Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Ricardo Reis e a reflexão sobre o sentir o e pensar... bastará?

(ocasião em que José Saramago apresenta a reflexão sobre a obra)


(...) Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente lugar onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inúmeros que em mim  vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser. Juntou os papéis, vinte anos dia sobre dia, folha após folha, guardou-os numa gaveta da pequena secretária, fechou as janelas, e pôs a correr a água quente  para se lavar. Passava um pouco das sete horas. (...)

em, O Ano da Morte de Ricardo Reis
Caminho, 11.ª edição (páginas 23 e 24)



A Fundação José Saramago anuncia o início das comemorações dos 35 anos da obra "Levantado do Chão"

(artigo em "O Diário" (25/02/1980)

Aqui pode ser consultada a iniciativa, via página da Fundação José Saramago,

"No dia 22 de fevereiro de 1980 José Saramago apresentou na Casa do Alentejo o livro Levantado do Chão. Embora já tivesse publicado dois romances, contos, teatro, poesias e crónicas, foi com esse retrato de três gerações de uma família do Alentejo que José Saramago começou a sedimentar a sua carreira literária. Aos 57 anos, o escritor português inaugurava uma maneira própria de narrar que o acompanharia até ao final da vida.

Como diz no posfácio do romance, do chão levantam-se os homens, as esperanças e os livros. E Levantado do Chão também levantou um escritor. Não apenas pela sua qualidade literária, mas também pela sua simbologia, esse é um dos títulos fundamentais na obra de José Saramago. “Penso que as duas obras que marcam a minha narrativa, que eu dividiria em dois períodos distintos, e que mostram os meus sinais de identidade são Levantado do Chão e o Ensaio sobre a Cegueira”, disse o escritor em 2007, numa entrevista a Andrés Sorel.

E é por isso que neste mês de fevereiro, quando se cumprem 35 anos da publicação dos primeiros exemplares desse título, recuperaremos na nossa secção Memória entrevistas, reportagens e outros documentos que nos ajudarão a recordar o nascimento desse livro.

Durante todo o mês a página da Fundação José Saramago será alimentada com materiais sobre esse romance. O primeiro deles é esta notícia do dia 25 de fevereiro de 1980, do jornal O Diário, sobre a apresentação do livro na Casa do Alentejo."

Intervenção de Pilar del Rio na Sessão Comemorativa dos 30 anos da lançamento de "Levantado do Chão" de José Saramago

"Levantado do Chão"

«A transformação social. A contestação. Personagens em diálogos. As cruentas desigualdades sociais. Surgem as perguntas proibidas. Vai-se adquirindo consciência e espaço, para que tudo se levante do chão. Um livro composto por 34 capítulos. No 17.º está a tortura e a morte de Germano Santos Vidigal. Germano, o nome que significa irmão, o homem da lança. Apesar de vencido, o sacrifício da sua vida indica o caminho. “Já o encontraram. Levam-no dois guardas, para onde quer que nos voltemos não se vê outra coisa, levam-no da praça, à saída da porta do sector seis juntam-se mais dois, e agora parece mesmo de propósito, é tudo a subir, como se estivéssemos a ver uma fita sobre a vida de Cristo, lá em cima é o calvário, estes são os centuriões de bota rija e guerreiro suor, levam as lanças engatilhadas, está um calor de sufocar, alto. “As mulheres são também chamadas à primeira linha das decisões neste belo romance de Saramago. O diálogo monossilábico entre marido e mulher da família Mau-Tempo vai-se alterando. Interessante observar uma narrativa que vai da submissão ao sentido de libertação, através de gerações.»

Sinopse, consultada na Biografia Activa, constante na página da Fundação José Saramago,
em http://www.josesaramago.org/levantado-do-chao/



Intervenção de Pilar del Río, na sessão comemorativa, dos 30 anos do lançamento de "Levantado do Chão" de José Saramago (4 de Novembro de 2010)

Link para consulta,
em http://www.pcp.pt/intervenção-de-pilar-del-rio-na-sessão-comemorativa-dos-30-anos-da-lançamento-de-levantado-do-chão-0

"Levantar-se do chão"

