Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

"O homem a quem roubaram as oliveiras da infância" - Texto de Adelino Gomes (Público, 12/11/2006)

"O homem a quem roubaram as oliveiras da infância"

Texto de Adelino Gomes, publicado no jornal Público, em 12 de Novembro de 2006

Aqui, em http://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/o-homem-a--quem-roubaram--as-oliveiras--da-infancia-106925



"Vamos! Vamos!", diz, poucos minutos após a primeira paragem.
Foi ele quem chamou a atenção para a curva do rio. Um carro desviara-se da estrada principal. Preparamo-nos para esclarecer as razões da inusitada incursão de um casal entre uma e a outra estreita margens, mas o escritor Nobel mostra-se impaciente. Tem pressa de chegar à Azinhaga, a terra onde nasceu. 
O que vê, porém, à medida que avança o carro - no qual viajam, além dele próprio, José Saramago, a mulher, Pilar, o fotógrafo espanhol Jose Manuel Navia e este jornalista do PÚBLICO - deixa-o inconformado. 
- Aqui havia oliveiras - começa por constatar. - Roubaram-me as minhas oliveiras! - protesta, por várias vezes, à medida que desfila aos nossos olhos a interminável, monótona paisagem, nua de árvores.
- Olhem para estes campos [de milho transgénico]. Aceitaram as indemnizações que a CEE ofereceu e agora temos isto, tudo igual...
Iniciámos a peregrinação a pé pela aldeia. Quase nenhuma emoção perante o lugar em que outrora se ergueu a casa natal. Está guardada para mais à frente, no que resta da casa que foi dos avós maternos.
Pilar acha que deve comprar o espaço. Não parece ser essa a sua ideia
Desfia recordações para o fotógrafo espanhol, que pretende ilustrar, com imagens desta peregrinação, o texto que a revista de domingo do El Pais lhe vai dedicar, na série com grandes escritores mundiais deste Verão de 2001. 
Os locais gostam de lembrar que a aldeia, administrativamente situada no concelho da Golegã, tem foral desde D. Sancho II e que é a mesma a que, antes da fundação de Portugal, chamavam Santa Maria do Almonda. Características edificações na rua principal constituem a prova de que ali se ergueram, a partir do século XII, palácios, solares, igrejas e capelas, o mesmo será dizer, "ali se foi construindo um país". 

(Estátua de José Saramago, na Azinhaga)


A Azinhaga foi, nos célebres concursos salazaristas de António Ferro, a "aldeia mais portuguesa do Ribatejo". O contacto com os toiros, nas fainas do campo, fez da raça de maiorais desta terra "de lezírias e espargais", pelo saber, os mais famosos campinos das terras da Borda d"Água, diz uma nota do rancho folclórico "Os Campinos da Azinhaga", lida durante a breve paragem para almoço.
Não foi para estas divagações, contudo, que José Saramago se deslocou de Lisboa. Sobe, e nós com ele, ao campanário da igreja. Dá um beijo a uma prima, encontrada na rua. Ruma ao Paul do Boquilobo, para onde gostava de ir, em longas viagens de dias, e para onde - torna-se claro nos gestos, nas recordações, na insistência em ir até onde o carro pode chegar - não se importava nada de partir agora mesmo em nova aventura. Boquilobo, oferecida, depois da crise de 1385 por D. João I a João das Regras com a legenda "Melhor lhe dera se melhor houvera".
Passados cinco anos, estas recordações tomam a forma de livro - As Pequenas Memórias (Editorial Caminho) - que aqui mesmo vai ser lançado, em cerimónia de ressonância internacional, na próxima quinta-feira, 16, num regresso simbólico aos lugares da infância e adolescência do escritor, na aldeia ribatejana. 
Casas, oliveiras, arbustos, dois rios, um pântano. Que importa que deles só restem os dois últimos? Que tenha desaparecido sob um monte de escombros a casa que foi a pobríssima morada dos avós maternos de quem os leitores já sabem os nomes, desde o discurso de aceitação do Nobel da literatura, em 1998 (Josefa e Jerónimo se chamam, este último, analfabeto, "o mais sábio dos homens" que Saramago conheceu)? Que importam os estragos do prémio da CEE sobre os olivais desaparecidos?
A cada instante, José levantará as paredes da casa branca, plantará as oliveiras, fechará o postigo da porta e a cancela do quintal e dirá: "Avó, vou por aí dar uma volta", e ouvi-la-á responder: "Vai, vai", meterá "um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge", pegará num pau para qualquer mau encontro canino e partirá para uma das quatro partes em que o universo se dividia então para a criança "melancólica", para o adolescente "contemplativo e não raro triste" que era ele: o rio, "os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado", a mata de tramagueiras, faias, freixos e chopos que ladeia o Tejo, um pouco à frente da confluência com o Almonda, ou o Paul do Boquilobo, "um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso". 
Tudo nítido setenta anos depois - paisagem, gentes, afectos -, numa revisitação através do "poder reconstrutor da memória". E da literatura. 

