras da inquisição, as fogueiras a arder e tudo isso...

JTM - Esquece que no tempo da Inquisição havia santos. Nos tempos dos albigenses e das masmorras não deixou o cristianismo de ser uma história de liberdade e humanidade. Você tem uma visão parcial do cristianismo!

JS - Não tenho.

JTM - Como leu o facto do papa João Paulo II ter pedido perdão...

JS - Não sou leitor do papa João Paulo II!

JTM - Não, mas soube, concerteza. Não pode escapar a esta questão. Porque lhe custa reconhecer que um Papa pode ter um gesto humanamente admirável? Porque lhe custa? Não cai do pedestal.

JS - Pontualmente não me custará nada reconhecer algo que de bom, de perfeito, de belo, Papa A, B, C ou D tenha feito.

JTM - Mas então diga o que achou do Papa João Paulo II ter pedido perdão pelos crimes e erros do passado, feitos em nome do cristianismo e da fé? O que acha desse gesto?

JS - Até agora, que eu saiba, deixaram no rol do esquecimento, por exemplo, uma figura como o Giordano Bruno. Porquê? Perdoou mais ou menos a Galileu. Mas Giordano Bruno foi levado à fogueira com um pedaço de madeira fixado na boca.

JTM - Mas o Giordano Bruno era um crente!

JS - É isso que a Igreja não suporta: quer crentes, sim, mas disciplinados.

JTM - Não é verdade. Dentro do Cristianismo, há muitos cristianismos.

JS - O rebanho que vai a Fátima é o que a Igreja quer!

JTM - Não sejamos generalistas, porque entre os milhares de pessoas que vão a Fátima há-de haver quem vá com um espírito de sinceridade e liberdade que nós nunca teremos. Não julguemos!

JS - Não perca tempo a dizer isso, porque eu sei que isso é assim, e respeito a crença e a fé.

JTM - A fé dos simples.

JS - Eu não toco nisso. O meu objectivo é outro: a Igreja como instituição de domínio, como poder, como castradora de algumas das virtudes naturais do homem.

JTM - Mas essa é uma posição, um olhar demasiado ideológico. A igreja não é assim!

JS - Mas porquê demasiado ideológico? Eu sou o único que tem ideologia? Você não tem?

JTM - Tenho! Tenho a ideologia e a pretensão cristã.

JS - Então por que se fala da minha?

JTM - Eu não o acuso de dominador ou de senhor do mundo.

JS - Mas eu também não o acuso a si. Mas posso acusar a instituição a que pertence.

JTM - Mas em que bases?

JS - A história do papado é algo de terrível, de simplesmente tenebroso. E você sabe-o perfeitamente.

JTM - O terrível da história, a experiência do mal e da ferida, está em todas as vidas. Não há nenhuma isenta. Não há vidas e instituições que não tenham sombra. Essa ideia que é preciso um manipulador por trás para se entender a Bíblia é uma ideia peregrina.

JS - Quando o manipulador não está imediatamente por trás, está um pouco mais atrás e mais atrás - mas está lá. Garanto que está.

JTM - Mas donde lhe vem essa desconfiança?

JS - Da história, da realidade, dos factos. Não lhe parece que vivemos numa sociedade altamente manipulada?

JTM - Eu acho que sim e que um espaço de liberdade é precisamente a complexidade dos textos fundadores, entre os quais se conta a Bíblia, que é um manifesto contra esta sociedade da manipulação.

JS - Mas ajudou muito.

JTM - As ajudas podem ser involuntárias. Não podemos culpar a Bíblia das leituras erróneas.

JS - Mas que ideia é a vossa de que eu culpo a Bíblia!?

JTM - São palavras suas! Voltou a ler as palavras que disse em Penafiel?

JS - Eu tenho um livro na mão, e é um livro cheio de violência, de carnificinas, incestos. Um manual de...

JTM - Mas toda a literatura é isso. Podemos dizer isso das obras completas de Shakespeare, ou das obras completas de Saramago.

JS - E o que é que eu resolvo com essa justificação?

JTM - A vida é literatura e a Bíblia usa aquilo que é próprio da literatura para fazer uma leitura crente da condição humana. Porque poucos lugares há, para além da literatura, capazes de espelhar a condição humana na sua inteireza. A Bíblia não é um código de direito, nem um livro de lógica.

JS - Mas foi-o. E sem esquecer o Deuterónimo!

JTM - Eu não percebo esse seu... Há um poema da Adília Lopes que dia que "a literatura não é um ajuste de contas, é um ajuste de cantos".

JS - Desculpe: esse verso é muito interessante, mas é um simples jogo de palavras.

JTM - Acha que a poesia é um simples jogo de palavras?

JS - Não torça aquilo que eu disse.

JTM - Estes versos são só um jogo de palavras?

