Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 2 de novembro de 2014

José Saramago - Levantado do Chão - Documentário da RTP

Documentário inédito sobre a vida e obra do Prémio Nobel da Literatura, José Saramago. No dia em que se assinalam os dez anos da atribuição do primeiro Prêmio Nobel da Literatura da Língua Portuguesa, a RTP exibe um documentário que retrata o percurso singular do escritor José Saramago, que se afirma "pessimista pela razão, otimista pela vontade". Durante quase um ano, uma equipe da RTP reconstitui os pontos cardeais em que a vida e obra de Saramago se fundem, num trabalho que aborda a história do escritor português mais lido e conhecido do mundo. Mais do que uma biografia, este documentário pretende dar a conhecer ao grande público os momentos decisivos da vida de um homem que aos cinquenta e três anos não era ainda escritor. Filho e neto de camponeses sem terra, José Saramago imigrou para Lisboa com dois anos.

Grande parte da sua vida decorreu na capital, que serve de cenário a alguns dos seus romances. Mas durante a adolescência, foram muitas e prolongadas as suas estadias na aldeia natal, Azinhaga, Golegã, que o marcou para toda a vida. Ficou célebre, o discurso que Saramago proferiu há dez anos na entrega do prémio Nobel, evocando com emoção os avós Jerómino e Josefa, que dormiam com porcos na cama, única forma de sobreviverem todos. José Saramago frequentou o liceu e a escola industrial mas, por dificuldades econômicas, não pôde prosseguir os estudos. É um homem "Levantado do Chão", título de uma das suas obras, e título escolhido também, para este documentário. O seu primeiro emprego foi de serralheiro mecânico e neste trabalho reeencontramos a oficina dessa época assim como ex-colegas de ofício.

Primeira Parte
Segunda Parte

Terceira Parte

Saramago e a "censura" - entrevista ao Público (Maio de 1992)


Imagens da peça de teatro "A Noite"
Obra baseada na história de um jornal na véspera do 25 de Abril de 1974




In PÚBLICO de 10 de Maio de 1992
José Saramago critica responsáveis da Cultura
"É a terceira vez que sou censurado por Sousa Lara"
Por Torcato Sepúlveda

Em entrevista ao PÚBLICO, o romancista José Saramago não poupa o Governo português. O responsável é ele e não o regulamento do prémio. "A CE não podia esperar que isto acontecesse". E defende a Frente Nacional para a Defesa da Cultura.

... a velhinha máquina de escrever...

Como se sente na pele de um escritor censurado, dezoito anos depois da Revolução de Abril? Por que antes do 25 de Abril, era normal para si ser censurado...
Sim era normal. Não tanto como escritor - porque os livros que publiquei antes do 25 de Abril nunca foram objecto de censura - mas como jornalista. Em 1972 e 1973 trabalhei no "Diário de Lisboa" com funções de editorialista e todos os dias se guerreava com a censura.
Não esperava que, depois do 25 de Abril, se repetissem comportamentos desses, nessa altura institucionalizados. Embora a exclusão do meu romance "Evangelho Segundo Jesus Cristo" tenha também um carácter institucional, porque não foi uma medida extemporânea. É uma decisão tomada por uma instância do Governo e foi no exercício de uma autoridade governamental que a decisão foi tomada. Quanto ao meu estado de espírito: estou triste e indignado. Sinto-me também estupefacto: nos primeiros dias após a decisão governamental, perguntava-me se isto estava de facto a acontecer.
Mas Governo, secretário de Estado da Cultura e subsecretário de Estado da Cultura tiveram a resposta que mereciam: repúdio. O que não diminui a indignação, contaminada por um sentimento de tristeza profunda. Mais: tendo acontecido, como é possível que primeiro-ministro, secretário de Estado e partido do Governo procurem ladear isto, tentando encontrar uma solução para o que não tem solução. O facto é brutal e não pode ser diminuído, sejam quais forem os artifícios de retórica ou de baixa dialéctica política, ou de cabotinismo.