Adelino Gomes

Citador #19 ... em "A Caverna" - Cipriano Algor e o "segredo da abelha"

Citador #19
Cipriano Algor e o suposto "segredo da abelha"


(...) "E quando isso acontece, que fazem, perguntou Cipriano Algor por perguntar, ao que o subchefe respondeu em tom condescendente, Meu caro senhor, suponho que não está à espera que eu lhe vá descobrir aqui o segredo da abelha, Sempre ouvi que o segredo da abelha não existe, que é uma mistificação, um falso mistério, uma fábula que ficou por inventar, um conto que podia ter sido e não foi, Tem razão, o segredo da abelha não existe, mas nós conhecem-lo. Cipriano Algor retraiu-se como se tivesse sido vítima de uma agressão inesperada. O subchefe sorria, insistia complacente que a ideia era boa, mesmo muito boa, que ficava à espera da primeira entrega e que depois já lhe daria notícias. Oprimido, sob uma inquietante impressão de ameaça, Cipriano Algor entrou na furgoneta e saiu do subterrâneo." (...)

em, "A Caverna"
Caminho
Páginas 239 e 240

"Um ensaio itinerante para ler José Saramago - paisagens", de Pedro Fernandes (Revista 7faces)

Um ensaio itinerante para ler José Saramago - paisagens, de Pedro Fernandes de Oliveira Neto (encarte para a edição especial Variações de um mesmo tom: diálogos sobre a poesia de José Saramago)

Aqui, o link para consulta, em http://www.revistasetefaces.com/2012/07/blog-post_22.html



Género
Ensaio

Capa
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Páginas
102

Outras informações
O catálogo inclui entrevista exclusiva com o professor Horácio Costa e inéditos de José Saramago

Descrição
Não foi de heterônimos como Pessoa, que foi único em cada um dos vários, mas disse ser a soma de todas as suas personagens. Não alçou a qualidade de Super-Camões, como Pessoa ao encontrar Portugal para encontrar a língua, Mensagem, mas sucede e ladeia Camões, e sucede e ladeia Pessoa, como escritor, que se sentiu responsável pela sua língua, por pensar o destino do povo Português, lançando jangada de pedra ao mar, assumindo o posto de Ricardo Reis, a vagar por Portugal, a procurar quê de povo, a encontrar quê de gente, ao enxergar todos cegos, e entregar a uma mulher, a mulher do médico, olhos para vê o que não se via e coragem, coragem de um povo que levantado do chão, cumpre o seu destino de ser filho, e filho, pai, de pai, avô, numa ciranda de povo, que se é continuidade e se é continuísmo, como foi continuidade e continuísmo de um avô analfabeto e criador de porcos, fiel ao seu ofício a cumprir destino, como certo oleiro que ver recusado pelo centro a matéria de trabalho de suas mãos, mãos que também, ao correr teclas, postaram um não reescrevendo a história da presença moura em Lisboa, postando imagens, certo de que, se pintura, há o momento em que não comporta mais pinceladas, mas se palavras, podem prolongar-se ao infinito, lição de manual, de pintura, de caligrafia, de viagem que pela geografia dos mitos, das crenças, da geografia, viagem do viajante que passeia aqui e acolá, a ermo, armado de humor, armado de ironia, por temas, e por espaços quando viajante às margens do Douro vê que a mistura das águas e o ir e vir dos peixes não responde a fronteiras, fronteiras que pode haver entre si e si mesmo, quando duplicado, cópia de si mesmo, no tempo que viu todas as reproduções desfazer o insubstituível, e que não calou caderno porque nele expôs pensamentos acerca das pessoas e das coisas pelos anos, observador de Lanzarote, que antes de lá está e por razão de lá ir, contou de Cristo e o Evangelho, e na barca presenciou entre o Deus pai e o Cristo filho a conversa de todos os tempos enquanto Caim viajava tempos por sina e imposição deste mesmo Deus, pois este nome, José, de este também outro nome, Saramago, que fez da escrita, da devoção à língua, do senso de ser português, e de ser português, ser Camões, ser Pessoa, ser Portugal, que cumpriu seu destino de achar o mundo em caravelas, procurou levar Portugal a cumprir seu destino pela língua em palavras, fiou ser estes todos os nomes.

Gustavo Leite Sobral

"Variações de um mesmo tom: diálogos sobre a poesia de José Saramago" de Pedro Fernandes (Revista 7faces)

7faces - Caderno-revista de poesia . Edição especial. Julho de 2011. "Variações de um mesmo tom: diálogos sobre a poesia de José Saramago".

Aqui, o link, em http://www.revistasetefaces.com/2012/07/7faces-caderno-revista-de-poesia_22.html

Organização
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Projeto gráfico, editoração eletrônica e diagramação
Pedro Fernandes de Oliveira Neto

Conselho editorial para esta edição
Profa. Dra. Aurora Gedra R. Alvarez (Universidade Presbiteriana Mackenzie), Prof. Dr. Carlos Reis (Universidade Aberta de Lisboa), Profa. Dra. Conceição Flores (UnP), Prof. Dr. José Rodrigues de Paiva (UFPE), Prof. Dr. Gerson Luiz Roani (UFU), Profa. Dra. Maria Edileuza da Costa (UERN), Prof. Dr. Márcio de Lima Dantas (UFRN), Prof. Dr. Márcio Muniz (UFFS), Prof. Dr. Miguel Alberto Koleff (Universidad Católica de Córdoba)

Páginas
232

Formato
edição eletrônica

Autores desta edição
Carlos Reis, Fernando J. B. Martinho, José Rodrigues de Paiva, Sandra Ferreira, Jorge Valentim, Lucas Antunes Oliveira, Rosidelma Pereira Fraga, Maria Elena Legaz, Hilda Orquídea Hartmann Lontra, Elielson Antônio Sgarbi, Luciana Stegagno Picchio, Soares Feitosa, José Saramago, Horácio Costa


Encarte
Encartado a esta edição foi publicado o ensaio "Um ensaio itinerante para ler José Saramago - paisagens", de Pedro Fernandes de Oliveira Neto.