"Há alguns anos um cineasta espanhol quis retratar o sofrimento e a capacidade combativa de um grupo de trabalhadores que não aceitavam que as diversas engenharias financeiras já então em uso fechassem uma empresa rentável e com futuro. Os trabalhadores de Sintel, que assim se chamava a firma, desde os engenheiros de alto nível ao mais humilde operário, decidiram instalar-se no centro de Madrid num improvisado acampamento e ali viveram durante vários meses, assim reivindicando o seu direito ao trabalho, a manter uma empresa que com o seu esforço haviam consolidado, as suas vidas e as dos seu familiares, em resumo, em defesa da lógica humana frente à dos interesses materiais dos poderosos. Este acampamento recebeu o nome de Cidade da\Esperança e o filme que conta esta epopeia recebeu o título de “Levantados do Chão”. Também Chico Buarque de Holanda, quando quis prestar homenagem aos camponeses sem terra que ocupavam herdades no Brasil para demonstrar que o esbanjamento condena à humilhação e que o cultivo dos campos não é um luxo nem um capricho, compôs um tema a que deu o título de “Levantados do chão”, um coral que poderia ser entoado nos cinco continentes e em todos os idiomas, bastando que houvesse voz para denunciar o abuso e vontade de erguer-se, de levantar-se, apesar da ideia, habilmente difundida, de que a insubmissão não vale a pena, já que vivemos no melhor dos mundos possíveis.
Diz Saramago que o que há mais na terra é paisagem. Sim: paisagem e gente, os inúmeros Mau-Tempo com esse ou outro apelido, essa dinastia infinita de homens e mulheres cujo único património são os braços e a vontade, o imenso rio de pessoas que percorre o planeta bifurcando-se sem limites, como se fossem as suas veias, o bom sangue imprescindível para que a vida seja possível. Os Mau-Tempo vivem em Portugal e na Bolívia, na Nigéria, na Roménia, em Espanha, nos Estados Unidos, em Moçambique, na Malásia… Vivem silenciosos, emigrantes de si mesmos, escravos de trabalhos terríveis, são o sub-solo do sistema que se mantém porque eles estão presentes, embora invisíveis para quem usa estatísticas em vez de sensibilidade. Às vezes pedem socorro desde os seus países remotos ou desde a profundidade da sua condenação, outras vezes põem-se de pé e levantam as mãos ossudas e os punhos cerrados, mas sempre a máquina do poder os ignora, não importa que sejam a maioria, pertencem à casta dos Mau-Tempo, nasceram para sofrer e morrer en silêncio, enterrando-se uns aos outros, como se de uma confraria universal se tratasse. Os Mau-Tempo são as personagens centrais do romance de Saramago, são, junto com a paisagem, o que mais há na terra.
Que faremos, então? Que faremos com este livro, com este mundo, com esta gente? A virtude da literatura está em não ficar parada perante as portas do mistério, penetra-o, ilumina-o, de maneira que a consciência de quem lê, porque viu, já não poderá fingir que ignora. A pergunta impõe-se com mais veemência, rejeitando a indiferença como resposta, porque só os néscios e os maus de carácter podem virar as costas à questão que, humana e doloridamente, propõe este livro de José Saramago intitulado, e não por acaso, Levantado do chão, epopeia gigantesca de heróis não reconhecidos apesar de parecerem ter mais força que o sol que nos ilumina e serem, além do mais, a matéria de que todos somos feitos. Repitamos, pois, as perguntas desde há tanto tempo gritadas: Que faremos com esta gente? Que faremos com este mundo? Perguntemos e logo prossigamos a leitura deste livro que indaga e questiona com irreprimível força, ouvindo a história daqueles que sempre foram os sujeitos da história, embora não os protagonistas nos manuais que a contam ou nos ridículos Götha em que alguns pretendem distinguir-se. Deixemo-nos ficar na literatura, junto aos Mau-Tempo, nossos contemporâneos, e com eles vivamos ao menos o tempo que durar a leitura deste livro que é mais do que arte, e já veremos o que sucede depois, se somos iguais ao que éramos antes ou se nos damos por esclarecidos.
Existiu Monte Lavre e existiu a chuva. E Domingos Mau-Tempo e Sara da Conceição. E os seus filhos e os filhos dos seus filhos. Tinham os olhos azuis, mas outros Mau-Tempo os terão negros e continuarão a levar o mesmo apelido. Há dinastias imprevisíveis que percorrem a terra povoando-a e lavrando-a como se ela fosse gente. Esta dinastia também se pode numerar com cardinais, mais ainda, os cardinais são seus, ninguém tem mais direitos que eles, porque a aristocracia do trabalho é a única desejável, a única que revalida a sua legitimidade geração após geração sem produzir zângãos como as anacrónicas heranças de sangue dos Norbertos, Albertos, Lambertos e Dagobertos, tantas vezes abençoados pelo padre Agamedes e por toda a fauna que do alheio faz sua aspiração e sua casa, como se o mundo não começasse de cada vez que nasce um humano para remediá-lo. Falemos, pois, dos que nada têm, falemos dos nossos, dos Mau-Tempo que vêm em frágeis barquinhos desde África até à opulenta Europa, falemos dos Mau-Tempo que esperam no corredor de um hospital ou na intranquilidade da sua casa uma operação cirúrgica que nunca chega, falemos das migrações sucessivas do campo à cidade e outra vez ao campo, sempre perseguindo um sonho, falemos de nós próprios, que vemos a desesperança e não podemos evitá-la, e isso nos impede de ser felizes. Falemos, sim, do poder que nasceu para impor-se, e falemos das leis que deveriam evitar os excessos de homens que se consideram superiores, leis que tantas vezes serviram para consolidá-los e outorgar-lhes legalidade. Falemos de nós próprios, que somos capazes de ler este livro e sem embargo não podemos impedir a tortura de Germano Vidigal nem as que agora se infligem em Guantânamo contra homens de tez escura e sem nome, oculto como eles por decisões tão ilegais como criminosas, nem a dos Mau-Tempo que hoje perderão o seu trabalho na ignomínia de uma crise económica provocada e talvez não encontrem ninguém que as escreva e descreva para que a sua dor não seja absoluta, mas partilhada.
E assim, caminhando e vendo como o mundo não cresce nem em piedade nem em sabedoria apesar do tempo e dos inventos, um dia distraído chega em que te pedem algo assim como um prólogo para um grande livro que vai ser reeditado. Agradeces, dizes que o farás, mas quando te informam de que se trata de Levantado do chão experimentas os suores do homem que descobriu o fogo ou calculou a profundidade dos primeiros passos na Lua, e, já sem outro remédio que pôr-te à escrita, olharás em frente como é de lei, mas procurarás um apoio para percorrer o livro, talvez a mão de uma mulher Mau-Tempo, uma que experimentou o gozo de integrar uma manifestação sublime, embora logo, para sua desgraça, tenha descoberto que todas as festas têm um fim e às vezes, como em épocas pretéritas, a exaltação não dura mais que umas horas, o tempo necessário para que as hostes de reagrupem e o imperador mande queimar Roma. Uma mulher guia que aprendeu por experiência que os dias levantados e principais podem sê-lo todos, desde que sejam fruto do esforço e da consciência crítica, não de um tempo que não saiba assinalar factos e datas para distinguir-nos no magma confuso que nos habita e que habitamos, por esta ordem.
Ou seja, uma mulher leva-nos por dentro do livro de Saramago, esse que escreveu para contar de outra maneira a vida de gentes que se confrontam com a fatalidade como se combater fosse o seu destino e não levar um salário para casa, trabalhar em boa paz e celebrar uma boda com alguma coisa mais que uns bolos secos e a promessas de filhos que amanhã serão o sustento dos pais e hoje a aflição de ter que repartir a sardinha. Digamos então que Faustina, que se foi com o noivo e com ele, a céu aberto,"