Considera este caso apenas português? Não se tratará de um precedente que amanhã pode permitir a um governo qualquer da CE tomar uma medida semelhante? Este caso não se tornou já europeu?
As Comunidades não esperavam que isto acontecesse no interior delas. Estou certo que na comunidade europeia, no seu conjunto ou nas instâncias onde o regulamento foi inventado e o prémio foi criado, não passou pela cabeça de ninguém que isto pudesse acontecer, e por isso não elaboraram normas preventivas.
Eu não estou tão contra o facto de os governos apresentarem os seus candidatos, desde que funcionem como simples caixa de correio. Instituições responsáveis e competentes, designadas para fazer uma escolha, apresentam aos governos, por uma questão de mero funcionamento administrativo, os candidatos. E os governos deveriam limitar-se - e nos anos anteriores assim sucedeu - a pôr o carimbo: "Siga". Eu próprio já fui candidato a este prémio, e o Governo de então era chefiado por este primeiro-ministro. Quem dirigia na Secretaria de Estado da Cultura teve o bom senso de não intervir. O absurdo deste caso é que houve também a intervenção do chamado factor pessoal. Há pessoas no PSD que não cometeriam a asneira do senhor Sousa Lara. Poderiam pensar que era um horror que o meu livro representasse Portugal, mas não se atreveriam a intervir, por mero respeito democrático. Este senhor não. Demais, com o seu ar tão elegante, bem educado... Se o físico das pessoas diz alguma coisa, o rosto de Sousa Lara, o seu modo tão suave parecem incompatíveis com tal atitude. Lembro-me, porém, que nas galerias de pintura, quer aqui, quer em Espanha, os retratos de inquisidores apresentam semelhanças, uma espécie de ar de família, entre o senhor Sousa Lara e os seus antepassados do Santo Ofício.

Insisto. Não terão sido as Comunidades Europeias demasiado optimistas em relação a si próprias?
Foram, claro que foram...

...amanhã, um governo chefiado pelo senhor Le Pen pode fazer o mesmo com Thar ben Jelloun, porque é de origem árabe. As Comunidades devem saber que os monstros vivem nelas.
Sim, sim. Mas mais do que a CE somos nós que temos de saber que os monstros vivem dentro de nós. E vivem aqui, vivem em Espanha, vivem na Alemanha, vivem em toda a parte. E estão a levantar a cabeça. E se é certo que a CE pode, perante casos como este e outros de natureza diversa, tomar medidas, também é certo que as medidas devem ser tomadas no interior de cada país, de cada sociedade, nas relações internas de toda a ordem e nas relações com os outros. Não devemos esperar que a a CE decida comportamentos, regras, métodos para evitar que coisas destas aconteçam, mas criar aqui os anticorpos contra o mal. Quando o senhor Sousa Lara diz no Parlamento que este caso não deveria ter sido tornado público, defende o triunfo da hipocrisia.

Estes casos estão a tornar-se frequentes. O embaixador de Marrocos achou que o filme de João César Monteiro, "Recordações da Casa Amarela", poderia chocar a mentalidade muçulmana. Já não é um ministro ou um secretário de Estado a emitir julgamentos restritivos sobre uma obra de arte. É um simples funcionário... Dentro de cada um de nós habitará um Intendente Pina Manique?
Bom, essas pulsões são inseparáveis da natureza humana. Mas não foi por acaso que a sabedoria popular criou este dito: "Se queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão". O grande mal que pode acontecer às democracias - e penso que todas elas sofrem em maior ou menor grau dessa doença - é viverem da aparência. Isto é, desde que que funcionem os partidos, a liberdade de expressão, no seu sentido mais directo e imediato, o Governo, os tribunais, a chefia do Estado, desde que tudo isto pareça funcionar harmonicamente, e haja eleições e toda a gente vote, as pessoas preocupam-se pouco com procedimentos gravemente antidemocráticos.
Na relação do senhor Sousa Lara comigo, este não é o primeiro episódio. Já este ano, o que me leva a crer que tudo isto tem origem no "Evangelho Segundo Jesus Cristo". Foi enviado, penso que em Fevereiro, um pedido de subsídio para que eu me deslocasse a Paris, à Expolangues, e o senhor subsecretário de Estado, não fez censura porque não tomou decisão alguma: exerceu o veto de gaveta. Mais grave porém: recentemente, em Abril, a Universidade francesa de Clermont-Ferrand convidou-me para lá ir. E mais uma vez foi feito, através do Instituto Português do Livro e da Leitura [IPLL], o pedido de apoio para a viagem. O IPLL limitou-se a passar o pedido a quem tem o poder de decidir, mais uma vez ao senhor Sousa Lara. Que respondeu que não haveria subsídio para mim e que ele sugeria outro escritor. Sei o nome do escritor alternativo, que não tem nada que ver com o assunto com certeza. Mas a Universidade de Clermont-Ferrand respondeu: "Está muito bem, mas quem nós queremos cá é o senhor Saramago. E eu lá fui, o Estado português não gastou um tostão. Portanto, o veto para o Prémio Literário Europeu é o terceiro caso de censura que sofro este ano.