Descrição
Depois de publicado Terra do pecado, em 1947, seu primeiro romance, José Saramago passaria um intervalo de quase vinte anos sem publicar nenhum outro livro. O que não quer dizer que o escritor durante todo esse tempo não tenha escrito. Do contrário. Inéditos expostos em A consistência dos sonhos, exposição organizada pelo curador espanhol Fernando Gómez Aguilera, deu contas de que nesse período Saramago foi tão polígrafo quanto no período no qual se consagra escritor. Esboço de poemas, contos, romances inacabados, resenhas, crônicas, peças de teatro, enfim, uma leva de materiais escritos que dão contas de um Saramago que buscava, em todos os territórios da escrita, um lugar próprio. E o encontrou. Tardiamente, como romancista. Mais precisamente em 1980, com o romance Levantado do chão. Antes, porém, depois do longo verão das publicações, a 'reestreia' se dá em 1966, e vem através de um gênero no qual o autor nunca será reconhecido pelo tal: a poesia.Entretanto, da extensa obra deixada por José Saramago que temos conhecimento, convém sublinhar que, também a poesia, se constitui num naco significativo no âmbito do conjunto completo da sua produção literária. Para efeito, citem-se: Os poemas possíveis - o referido livro de 'reestreia' literária do escritor, publicado naquela que, à época, foi a mais importante coleção de poesia portuguesa, a coleção Poetas de Hoje;Provavelmente alegria, em 1970; e O ano de 1993, publicado em 1975, que é o que podemos chamar de sua assinatura oficial ao fim da produção no gênero. Fruto de uma “fabricação poética” (para usar os termos do próprio escritor em entrevista a Carlos Reis, 1998), todo esse material seria revisto mais tarde por Saramago e republicado não só com um certo número de rasuras, mas também com um certo número de emendas. Entendendo que, antes de ser espaço-prólogo de escrita, isto é, de ensaio para composição da obra que se estende pós-poesia, a obra poética de José Saramago tem, coerentemente, um significado para o quadro da poesia portuguesa contemporânea e, consequentemente, na produção literária do escritor. Trata-se, no entanto, de uma das zonas de criação do escritor menos explorada ou pelo menos ainda não estudada com profundidade, seja pela crítica brasileira, seja pela crítica estrangeira. A concepção e a elaboração desse número especial do Caderno-revista 7faces pretende chamar atenção para esta parte da obra de José Saramago e pretende ser um espaço para um diálogo acerca desse material poético do escritor português e recebe textos que, no seu âmbito, se propõem a discutir a poesia e aspectos concernentes à poesia do escritor. A ideia dessa edição nasce ainda em junho de 2010. Ao longo desse período uma série de ações foi realizada, dentre as quais, cito a inauguração do espaço Um caderno para Saramago, a realização do concurso Uma página para Saramago, a realização dos cursos Um universo de José Saramago - paisagens e Diagnósticos do presente em José Saramago, Chico Buarque e Jorge Reis-Sá. Esta edição que o leitor tem agora em mãos é, pois, fruto de um esforço de longa data e coletivo e, antes de ser um trabalho de leitura para uma face menos escura da literatura saramaguiana, uma homenagem que tem por interesse perpetuar uma obra que foi e é um acontecimento relevante para o universo das literaturas em expressão portuguesa.

Pedro Fernandes
caderno-revista 7faces

Aqui, o link, em http://www.revistasetefaces.com/2012/07/7faces-caderno-revista-de-poesia_22.html


José Saramago (a pretexto de "A Viagem do Elefante") - Entrevista de Anabela Mota Ribeiro

Aqui, o link da entrevista original, no site da autora,
em, http://anabelamotaribeiro.pt/jose-saramago-a-pretexto-de-a-viagem-do-122930

"José Saramago (a pretexto de "A Viagem do Elefante")

José Saramago num sábado à tarde. Sala aquecida, luz fria de um Inverno que ainda não é, chilreio de meninos que passam no bairro. Talvez de alguns pássaros, também. Ele parece ser maior do que a casa; melhor, as pernas parecem não caber no sofá, no espaço disponível. Troca-as, destroca-as, o joelho sempre erguido e pontiagudo. Tem ainda a imponência de um gigante. Mas agora seco, delgado – como o avô Jerónimo – o cabelo ralo, um fio de voz. De muitas palavras – ao contrário do avô Jerónimo. Nessa tarde, Saramago foi assim.
Ganhou peso, tem uma espécie de protuberânciazinha no lugar da barriga. Há um ano julgou que morria. Pensou que não avançaria nas 40 páginas já escritas. Avançou. Ganhou peso. Ou, como Saramago diria, porque é muito ordenado no pensamento, ganhou peso, avançou. Chegou ao seu destino. Escreveu “A Viagem do Elefante”.
Saramago empenhou na escrita do livro a sua palavra e a sua vida – como se pode ler. Por agora, o destino é esse. Depois, não pode ser outro senão a morte. Conversa com um homem lúcido.
O livro relata a viagem de um elefante, presente de casamento do rei Dom João III e Dona Catarina a Maximiliano de Áustria, de Lisboa a Viena. É uma “visita sentimental de um bruto paquiderme”, que passa por Valladolid, o mar, Génova, as montanhas; Viena, por fim. Passa por lobos e desfiladeiros, aldeias curiosas, em ambiente de campanha. Atravessa a Igreja Católica sedenta de um milagre e as lutas internas com o luteranismo. O condutor do elefante não é aquele que conduz a história – esse papel fica para o narrador. Tem um nome indiano que significa branco. E o elefante, quem é? E para onde vai, além de Viena?