JS - Não lhe permito que tire essa conclusão. O dístico que acabou de citar é um jogo de palavras. Que nós, escritores, fazemos muito, e muitas vezes com a má consciência de que não significa grande coisa, mas que soa bem e é bonito. Há pouco, disse que Deus está do lado da vítima. Efectivamente, Abel é uma vítima do irmão. E Caim, não é vítima de ninguém?

JTM - Todos somos vítimas.

JS - Que nós, simples humanos, sejamos vítimas e carrascos uns dos outros, muito bem. Agora, que Caim seja vítima de Deus, não há lógica no mundo, nem exegese, que o justifique.

JTM - Porque diz que Caim é vítima de Deus e não compreende que é uma leitura sapiencial que o livro do Génesis faz?

JS - O que é isso de uma leitura sapiencial?

JTM - A Bíblia é um teatro de Deus, uma reflexão sobre Deus.

JS - Um teatro de Deus? O que é que vocês sabem de Deus?

JTM - Nós sabemos de Deus o que Jesus de Nazaré nos revelou acerca de Deus!

JS - Não misturemos alhos com bugalhos. Não vale a pena! Repare nisto: antes da criação do universo, Deus, que se saiba, não fez nada. Não consta. Chegou um momento em que, não se sabe nem porquê nem para quê, decide formar o universo.

JTM - O mistério aflige-o sempre...

JS - Limito-me a verificar. Construiu um universo. Coisa que, durante muito tempo, pareceu relativamente fácil, mas a partir de Darwin já não é tão fácil - e com as novas descobertas científicas... Depois, ao sétimo dia, descansou e continuou a descansar até hoje - não teve mais participação.

JTM - Não é a opinião de milhões de seres humanos ao longo de gerações. Porque não é sensível à experiência que os outros vivem?

JS - Não! Eu, às vezes, digo que deus e o diabo só têm um lugar onde habitar: é na cabeça humana. Não há outro lugar em parte nenhuma do universo onde eles possam estar. Estão na nossa cabeça. Até mesmo na minha cabeça.

JTM - Essa é uma visão sua.

JS - Minha?

JTM - O que é estranho é o seu desejo de excluir a Bíblia, de fazer de contas que ela não existe.

JS - Como pode dizer isso a mim, que escrevi o "Evangelho Segundo Jesus Cristo" e, agora, o "Caim"? Eu sou aquele que diz que, embora seja ateu, estou empapado de valores cristãos.

JTM - Isso é muito bonito - e verdadeiro!

JS - Já o disse e repito-o em qualquer lugar. Mas isso não me impede de fazer juízos críticos sobre a religião.

JTM - No entanto, as suas entrevistas redundam facilmente numa caricatura. O que choca, por vezes, na sua linguagem, é o lado caricatural.

JS - Perdão: vocês merecem, tal como qualquer instituição, serem caricaturados. Vocês não estão acima da caricatura.

JTM - Nós não estamos, nem o José Saramago está.

JS - De acordo.

JTM - Mas é que, hoje, você tem muito mais força...

JS - Que a Igreja Católica?

JTM - Não! Isso não sei se é a sua ambição - mas não é a realidade. É preciso ver que a sua palavra tem uma responsabilidade social e civilizacional.

JS - Assumo-o totalmente.

JTM - Quando um homem de cultura diz que a Bíblia é um livro de crueldade, penso que isto, em termos civilizacionais, é um erro.

JS - É a sua opinião, não é a minha.

JTM - É um erro porque põe em xeque algumas das obras mais belas e extraordinárias que a nossa tradição cultural nos legou.

JS - Escute uma coisa: eu nunca neguei que a Bíblia é tudo isso que se diz dela. Claro que é.

JTM - Então diga alguma coisa bela da Bíblia. Fale com o coração!

JS - É quase uma simples questão estatística: milhões de exemplares da Bíblia lidos, estudados, aprendidos, decorados, em todo o mundo.

JTM - Ainda esta semana saiu mais uma tradução da Bíblia para português.

JS - Já tínhamos tantas! Porquê mais uma?

JTM - Dizer isso não parece uma coisa digna de si.

JS - Estou na brincadeira, homem!

JTM - Pois é! Está a ver? É que diz as coisas em tom jocoso, mas elas têm um alcance que não é justo. Você não pode dizer isso!

JS - O que me valeu foi ter escrito este livro donde a jocosidade não está ausente. Já o leu até ao fim?

JTM - Evidentemente que sim.

JS - Até ao dilúvio?

JTM - Até ao dilúvio e até a uma frase terrível com que o livro acaba, que é talvez uma das frases mais terríveis da literatura portuguesa: "A história acabou, não haverá nada mais que contar". Dá muito que pensar deste fecho definitivo da história. O exercício que faz, em si, é mais que legítimo. Mas a grande questão é que aquilo que diz, muitas vezes, é marcado por um exercício de intolerância.

JS - Eu, intolerante? Eu?

JTM - Todos podemos ser intolerantes. O José Saramago porque não pode ser intolerante? Todos podemos ser e todos certamente o somos.

