Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Conto inédito "Calor" - Revista Colóquio Letras n.º 8

Revista Colóquio | Letras
Fundação Calouste Gulbenkian
N.º 8 - Julho de 1972

Pode ser aqui consultada
http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=8&p=56&o=p


Calor

"O rapaz vinha do rio. Descalço, com as calças arregaçadas acima do joelho, as pernas sujas de lama. Vestia uma camisa vermelha, aberta no peito, onde os primeiros pêlos da puberdade começavam a enegrecer. Tinha o cabelo escuro, molhado de suor que lhe escorria pelo pescoço delgado. Dobrava-se um pouco para a frente, sob o peso dos longos remos, donde pendiam fios verdes de limos ainda gotejantes. O barco ficou balouçando na água turava, e ali perto, como quem espreita, afloraram de repente os olhos globulosos de uma rã. O rapaz olhou-a, e ela olhou-o a ele. Depois a rã fez um movimento brusco, e desapareceu. Um minuto mais e a superfície do rio ficou lisa e calma, e brilhante como os olhos do rapaz. A respiração do lodo desprendia lentas bolhas de gás que a corrente arrastava. No calor da tarde, os choupos altos vibraram silenciosamente, e de rajada, como uma flor rápida que do ar nascesse, uma ave azul passou rasando a água. O rapaz levantou a cabeça. No outro lado do rio, uma rapariga olhava-o, imóvel. O rapaz ergueu a mão livre e todo o seu corpo desenhou o gesto de uma palavra que não se ouviu. O rio fluía, lento.
O rapaz subiu a ladeira, sem olhar para trás. A erva acabava logo ali. Para cima, para além, o sol calcinhava os torrões dos alqueives e os olivais cinzentos. Metálica, dura, uma cigarra roía o silêncio. À distância, a atmosfera tremia.
A casa era térrea, acachapada, brunida de cal, com uma barra de ocre violento. Um pano de parede cega, sem janelas, uma porta onde se abria um postigo. No interior, o chão de barro refrescava os pés. O rapaz encostou os remos, limpou o suor ao antebraço. Ficou quieto, escutando as pancadas do coração, o vagaroso surdir do suor que se renovava na pele. Esteve assim uns minutos, sem consciência dos rumores que vinham da parte de trás da casa e que se transformaram, de súbito, em guinchos lancinantes e gratuitos: o protesto de um porco preso.
Quando, por fim, começou a mover-se, o grito do animal, desta vez ferido e insultado, bateu-lhe nos ouvidos. E logo outros gritos, agudos, raivosos, uma súplica desesperada, um apelo que não espera socorro.
Correu para o quintal, mas não passou da soleira da porta. Dois homens e uma mulher seguravam o porco. Outro home, com uma faca ensaguentada, abria-lhe um rasgo vertical no escroto. Na palha brilhava já um ovóide achatado, vermelho. O porco tremia todo, atirava gritos entre as queixadas que uma corda apertava. A ferida alargou-se, o testículo apareceu leitoso e raiado de sangue, os dedos do homem introduziram-se na abertura, puxaram, torceram, arrancaram. A mulher tinha o rosto pálido e crispado. Desamarraram o porco, libertaram-lhe o focinho, e um dos homens baixou-se e apanhou os bagos, grossos e macios.
O animal deu uma volta, perplexo, e ficou de cabeça baixa, arfando. Então o homem atirou-lhos. O porco abocou, mastigou sôfrego, engoliu. A mulher disse algumas palavras e os homens encolheram os ombros. Um deles riu. Foi nessa altura que viram o rapaz. Ficaram todos calados e, como se fosse a única coisa que pudessem fazer naquele momento, puseram-se a olhar o animal que se deitara na palha, suspirando, com os beiços sujos do próprio sangue.
O rapaz voltou para dentro. Encheu um púcaro e bebeu, deixando que água lhe corresse pelos cantos da boca, pelo pescoço, até os pêlos do peito que se tornaram mais escuros. Enquanto bebia, olhava lá fora as duas manchas vermelhas sobre a palha. Depois, num movimento que parecia de cansaço, tornou a sair de casa, atravessou o olival, outra vez sob a torreira do sol.
A poeira queimava-lhe os pés. e ele, sem dar por isso, encolhia-os, para fugir ao contacto escaldante. A mesma cigarra rangia, em tom mais surdo. Depois a ladeira, a erva com o seu cheiro de seiva aquecida, a frescura entontecedora debaixo dos ramos, o lodo que se insinua entre os dedos dos pés e irrompe para cima.
O rapaz ficou parado, a olhar o rio. Sobre um afloramento de limos, uma rã, parda como a primeira, de olhos redondos sob as arcadas salientes, parecia estar à espera. A pele branca da goela palpitava. E a boca fechada fazia talvez uma prega de escárnio. Passou tempo, e nem a rã nem o rapaz se moviam. Então o rapaz, desviando a custo os olhos, como para fugir a um malefício, viu no outro lado do rio, entre os ramos baixos dos salgueiros, aparecer a rapariga. Outra vez, silencioso e inesperado, passou sobre a água o relâmpago azul.
Devagar, o rapaz tirou a camisa. Devagar se acabou de despir, e foi só quando já não tinha roupa nenhuma no corpo que sua nudez, lentamente, se revelou. Assim como se estivesse curando uma cegueira de si mesma. A rapariga recuou para a sombra dos salgueiros e com os mesmos gestos lentos se libertou do vestido e tudo quanto a cobria. Nua sobre o fundo verde das árvores.
O rapaz olhou uma vez mais o rio. Círculos que alargavam e perdiam na superfície calma, mostravam o lugar onde a rã mergulhara. Então, porque o Verão queimava e era urgente negar o escárnio, o rapaz meteu-se à água e nadou para a outra margem, enquanto o vulto branco da rapariga se escondia entre os ramos."