Começamos pelo livro: “A ressurreição, afinal, estava sobretudo, dependente da livre vontade de lázaro e não dos poderes milagrosos, por muito sublimes que fossem, do nazareno. Se lázaro ressuscitou foi porque lhe falaram com bons modos, tão simples quanto isso”. Na sua doença, foi você que quis viver ou foi Pilar que lhe falou com bons modos?
Eu não lhe podia falar com maus modos. Nem tinha forças. E ela muito menos. Comunicávamos com as frases que eu conseguia arrumar na minha cabeça, entre o cá e o lá em que me encontrei numa fase – demasiado longa, para meu gosto. Salvar-me, transformou-se no objectivo e desejo de todos os meus amigos, e, no caso de Pilar, numa obsessão. Enfim, escapei. Dizer que lhe devo a vida… Devo-lhe a vida a ela, aos médicos, a toda a gente que me manteve à tona, e também devo a vida a mim mesmo.

Antes disso, estava entre a consciência e a inconsciência?
Tenho a memória de que qualquer coisa na minha cabeça entrava em deriva, e eu deixava-me ir. Não era ir atrás dos pensamentos, porque, em rigor, não posso dizer que estava pensando. No quarto, já com largos períodos de consciência total, ficava por vezes numa espécie de limbo. E eu via isso. Era como se fosse um ecrã. A comparação maior é o céu negro com quatro estrelas. Mas no meu caso não eram estrelas. Eram simplesmente quatro pontos brancos, dispostos em quadrilátero, não regular. Era para mim claríssimo, e defenderia essa ideia contra quem fosse, que eu era aquele quadrilátero.

Como se se visse de fora?
Sim. Esta complicadíssima experiência teve outro efeito: usamos uma linguagem que não é sempre a mesma, que vai variando consoante os tempos que vivemos. Somos um armazém de sedimentos, ou extractos linguísticos. São os que usámos e retivemos nos diferentes períodos da nossa vida. Claro que quando estava na aldeia, na minha adolescência, tinha uma linguagem, não só da época como do lugar. E ficou cá. Quando a minha vida mudou, em Lisboa, e aos 24 anos publico um livro, já era outra pessoa, outra linguagem, outro modo de entender as coisas.

No livro, dois personagens mudam de nome. O condutor do elefante passa de Subhro a Fritz e o elefante de Salomão a Solimão. Como se uma palavra diferente dissesse respeito a uma outra identidade.
Exacto. O que é que aconteceu durante a minha doença? É que a ordem destes sedimentos alterou-se. Encontro-me diante de uma evidência, que demonstraria com o próprio livro. Este livro está escrito de uma maneira que é simultaneamente moderna e quase arcaica. Algumas coisas que estavam lá no fundo, nessa revolução interior de extractos linguísticos, passaram à superfície. Na hora de escrever o livro apresentaram-se-me construções frásicas, certas utilizações de verbos, palavras que não recordava ter usado nos últimos 40 anos.

É pela palavra que nos fazemos, que nos criamos, que nos salvamos.
Não temos outra coisa. É que não temos outra coisa. Somos as palavras que usamos. A nossa vida é isso. Se eu digo: estou pensando, e me perguntar: “em quê?”, a minha resposta só pode ser com palavras. Não posso tirar o pensamento da cabeça e pô-lo em cima da mesa: aqui está o que eu estava pensando.

O livro anterior a este é um livro de memórias, em que se volta, sobretudo, para a infância – um sedimento muito antigo, onde as palavras eram outras. O inconsciente tê-lo-á guinado para aquele lado? Como é que passa de um livro ao outro?
O livro d’ “As Pequenas Memórias” é escrito com linguagem que uso hoje. No caso d’ “A Viagem do Elefante” é como se houvesse outra mão que me guiasse. Para que eu aceitasse, recebesse e utilizasse palavras e expressões. O que mais caracteriza este livro é o tom narrativo, o modo de narrar. O narrador é um personagem numa história que não é sua. Sempre defendi a ideia de que o narrador não existe. Neste livro resolvo a questão – pelo menos resolvo-a para mim, que é a única coisa que importa. Passando a considerar-me autor sim, mas autor-narrador, não dissociado. Assumo tudo.