"A Segunda Vida de Francisco de Assis" ou o paradigma da ingenuidade na luta contra "os poderes" (Peça de Teatro de 1987)

Sendo a personagem "Elias", o todo poderoso da empresa, cria o confronto directo com o "regressado" Francisco, numa luta pela manutenção dos princípios que a "companhia" deve continuar a seguir. Ser mais rica e a engordar a sua fortuna acumulada. 
A voz de "Elias", aqui, retrata essa actual predisposição, despedir reciclando, ou, como ele refere - actualizando.
Francisco assume o caminho da luta contra este aspecto, anunciando tudo tentar fazer para tornar a empresa pobre.
É sempre presente o clima de tensão, e a constante luta pela imposição do bem e do mal.


Voz de "Elias"

"Podes arrumar isto. A sessão terminou. Manda fazer já a transcrição da gravação, irei precisar dela ainda hoje. Depois trataremos da acta definitiva. (para os homens) Seria útil que se reunissem imediatamente com os chefes de sector. Não temos tempo a perder. O mais provável é que seja preciso demitir agentes, todos os que não forem recuperáveis, mas abriremos concurso para a entrada doutros, gente nova, sangue fresco. E temos de elaborar os programas de reciclagem, vamos chamar-lhe cursos de actualização, é menos bárbaro e mais convincente. Quando ouço a palavra reciclagem vejo sempre uma bicicleta a passar. (os homens saem, a mulher fica) Pedro ainda está no gabinete?"

em "A Segunda Vida de Francisco de Assis"
Caminho, página 20

(cada da obra, na edição italiana)


Sinopse da peça de teatro, mencionada na página da Fundação José Saramago,
em, http://www.josesaramago.org/a-segunda-vida-de-francisco-de-assis-1987/

1987 - «”Grande sala. Ambiente geral discreto e severo. Mesa comprida, cadeirões, cofre, telex, vários telefones, um terminal de computador. (…) Está reunido um conselho.” Assim se entra no mundo da “política”, segundo José Saramago. “A Segunda Vida de Francisco de Assis” é mais uma incursão no drama, desta vez à volta de um tema bem actual: o capitalismo, a qualidade, as chefias, a política, as eleições, a bolsa, as valorizações e desvalorizações dos produtos e das pessoas. E uma luta entre a razão e a força. Estamos em 1986, já há computadores, mas muita coisa mudou. “As coisas já não são o que eram”, diz a certa altura uma das personagens. “Houve muitas mudanças e nem todas estão à vista. Algumas nunca saem daquele cofre. São as que convém manter em segredo. “E Francisco? Também mudou, claro. Nesta segunda vida, aprendeu algumas lições e aparece a lutar contra a pobreza. “É a pobreza que deve ser eliminada do mundo”, diz. Mais uma vez Saramago usa a ironia para fazer as suas críticas. “A pobreza não é santa. Tantos séculos para compreender isto. Pobre Francisco.”»