JS - Se lhe quiser chamar radicalismo, aceito. Mas não intolerância. Não sou intolerante.

JTM - Aquelas declarações de Penafiel são declarações de intolerância.

JS - Não são nada!

JTM - Diz o José Saramago. É um manifesto de intolerância do ponto de vista cívico.

JS - Não é certo que o livro está cheio de crueldades? Que não lhe faltam incestos? Que tem isso e muito mais, e carnificinas de todo o tipo?

JTM - E acha que a Bíblia é só isso? Acha que descrevendo isso se descreve o que é a Bíblia? Acha que esquecendo tudo aquilo que a Bíblia é, que é também a sua natureza de milagre, está a ser tolerante? De que parábola é que gosta mais, das que Jesus contou?

JS - Talvez a do semeador. A semente que cai na pedra...

JTM - A Simone Weil dizia que entre dois homens que estão a discutir, um que crê e outro que não crê, o que não crê está mais perto de Deus do que aquele que crê.

JS - Oh diabo! Oh diabo!

JTM - Por isso é que o discurso cristão nunca pode ser um discurso de exclusão. Dizer que o cristianismo é sobretudo uma aventura de liberdade é para levar muito a sério. Ver o cristianismo do ponto de vista do poder, da força, da imposição, é um olhar possível, mas não faz justiça à radicalidade humana que o cristianismo foi semeando. Se quisermos fazer justiça à história, temos que perceber que o cristianismo está do lado dos heterodoxos, dos insubmissos, dos mártires, das vítimas, daqueles que não têm voz.

JS - Mas no que toca a vítimas, o cristianismo contribuiu com uma quota importante, não?

JTM - E chora e arrepende-se de todo o mal que fez.

JS - Desculpe, Tolentino, mas não demos por isso. Aqui, pelo menos, não chegou uma palavra que signifique isso. O que está a dizer são palavras de ouro, mas que provavelmente estão no seu desejo. Você desejaria que assim fosse.

JTM - Há tanta gente a dizer isto!

JS - Meu caro: não me tiram nem sequer um grama ou um átomo da minha raiva contra a instituição chamada igreja católica. Eu não sou nenhum ferrabrás, nem nenhum enviado do demónio. Mas o que merece crítica, pode contar com a minha pessoa. Ao contrário do que diz, eu não sou intolerante. Radical, sim. E a isso não renuncio. É uma atitude muito exigente, moralmente exigente, que me leva a insurgir-me contra o que não me parece bem.

JTM - Eu não digo que o José Saramago é intolerante. Digo que as suas palavras de domingo foram intolerantes, o que é uma coisa diferente. Ninguém está imune à intolerância. Talvez os momentos mais difíceis do cristianismo tenham sido aqueles em que, fechados em nós próprios, achámos que temos a razão, ou que não errámos, ou que estamos costurados no interior de uma certeza. Há palavras nossas que iluminam e outras que enegrecem. A sua postura ética, atitude moral, a sua intransigência, enobrece-nos a todos. É bom que um escritor seja exigente. Isto não significa que nas palavras que proferiu nós não víssemos uma limitação muito grande. E na forma como o seu romance está construído, há também zonas de ambiguidade, a começar pelo "livro dos disparates". A Bíblia é um grande património da humanidade, é um lugar onde todos nos encontramos. Pela primeira vez, todas as componentes da sociedade estão presentes numa grande narrativa literária, porque precisamente a Bíblia não exclui. A Bíblia é um coral de vozes humanas. E por isso é tão importante o papel de Caim - ele é o nosso irmão...

JS - Disse que é um coral, mas, sem querer ser frívolo - que não está nada na minha natureza, porque tomo tudo a sério -, com muitas desafinações.

JTM - Mas as desafinações fazem parte da história humana. É preciso amar a imperfeição!

JS - Não escrevi um livro sobre a Bíblia. Escrevi a partir de um episódio bíblico e construí uma história. Caim não foi um capricho de há uns meses, é algo que sempre me preocupou. A mim, a Bíblia permitiu-me escrever o que não estava dito - embora não tenha sido a primeira pessoa a fazê-lo.

JTM - Dizer isso é fazer um elogio extraordinário à Bíblia.

JS - Para terminar: escrevi, penso, alguns bons livros. No meu estado de espírito presente, considero este o meu melhor livro.

JTM - Tenho a humildade de não concordar. No conjunto da sua obra, este é um exercício, a par dos seus grandes livros.

JS - De exercício não tem nada, meu caro. Tire lá esses óculos e ponha outros, e leia-o como deve ser lido.

JTM - Li o livro com muita atenção e hei-de voltar a ele. Mas é uma narrativa que não tem a grande complexidade nem a invenção romanesca de outros romances. Mas percebo que esteja tremendamente ligado a este livro.

JS - Assim é. Dois homens de boa fé sempre se podem entender."

Versão integral do texto publicado na edição do Expresso de 24 de Outubro de 2009, 1.º Caderno, página 20 e 21.