É o narrador-autor, aquele que conduz a viagem. Mas está também nas outras personagens? No cornaca (aquele que guia o elefante), no comandante (que se pode imaginar ser um alter-ego seu), no elefante.
Provavelmente estou em todas as personagens. Os dados históricos comprovados que se referem à viagem deste elefante cabem numa página, e ainda sobra. Portanto, este livro é um livro de invenção. As personagens históricas, o arquiduque, a arquiduquesa, D. João III, a Rainha Catarina, vejo-os mais como comparsas – embora estes últimos tenham um papel, o que têm para dizer tem importância no contexto do livro. O resto, o capitão de cavalaria, os austríacos, toda a gente que se vai encontrando pelo caminho, são produto da imaginação. Eu não seria o arquiduque, embora certas manifestações poderia aceitar como minhas. A arquiduquesa é uma sombra que passa, destinada a parir 16 vezes. E temos o elefante.

É fácil olhar para ele como metáfora da própria vida.
É. Não há nada que o elefante faça que possa ser interpretado como consequência de um pensamento seu.

Diz, aliás, ao longo do livro, que não se pode saber o que o elefante pensa.
Ele não tem palavras, não usa palavras. Se os elefantes pensam, eu não sei como é que pensam. Se nem sei muito bem como é que pensa o meu cérebro… O Torga, nos “Bichos”, que são uns contos magníficos, antropomorfizou tudo – aqueles bichos pensam. Eu não queria isso. Queria que o meu elefante fosse levado de Lisboa a Viena como um animal que não sabe onde o levam, que não tem nenhuma ideia de qual possa ser o seu destino e que vai andando, porque outros o levam, e também vão andando. Realmente, é um pouco como a vida. O que dá sentido a este livro é o final – o final da vida deste animal, Salomão. Como tinha que acontecer, esfolam-no. A pele é oferecida pelo arquiduque a um conde qualquer.

E há aquele detalhe medonho: de usarem as patas para pôr bengalas e bastões. As mesmas patas que poderiam ter produzido um milagre, no miolo do livro.
Sem isso, provavelmente o livro não existiria. A viagem do elefante, a autêntica viagem, é o que o leva a isso. As suas pernas andaram milhares de quilómetros, estiveram na Índia antes de o trazerem para Lisboa, serviram-no. E essas mesmas pernas são cortadas e transformadas irrisoriamente num recipiente para pôr as bengalas, os guarda-chuvas, as sombrinhas. Esse é o destino do elefante que faz essa viagem, com episódios épicos, e que acabou ali. A epígrafe do livro acompanha isto: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. Claro que em termos latos, aquilo que nos espera é sempre a mesma coisa: a morte. Neste caso, não é só a morte, é o destino final. Caricato. Disseram-me que até há pouco tempo, essas patas ainda estavam no lugar onde tinham sido postas.

Escreve na primeira parte do livro: “É a lei da vida: triunfo e olvido”. Perguntam o que vai acontecer ao elefante, e a resposta é: vão dar-lhe umas palmadas – que nós diríamos nas costas - vai haver muita gente nas ruas, e depois esquecem-se dele. Consigo, também vai ser assim?
Inevitavelmente. Não vale a pena que tenhamos ilusões. Pode não acontecer em 50 anos, e talvez em 100 anos ainda haja quem me leia. Depois passo a ser um nome. Um nome que algum excêntrico vai ler e conhecerá. Quem é que, no momento em que estamos aqui a conversar, está a ler o Camões? – para além dos que tenham de lê-lo por obrigação. Quem é que está a ler o Gil Vicente, Dom Francisco Manuel de Melo, ou Padre António Vieira? Quem é que tem paciência para ler sermões, mesmo que eles sejam um esplendor?

Desde quando tem a noção de que a sua vida será também triunfo e olvido?
Desde sempre. Este pendor relativizante começou por mim mesmo. Depois do “Ensaio sobre a Cegueira”, disse que se pudesse ser recordado por alguma coisa no futuro, que me recordassem como o criador do Cão das Lágrimas. Já vê que é pedir bastante pouco… Ninguém escreve para o futuro, ao contrário do que se julga. Somos pessoas do presente que escrevemos para o presente. Também pode acontecer que os livros deixem de ser livros e que o nome do autor continue como uma referência.

Abrimos uma chaveta para dizer: José Saramago, aquele que inventou o Cão das Lágrimas, escritor, comunista. Pensamos nas palavras cardeais do seu universo: ironia, compaixão, imaginação.
Acabamos por converter-nos em conceitos. Já não temos existência, mas continuamos a existir – naquilo que deixamos, nas ideias que as pessoas desse tempo, do futuro, têm sobre aquilo que deixamos, e que podem não coincidir com as nossas. Mas sobre isso não podemos nada, já não estamos cá. De qualquer forma, o olvido está garantido, mesmo que não seja total. Uma das coisas que me dá uma satisfação íntima… O meu avô morreu em 1948, a minha avó viveu ainda uns bons anos mais. Aí, o processo de esquecimento começava exactamente no momento em que cada um deles morreu. Dá-me uma satisfação que talvez nem saiba exprimir o facto de ter-lhes dado uma vida.

Ao recordá-los, ao nomeá-los.
Eu não deixei que morressem. O nome deles nunca mais seria citado, nunca mais se falaria nisso. A família está reduzida a quase nada: estou eu, a minha filha, um vago primo que talvez ainda os recorde. Estavam condenados a desaparecer já. Escrevi sobre eles. E em qualquer parte do mundo, alguém que se interesse por aquilo que faço, já sabe que tem que aguentar com os meus avós.