José Saramago

José Saramago 90 anos - Emissão Especial em direto do Teatro Nacional de São Carlos (Antena2)

Emissão Especial em directo do Teatro Nacional de São Carlos

Emitido a 20 de Novembro de 2012

Aqui o link, via Antena2, em

"Convidados: Pilar del Rio, Violante Saramago, Ana Saramago Matos, Zeferino Coelho, Miguel Gonçalves Mendes, Maria Alzira Seixo.

Se fosse vivo José Saramago completaria 90 anos de vida a 16 de Novembro. A Fundação com o seu nome está a preparar uma série de iniciativas para esse dia sobre o escritor e a sua obra (representação de excertos do Memorial do Convento no terreiro em frente para escolas e vizinhos, exposição nas janelas da Fundação, comemoração do 1º dia do Desassossego com passeios pelos itinerários do livro O ano da morte de Ricardo Reis,etc). 
A emissão será em directo do Teatro Nacional de São Carlos, onde ás 18h00 terá lugar um concerto de homenagem a José Saramago. O Teatro Nacional de S. Carlos abre excepcionalmente as portas no ensaio geral, às 18h do dia 16, do concerto da Orquestra Sinfónica Portuguesa e do Coro do Teatro Nacional de São Carlos. Programa: Requiem, de Fauré, e Sinfonia Fantástica, de Berlioz. Direcção musical de Nicolas Chalvin. Solistas do Requiem - Mariana Castello Branco e Luís Rodrigues.
“Escrevo para desassossegar os meus leitores”, disse José Saramago, pela última vez, na apresentação do seu romance “Caim”. E o dia 16 de Novembro, data do nascimento de José, será doravante o Dia do Desassossego, numa iniciativa da Fundação José Saramago. As celebrações dos 90 anos do autor juntam-se em Lisboa, na Casa dos Bicos, à comemoração do 30.º aniversário da edição do “Memorial do Convento”, com uma série de eventos."