Em declarações ao "Expresso" sugeria, com tristeza e melancolia, a hipótese de abandonar Portugal. Saramago será mais um vencido da vida? Um vencido do reino da estupidez?
Há uma coincidência que eu não busquei. Acontece que dentro de alguns meses, mas isto estava já decidido antes, vou viver alternadamente aqui e fora de Portugal. Por razões que não tenho que explicar, mas que se prendem com desejo de tranquilidade. A vida está a tornar-se-me cada vez mais difícil e tenho que encontrar calma para fazer o que tenho ainda a fazer, porque não cheguei ao fim com o "Evangelho Segundo Jesus Cristo". Nessa conversa com Clara Ferreira Alves, do "Expresso", dadas as circunstâncias em que ocorreu, era inevitável que eu exprimisse indignação, protesto, dizendo: "Qualquer dia vou embora". Mas as alterações na minha vida estavam previstas. Não abandonarei a minha terra, a não ser que este ou outro Governo cometesse a asneira de me transformar em ovelha negra, coisa para a qual não vejo grandes razões.

Até certa altura, os intelectuais exerciam uma espécie de poder moral sobre a sociedade. Mas com a crise do comunismo, os "clercs" - talvez com medo de serem acusados de comunismo - refugiaram-se na luta puramente cultural. Ramalho Ortigão até sobre a poda das árvores falou em "As Farpas". Aqui parece residir o grande defeito da Frente Nacional para a Defesa da Cultura. Falaram do IVA nos livros mas não se importaram com o IVA no pão e no leite. E metade da população portuguesa não vive tão bem como isso... Parece que os intelectuais se têm afastado afectivamente do resto da população.
Os escritores, as pessoas a quem chamamos intelectuais, eram gente de ideias gerais. E sobretudo havia uma diferença, que para mim é radical, profundíssima, quanto à situação da comunicação social no tempo e à comunicação social hoje. Os escritores de então, um Fialho, com "Os Gatos", para falarmos apenas dos nossos, um Ramalho e um Eça, com "As Farpas", toda essa gente que intervinha socialmente pela pena, supria as deficiências da comunicação. No caso concreto, da imprensa. Hoje, a situação está invertida. O que levava os escritores no século passado a fazerem jornalismo e nas suas próprias obras literárias a fazerem qualquer coisa que tinha que ver com o jornalismo no sentido da informação, da edificação do leitor, da construção da sua mentalidade, do seu sentido crítico, tudo isso passou, ou tudo isso deveria ter passado, para a comunicação social de massa. O escritor achou-se fora desse processo. É a própria evolução tecnológica, o desenvolvimento das comunicações de massa que exclui o escritor dessa tarefa. Não significa que um ou outro não o faça, mas não é dele que a população de um país espera isso. Procura-o na imprensa, na rádio e na televisão. E nós sabemos como o faz. A televisão, por exemplo, asfixia-nos com imagens, imagens não tratadas, que nos submergem, mas no fim de um telejornal, informação, nenhuma.
É preciso não tomar a reacção ao IVA, e tudo o que levou à criação da Frente Nacional para a Defesa da Cultura como defesa de interesses corporativos, pânico de gente que vai vender menos livros. Uma visão mesquinha. O que se deveria ter visto neste movimento, a que se chamou Frente, o que parece ter chocado muita gente, e Nacional, o que parece ter chocado ainda mais - a comparação era fácil, em França há o Front National; jogar assim com as palavras é lamentável - é o mal estar que o IVA despoletou. Porque não surgiram apenas ataques à Frente, descobriu-se uma preocupação, que já não pode ser mantida em silêncio, sobre o estado da cultura em Portugal. A Frente aparece por causa disso, mas não é isso que lhe dá o sentido verdadeiro. Como também não é a famosa reestruturação dos serviços da Secretaria de Estado da Cultura (SEC). Sobre a qual reestruturação não sei se é boa se é má. Tirando a questão da Biblioteca Nacional e a do IPLL, o resto, a redução das direcções gerias, não sei se é bom se é mau. Não estudei o assunto. E há que dizer que não me interessa muito. Pode até provar-se amanhã que, de um ponto de vista meramente estrutural, se está perante uma boa solução ou uma solução aceitável.
A questão é saber se a política cultural do Governo está orientada no sentido de corrigir os profundos males, que não são apenas de estrutura de serviços. São males enraizados na nossa educação e na nossa mentalidade. Não se pede que o Estado seja o médico que vai tratar de tudo, mas pede-se que o Estado cumpra a sua obrigação. Porque o resto não é com ele, é com os cidadãos todos e, neste caso, com os chamados intelectuais.
O que não faz sentido é que se diga que a frente não apresentou soluções. Peço um minuto de reflexão: reúnem-se mais de setenta associações de diversa índole - que vão das desportivas, às ecológicas, às culturais em geral, às profissionais - que até então não tinham estabelecido qualquer contacto umas com as outras (e não estabeleceram ainda, porque a Frente não está estruturada para reunir em plenário com toda esta gente para tomar decisões, não há sede, não há secretaria, não há fundos) e quer-se que ela apresente propostas... É impossível que a Frente apresente propostas e sobretudo que as apresente imediatamente, como se as já tivesse no bolso, como se antes de ser Frente já andasse a estudar tudo isto. E na hora de se declarar Frente dissesse: "Aqui estão". Há a ideia - que espero vá para diante - de fazer um exame objectivo da cultura em Portugal. Relatores, apoiados por comissões, analisarão dez, ou doze, ou quinze áreas culturais. Que serão estudadas profundamente. As comunicações serão depois debatidas durante dois ou três dias, não sei bem, porque tudo isto está ainda verde. Este levantamento permitirá depois a formulação de propostas. Mas por favor dêem-nos tempo...
No fim disto, em meu entender- mas aqui há diferenças de opinião - a Frente acaba. Porque depois serão as setenta associações que fazem parte dela que devem continuar o trabalho.