Citou o seu avô no discurso que fez na Academia Sueca e apontou-o como o homem mais sábio que conheceu.
Foi o princípio da minha conferência. E aí deixo o nome deles: Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha. Falar deles nestes termos pode levar a uma certa idealização. E sim, servindo-me deles como personagens literários, idealizei-os. Mas não imaginem que eram extraordinários: eram pessoas comuns.

Eram analfabetos. Porque é que ele era para si o homem mais sábio que conheceu?
Porque eu era garoto. Era um homem alto, seco, delgado, de poucas palavras. Olhava para ele, não como se fosse o super-homem, ou um anjo caído do céu, porque era um homem, um camponês, não conhecia uma letra; contudo, como não tinha outros mestres, além dos da escola primária, aquele, sem que alguma vez lhe tivesse chamado isso, foi um mestre de vida. O próprio não sabia que era mestre, eu próprio não sabia que era seu discípulo; simplesmente vivíamos juntos na mesma casa. É possível que haja aqui muita elaboração mental. Mesmo que assim seja, no centro da questão está…

O amor.
Também. Eles não eram muito carinhosos. Não tinham tempo nem tinham sido educados para a expressão do afecto. Já muito tinham em que pensar – tendo comido ao almoço, se tinham comida ao jantar. Chamemos-lhe o momento mágico da infância para resolver esta questão – que não fica nada resolvida, claro.

Um pouco como o narrador-Saramago que resolve no livro uma coisa por elipse, com um plof!
Imagine se eu tivesse que resolver o processo… assim não: plof, e já está!

Falei de imaginação, lucidez, ironia, compaixão, que comummente se dizem ser os pilares da sua narrativa. Quando recuperou da doença, temeu ter perdido alguma destas faculdades?
Não. No que tem que ver com ironia e humor, nos diálogos que mantinha com os médicos usava uma ironia por vezes agressiva. A Pilar olhava para mim com os olhos esbugalhados; não era a dizer como é que eu me atrevia – estávamos a falar de igual para igual; mas afinal de contas estava muito vivo na minha cabeça. O corpo, estava um desastre, os pulmões encharcados, a perder peso a cada hora que passava, até aos 51 quilos com que saí do hospital. A prova de que não devo ter perdido nada do que era meu antes está no próprio livro.

Mas isso só percebeu na escrita do livro? Quando partiu para ele, tinha uma insegurança de algum tipo?
O livro foi escrito em duas fases. A primeira desde Fevereiro do ano passado até ao Verão, em que escrevi umas 40 páginas. Depois o meu estado agravou-se e o estado em que me encontrava tirou-me o apetite de escrever. E nisto passaram-se meses. No fim de Outubro, fui quatro dias a Buenos Aires – um autêntico disparate. Praticamente não comi. A certa altura meteu-se-me na cabeça que queria maçãs assadas. Mas é impossível encontrar na Argentina maçãs para assar e alguém que as saiba assar. Vim de lá muito mal e fui para uma clínica em Madrid, onde me fizeram uns quantos exames. Não acertaram com o diagnóstico. Fomos para Lanzarote. Aí entro na rampa e começo a deslizar para o fundo. Não tive uma dor, não posso dizer que sofri, dá mesmo a impressão que não estava lá. O meu estado era de tal ordem que no hospital tiveram dúvidas em aceitar-me. Porque não queriam que morresse no hospital deles! [riso] Se eu queria morrer, que fosse morrer noutro sítio! Aí a Pilar armou-se em Joana D’Arc e convenceu-os de que não podiam fazer isso, e revelaram-se pessoas e médicos extraordinários.

Esteve três meses no hospital. Quando voltou a casa, de quanto tempo precisou até voltar a escrever?
Eu era uma sombra. As minhas pernas eram incapazes de suster-me, agora imagine andar… Vinte e quatro horas depois já estava sentado à mesa a trabalhar.

Porque é que escrever foi indispensável?
Aquele trabalho tinha sido interrompido. Durante o tempo em que estive doente cheguei a dizer à Pilar: “Não sei se vou conseguir acabar o livro”. A Pilar, falando com os médicos, chegou a dizer-lhes: “Garantam-lhe a vida por mais três meses para que ele possa terminar o livro”. Há que dizer que três meses não bastariam.

A Pilar sabe pedir… Sabe falar com bons modos…
Sabe, sabe. A Pilar, se quer alguma coisa, é irresistível! [riso] Essa dedicatória que pus, “a Pilar que me agarrou pela gola do casaco e não me deixou cair ao poço” [na verdade, o que está escrito no livro é: “A Pilar, que não deixou que eu morresse”], figuradamente é isso.

Curiosamente, a palavra pilar aparece no livro uma única vez, para dizer “pilar da fé”. Um pilar é algo que nos sustém. É o pilar da sua vida?
Foi, tem sido, e espero que continue a ser o meu pilar. Além de ser intimamente a minha Pilar, é também o meu pilar.

Voltemos à necessidade de 24 horas depois estar a trabalhar. Era uma forma de manter-se vivo?
Vivo estava eu. Não era o corpo que queria escrever, era a cabeça. Essa ideia – não sei se vou conseguir acabar o livro – continuava cá dentro. A primeira coisa que fiz foi rever tudo o que estava escrito. E corrigir. Se me pergunta: tinha cabeça para correcções? Tinha cabeça para o que fosse. Quando cheguei ao fim dessas correcções, engatei a história, e terminei o livro no dia 12 de Agosto.