Berlioz - Symphonie fantastique (OPRF, Dudamel, 2009)

Orchestre Philharmonique de Radio France & Simon Bolivar Youth Orchestra
Direction : Gustavo Dudamel 
Paris Salle Pleyel, 23 octobre 2009
Aqui o link, via Youtube em http://www.youtube.com/watch?v=WVbQ-oro7FQ

................... e..................

Gabriel Faure's Requiem op. 48 Complete

Faure Requiem Op.48 / Durufle Requiem Op.9
Gabriel Fauré (Composer), Robert Shaw (Conductor), Atlanta Symphony Orchestra & Chorus (Orchestra), Judith Blegen (Soprano), James Morris (Baritone)
Aqui o link, via Youtube em http://www.youtube.com/watch?v=UnilUPXmipM

"The Year of the Death of José Saramago" por Wah-Ming Chang (Words Without Borders)


Aqui o link da revista online, em http://wordswithoutborders.org/

Aqui o link do artigo, em http://wordswithoutborders.org/dispatches/article/the-year-of-the-death-of-jose-saramago


"The Year of the Death of José Saramago" - By Wah-Ming Chang

“We mourn the man whom death takes from us, and the loss of his miraculous talent and the grace of his human presence, but only the man do we mourn, for destiny endowed his spirit and creative powers with a mysterious beauty that cannot perish.”
—from The Year of the Death of Ricardo Reis

On June 18, 2010, the Portuguese writer José Saramago dies at the age of eighty-seven after a long illness. The cause is multiple organ failure. The government announces two days of mourning, and then, on June 20, after seventeen years of self-imposed exile in the Canary Islands following the controversy of his novel The Gospel According to Jesus Christ, he finds himself returned to Lisbon with a hero’s welcome. His wife, Pilar del Rio, to whom all his novels are dedicated, is at his side, as well as his daughter, Violante, and Portugal’s Minister of Culture, Gabriela Canavilhas.

The facts, then, then and now: He was the first Portuguese-language writer to win the Nobel Prize in Literature, in 1998. He was a member of the Portuguese Communist Party. His politics and prose outraged many, the former for condemning Israel’s occupation of the West Bank and the latter for unrelenting run-on sentences and long paragraphs, punctuated only by commas and the occasional period to separate ideas, dialogue, and voices (sometimes a smattering of them, but usually two). In his novels, a city goes blind, Jesus Christ has sex with Mary Magdalene, the Inquisition burns brightly as the backdrop for a pair of lovers, the faces of Fernando Pessoa roam Lisbon’s streets, a proofreader takes control of history, Death takes a holiday, a man encounters his identical double, the Iberian Peninsula goes rogue, a city’s sight is restored. Encouraged by family, for one year starting in September 2008 Saramago kept a blog and wrote about his literary heroes, offered scathing political commentaries, and professed his deep love for Lisbon; the posts are in Portuguese, and now they have been translated and published as The Notebook. A new novel, The Elephant’s Journey, translated by one of his longtime colleagues, Margaret Jull Costa, will appear in September later this year from his loyal publisher, Houghton Mifflin Harcourt.

*

On October 13, 2007, the Strand Bookstore celebrates its eightieth birthday. A series of author appearances is scheduled for the day. I ignore the schedule, preferring to be surprised, though I am aware of the name of one guest, having met him by chance the week before. As he was in town for only the weekend and was confused by the Strand’s purpose in pairing him up with a writer he was unfamiliar with, I go to the celebration to support him. Three unsettling discoveries impress upon me that day: I lose my sunglasses in the folds of the crowded shelves; I find not the writer I’d met the week before but a bizarre scene of writers scattered throughout the store, each sitting behind a table with his or her books on one end and a bowl of candy on the other, while the customers (the Strand customer, note, tends to be either a die-hard book collector or a wide-eyed tourist) take the candy and peruse the shelves the way the Strand shelves are meant to be perused, always with the intent, that is, to purchase a specific title, not to interact unsupervised with a writer; and lastly, distracted by the way the atmosphere in the store has taken on a surreal edge, I pick up a novel by José Saramago called All the Names.