O que parece é que o José Saramago, tal como alguns críticos da Frente, tem a preocupação do real, do concreto...
Se os bibliotecários se juntaram à Frente é por razões da sua própria actividade. Isso é que deveria ter sido investigado, e foi isso que grande parte da comunicação social não fez. Compreendo os articulistas e os cronistas que se pronunciaram contra a Frente. Mas uma coisa me deixou magoado: há pessoas que pelo seu passado e pela sua própria responsabilidade não têm o direito de formular a sua opinião de qualquer maneira. Não perdoo que Joaquim Vieira, director adjunto do "Expresso", na sua coluna "Quente e Frio", diga coisas como "pela média etária, a Frente parece-se muito com o bureau político do PCUS". Não sei a que média etária se refere, a das organizações que formam a Frente? De qualquer maneira disse-o. E isto reflecte duas coisas: desprezo pela velhice e anticomunismo primário.

Santana Lopes, em entrevista à revista "Grande Reportagem", de Maio, afirma que Saramago já o elogiou duas vezes: na Semana de Bordéus e numa sessão da Mundial Confiança, aquando da estreia da "Blimunda", no São Carlos. É verdade?
É mentira. O senhor secretário de Estado utiliza alguns factos para construir um discurso que só a ele interessa. Estive em Bordéus e falei com ele, de facto: para lhe dizer que ele tinha de defender em Bruxelas a nossa identidade, se não "eles" comiam-nos. Estive presente na sessão da Mundial Confiança, mas não lhe disse nada. O senhor secretário de Estado é que não apareceu na estreia de "Blimunda". Não o vi lá. Se ele disser que esteve, convém que apresente testemunhas.

Censura e Inquisição - Opinião e pensamento de José Saramago


A arte que transporta a Liberdade... os povos se que se exprimem através da arte.

José Saramago foi polémico, considera uns.
José Saramago foi incómodo. muitos o sentem.
José Saramago foi desassossegado, sempre inquieto.

Via Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Censura_em_Portugal)
"Em 1992, o subsecretário da Cultura, António Sousa Lara, vetou a candidatura do romance "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", de José Saramago, ao Prémio Literário Europeu, justificando tal decisão dizendo que a obra não representava Portugal mas, antes, desunia o povo português. Em consequência do que considerou ser um acto de censura por parte do governo português, Saramago mudou-se em 1993 para Espanha, passando a viver em Lanzarote, nas ilhas Canárias."

Este episódio poderá ser marcante, na e da cultura portuguesa, um entre muitos exemplos.
A censura em democracia, circula sem lápis azul... por certo e de certo que quem sente a censura, ela lhe aparece sob a forma mais subtil - o lápis transparente.

O pensamento primeiro, ou dos primeiros que me surge, transporta o peso de uma ideia - Portugal país milenar, de invasões e descobertas, nação una à volta da mesma língua, percorreu meio mundo divido através de uma negociada (tratado de Tordesilhas), onde a cultura há muito que não merece um ministério. Um edifício estatal que proteja e promova as diferente artes e língua.

Nas entrevistas que José Saramago concedeu, muitas vezes aflorou o tema da censura e suas formas de se manifestar, como um sensor das mentalidades e públicas virtudes.
O homem, o democrata, deu por diversas vezes o corpo às balas... demasiadas vezes sozinho.