É um livro muito luminoso. É surpreendente, sabendo de onde vem…
Embora a mim não me surpreenda. Tenho uma capacidade de distanciamento muito, muito grande. E neste caso, um distanciamento em relação ao doente que tinha sido, ao convalescente que continuava a ser. Não reflecti: posso ou não posso escrever. Já se veria se podia. Abri o computador, procurei o que estava há meses parado, numa certa palavra, e recomecei sem dramatismos. Detesto dramatismos. Detesto aquilo que os escritores cultivam muito: a relação dramática com a escrita.

Porque é que detesta esse dramatismo?
 Porque acho que é falso.

Fala como se o que faz fosse simplesmente um ofício.
Escrever é um trabalho. Da mesma maneira que um médico, o que faz, é um trabalho. Essas histórias em volta da página branca, o horror da página branca…

No seu passado de editor ou jornalista estava em contacto directo com as palavras; mas era para si um ofício diferente.
Não é a mesma coisa estar no Diário de Lisboa, e escrever o editorial, ou no Diário de Notícias, e escrever os meus apontamentos; mas não difere muito. Num caso e noutro estou a usar as palavras, e as palavras de um romance são as mesmas, vêm do mesmo depósito de palavras. Quando eu era um escritor que ninguém conhecia já pensava: isto é um trabalho. Eu poderia ter as melhores ideias para livros, as inspirações mais fulgurantes, mas tenho que as pôr no papel. Pode acontecer, e acontece, que aquilo que eu julgava fulgurante afinal não o é tanto.

Isso é trabalhar a forma.
Quem trabalha a forma trabalha o conteúdo, quem trabalha o conteúdo trabalha a forma. Comparo o trabalho ao computador com o trabalho do oleiro. O oleiro agarra num bocado de barro, põe-no no torno, o torno gira e ele começa a trabalhar o barro até chegar à forma que quer. Há qualquer coisa de artesanal com o trabalho no computador.

Não teve dificuldade em retomar o fio, em engatar, como disse?
Nenhuma. Não tem virtude nenhuma. É simplesmente uma maneira de ser. Você está a ver a excelente ocasião que perdi para fazer do reatamento do meu trabalho um drama, uma angústia, uma ânsia, e agora como é que vai ser?, vou ser capaz?

Nunca foi um angustiado, pois não?
Nunca, nunca, nunca, nunca. E ainda bem. Tive os meus momentos de abatimento, mas entrar em depressão, nunca entrei.

O que é que o segurou? O que é que fez com que nunca caísse em depressão?
Já não o pensava há muitíssimos anos, e é simplesmente uma frase, mas é como se houvesse dentro de mim uma parte intocada. Ali não entra nada. E que se traduz numa certa serenidade, que se acentuou com a doença. Se alguma coisa pude aproveitar dela foi este sentimento de extrema serenidade. Passei pelos momentos maus e bons que todas as vidas têm, mas nunca perdi esta…, não quero chamar-lhe segurança de mim mesmo... É um pouco como o olho do furacão: em redor é morte e destruição, mas ali o vento não sopra.

Essa noção, de ter essa parte intocada, tem-na desde quando?
Desde que é possível ter consciência de uma coisa como esta. Pode ter sido aos 30 anos – ponhamos assim. Mas quando tive consciência, percebi que já antes era assim.

Que auto-estima tinha esse homem que está para trás? O homem que foi na primeira parte da sua vida. Isso que descreve, parece ser uma coisa por sua conta, autónoma.
De certo modo. Eu tinha 18 ou 19 anos e tinha um grupo de amigos – como éramos cinco, chamávamo-nos Pentágono! E um dia conversando sobre umas quantas coisas sérias – o que é que era a vida? – disse esta frase que recordo tal qual e que me ficou para toda a vida: “Aquilo que tiver que ser meu às mãos me há-de vir ter”. Na boca de um rapaz, nos anos 40, uma frase como esta parece reflectir um fatalismo radical. Fala-me de auto-estima: creio que sempre a tive e que esta frase pode ser interpretada nesse sentido. Como nunca fiz projecto de carreira, como nunca fui uma pessoa ambiciosa, como na minha vida não houve cálculo, realmente não fiz nada para que as coisas acontecessem. A não ser o trabalho que tinha de fazer a cada momento.

Fez todos os trabalhos com o mesmo empenho?
Fazia o melhor que sabia e podia, quer fosse na oficina de serralharia onde comecei, quer nas actividades que vieram depois. Vou contar-lhe uma coisa: o Nataniel Costa era o director editorial da Estúdios Cor. Encontrávamo-nos no Café Chiado. Eu não tinha quaisquer credenciais. Tinha os meus amigos, os tais do Pentágono – portanto, ficava numa mesa à parte. E ouvia os outros, os Abelairas, essa gente, ali reunida. Passado tempo, o Nataniel entra na carreira diplomática e falou comigo. Seguimos juntos pelo passeio, em direcção à Brasileira. “Queria perguntar-lhe se está disposto a ocupar o meu lugar na editora enquanto eu estiver ausente, e depois logo se verá”. Porque me dizia aquilo a mim? “Não faltam pessoas a quem poderia ter falado; mas não tenho a certeza de que não aproveitassem essa circunstância para me apunhalarem pelas costas”. Isto é dos momentos mais importantes da minha vida. Alguém que não tinha sido pago para isso nem tinha razões afectivas para o fazer, disse o que disse.

Além de confiarem na sua lealdade, foi o início de um período, em que foi editor.
É como se pudesse dizer-me: tenho razão em ter feito a minha vida como a fiz até hoje. Durante anos escrevíamo-nos, trocávamos ideias e sempre nos entendemos sem o mínimo atrito, nunca houve roçadura de pele.

A imaginação, a ironia, a compaixão estão para o autor como a moral, a coerência, o comunismo estão para o homem? Contaminam-se, e são do mesmo?
São, são. Comunismo é um estado de espírito. Um dia participei no programa do Bernard Pivot que veio com essa: “Como é que você ainda se considera comunista?” Disse espontaneamente: “Acontece que sou uma espécie de comunista hormonal. Da mesma maneira que a barba me cresce, há uma hormona que fez de mim isto, e não posso deixar de o ser. Pode dizer-me: depois disto que aconteceu, e isto e isto; de acordo, tudo isso aconteceu, e parece-me mal que tenha acontecido, e condeno quem o fez. Mas isso não me tira o direito, e o dever, de ser aquilo que sou”. Ele riu-se muito. É isso. Mais recentemente converti isto na declaração: o comunismo é um estado de espírito. Dois camaradas atacaram isto, em nome do materialismo dialéctico. Não entenderam.

Voltando ao livro, há momentos de provação. Como quando a caravana enfrenta o desfiladeiro ou os lobos. O que há numa situação e noutra é o medo. Não sei da sua relação com o medo.
Nunca me encontrei em situações em que o medo se desencadeasse fora do meu domínio. Pondo esta salvaguarda, não me considero uma pessoa medrosa. Também não sou um exemplo de valentia – nunca fui posto à prova. Vamos à experiência mais recente, a doença. O medo da morte, que é um medo tão comum, nunca tive. A probabilidade de morrer era alta. Talvez não tenha tido medo por causa da costela fatalista que tenho – o que tiver de ser, será.

É evidente que o elefante não pode sucumbir aos lobos, ou cair no desfiladeiro – ou seja, nas partes menos boas.
Se transportar isso para a vida, é uma forma de optimismo. E que liga com aquela frase dos 19 anos.

Escreve para ser amado? Escrever é uma forma de ser amado?
Pode ser entendido assim. O Gabriel García Márquez dizia que escrevia para que gostassem dele. É possível. É mais exacto dizer que a gente escreve porque não quer morrer. Ser amado pelo outro não está na nossa mão; podemos escrever para que isso aconteça, e depois acontecerá ou não. Já que temos que morrer, que alguma coisa fique. Não é imortalidade – isso seria um disparate; é um reconhecimento por algum tempo mais.


ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
Gosta do filme?
Gosto muito. Tinha gostado da primeira vez que o vi, mas de uma forma mitigada. Porque as condições de projecção do cinema S. Jorge eram más. Não vi o filme em Cannes; não estava em condições de fazer uma viagem dessas e andar por lá. Na antestreia, vi uma nova versão, com uma nova montagem. O Fernando [Meirelles] e eu tínhamos conversado, tinha-lhe dado a minha opinião. Na montagem que fez restituiu ao filme algo que lhe tinha retirado – violência. O filme é acusado de ser violento. A minha resposta é que não é mais violento do que as séries que nos entram diariamente em casa para consumo das famílias.

O livro é mais violento do que o filme.
Muito mais violento. A Julianne Moore é um portento, como todos os outros. Fiquei surpreendido pela escolha do Gael para chefe da camarata dos malvados; está um pouco histérico, mas faz um bom papel. A montagem é perfeita. A imagem é eloquente. Uma coerência dramática perfeitamente conseguida.

Tem uma cena preferida?
Há uma cena que me impressiona muitíssimo: quando as mulheres vão para a camarata dos outros cegos. Passam em fila indiana, uma atrás das outras, cabisbaixas, em direcção ao martírio. Pareceu-me que, no fundo, a história da mulher, no mundo, na História, estava ali.

Lembra-se quando começou a sua relação com o cinema?
Devia ter seis anos. Morávamos na Mouraria. Perto havia o Salão Lisboa, a que chamávamos O Piolho. Foi aí que comecei a ir ao cinema, com um rapaz mais velho do que eu que vivia na mesma casa, o Félix. (Era no tempo em que se alugavam partes de casa). Vi as coisas mais disparatadas, filmes de terror, um filme em que aparecia um leproso com um capuz… O outro cinema onde ia, mais tarde, era o Animatógrafo. Giríssimo, pequeno, com uma espécie de grade que separava uma plateia da outra. Foi aí que vi uma parelha de cómicos suecos, que eram conhecidos à francesa por Pat & Patachon. Garanto-lhe que se tenho conhecimento que aparecem aí os filmes do Pat & Patachon, vou a correr!"


Publicado originalmente no Público em 2008

María Pagés na reflexão de José Saramago


"Utopía" de María Pagés

"It is known that María Pagés lives in the genius of dance, and as such we proclaim it. But there is more to this woman; she dances and by doing that, she moves everything that surrounds her. 

Nor the sky nor the earth is the same after María Pagés has danced."

(José Saramago)