Um dia, este homem, que amava o seu país - deverá ter pensado... estou farto do lápis azul...



Jornal de Letras
5 de Novembro de 1991
José Carlos de Vasconcelos

"Evangelho Segundo Jesus Cristo" é apresentado

A ideia que Saramago alimentava sobre alguma polémica com a Igreja

(...)
Então ainda pode ser excomungado...
Posso. Mas não penso que a Igreja me tome tanto a sério ao ponto de excomungar...

O tome tanto a sério ou tome tanto a sério o romance?
Acho que a Igreja vai fazer de conta que o livro não existe. O que não significa que não surjam por aí alguns ataques, mas não será a Igreja directamente como instituição que vai produzir uma nota ou um comunicado.

É capaz de dar um editorial da Rádio Renascença...
Sim, um editorial da Rádio Renascença é capaz de dar (risos)...

Isso diverte-o ou preocupa-o?
Nem me diverte nem me preocupa. Cumpri uma espécie de dever: tinha de escrever um livro, está escrito. O que possa acontecer depois atingir-me-á, de uma maneira ou de outra, mas de certa maneira as questões que se vierem a pôr não são comigo. São com o livro. Sou o seu autor e único responsável, não o podem retirar de circulação.

Já não há inquisição...
Não há inquisição, não há censura. (...)

Nesta entrevista, transparece o sentimento da liberdade do autor. É um romance, uma obra, o homem não concebe por estes dias a inquisição e a censura. Não redondo.


Revista Visão
16 de Janeiro de 2003
José Carlos de Vasconcelos

Passados anos... a censura sempre existiu... no tempo e à distância, atenta-se nestas palavras

(...) ... que aliás é (o «senso comum») uma personagem importante do teu último romance...
... um pouco de senso comum: em 1992 era governo o PSD, que pela pena ou a palavra de um subsecretário de estado da Cultura cometeu contra mim um acto de censura que não foi desautorizado pelo secretário de estado, nem pelo primeiro-ministro, nem por ninguém. Protestei, falou-se muito, inclusive na Assembleia da República e no Parlamento Europeu, saí de Portugal e vim para aqui para Lanzarote. A seguir, veio um governo do PS, com quem tive relações normais, cordiais - para além de as ter, antigas, com alguns dos seus membros. Depois, regressou o PSD ao Governo. E o que eu disse é que não colaboraria com um Governo que cometeu um acto de censura do mais descarado e insultuoso da inteligência e do qual nunca pediu desculpa. E não tenho que colaborar, como se não tivesse acontecido nada, com instituições oficiais que dependem desse Governo. Que me peçam desculpas públicas (não através de uma cartinha confidencial), e a questão resolve-se. Ninguém deste Governo, a que pertencia o actual primeiro-ministro, se insurgiu contra o que se passou. Pelo contrário, chegou a haver um jantar de homenagem ao Sousa Lara! Então que queres que faça? Que não tenha vergonha na cara? O que lhes falta a eles, sobra-me a mim. Ah!, mas o prejudicado é o País... Por muito que me prejudique o País, nunca será tanto como eles o prejudicaram cometendo, com a divulgação internacional que se sabe, um acto de censura contra um escritor português que por acaso, uns anos mais tarde, veio a receber o Prémio Nóbel. (...)


Passado um ano, em Março de 2004, o assunto volta à baila. Talvez mais incisivo e decidido.

Revista Visão
25 de Março de 2004
José Carlos de Vasconcelos

(...)
Como vai o «mal de amor» pela Pátria de Saramago?
O mal de amor de José Saramago pela Pátria é conhecido. Pago todos os impostos em Portugal e voto em Portugal. Se não vivo em Portugal é porque fui maltratado, publicamente ofendido pelo Governo de Cavaco Silva, de que era secretário de Estado da Cultura Santana Lopes e subsecretário de Estado Sousa Lara. E no Governo, a que pertencia Durão Barroso, não se levantou uma única voz dizendo «isto é um disparate, isto não se faz»! Outro dia, alguém falou no caso ao primeiro-ministro (Durão Barroso), que disse querer arrumar o assunto: vinha a Espanha e teria muito gosto em almoçar comigo. Assim, durante o almoço, provavelmente entre a fruta e o queijo, ele diria «vamos pôr uma pedra sobre o assunto, não se fala mais nisso»; e eu diria, «sim senhor, vamos pôr». Só que comigo as coisas não são assim. Ofensa pública, desculpas públicas. (...)