*

After that day I buy all my Saramago books at the Strand.

*

Soon after I become obsessed with Saramago, a friend leaves a note at the Strand for me. It is tucked between pages 16 and 17 in Death with Interruptions, and quotes a line on page 17: “‘Nothing is ever perfect, however, for alongside those who laugh, there will always be others who weep, and sometimes, as in the present case, for the self-same reasons.’ I’m right here, kiddo. Weeping and laughing with you. We are serving concurrent sentences.”

*

In The History of the Siege of Lisbon, the implacable proofreader describes a proofreading mark, the deleatur: “It reminds me of a snake that changes its mind just as it is about to bite its tail.” This is as apt a description of the Saramago sentence as much as of the mark itself. The twists and turns in his sentences do have a purpose, though it is not always apparent until the end of them is reached, or the end of the paragraph itself. Sometimes a reader is not ready for such sensation from a fantastical voice. Or perhaps the voice—philosophical, anecdotal, predetermined—is not to the reader’s taste. For Saramago and his reader to understand each other, both must contract himself to serving the other. The writer, after all, is not merely meant to seduce the reader into being complicit in his rambles; the reader, too, must be willing to be led by the writer’s Ariadne’s thread, as in All the Names, through a maze of ideas, love, history, profundity both deep and shallow, all toward an ultimate fate, which is to absorb the comedy of life through an enlightening, and sometimes tragic, adventure. We are all unreliable as readers and as narrators. Just as I ask you to trust the scene I described at the Strand’s eightieth-birthday celebration—writers being assigned sterile seatings while readers studiously ignore them—Saramago, the ultimate narrator, asks the reader to trust his unreliable witnesses, namely the characters he watches over with both fatherly affection and exasperation. But a contract is a contract: we are reading not towards the fact of the unreliable narrator but towards the fact of the journey, of discovering how he is transformed from unreliable to reliable.

*

Identity, identification, the id. Names, naming, the named. In Baltasar and Blimunda, the narrator describes a heretic: “Who knows what other names he might have assumed, because every man ought to have the right to choose his own name and be able to change it a hundred times daily, for there is nothing in a name.” This puzzlement over names, over naming of the self, is most evident in The Year of the Death of Ricardo Reis. The name Ricardo Reis is a heteronym of the Portuguese writer Fernando Pessoa, who makes an appearance here as a ghost. As written by the character, a doctor and poet returning to Lisbon after a stretch of time in Brazil: “Innumerable people live within us. If I think and feel, I know not who is thinking and feeling, I am only the place where there is thinking and feeling.” The mirroring, as multiplied most effectively by Borges, is further doubled by the haunting by Pessoa of his living, breathing heteronym. So, too, do Saramago’s other characters experience moments of an alternate identity, of somebody other than himself. In their ordinary lives they would never break from routine—except that for the purpose of a story, these men of routine and bachelorhood suddenly decide to set foot on a different road, take the road less traveled, fork onto a divergent reality, and so on, recognizing that the rules as had always been applied to themselves are no more. The proofreader in The History of the Siege of Lisbon turns in a job with a willfully inaccurate correction; the fastidious clerk in All the Names pursues a woman whose identity he’s lifted from his office’s confidential records; the history teacher in The Double stalks and finally confronts the man who looks exactly like him; and Death, perhaps the supreme id, wonders, “How about I take a vacation?” And so on, and so on.

*

Saramago’s books always surprise me because I forget their content the moment I turn the page or set the book down. What always stays with me is their rhythm, the rhythm of speech, of oration, of irony, of sentimentality. Some keep their ears open for the bass in music, paying little attention, if at all, to lyrics. This is the same for me when I read a sublime sentence. Its bass, and the resulting bass-heavy paragraph, matters more than what’s happening in the story. Apologies—this is not accurate. Story does matter to me—and if you are patient enough to swim through the Saramago sentence, you will find story in spades—but what matters more is how the author unravels mood, the underlying bass in our atmosphere. No, never mind what matters more, for what is most astonishing and pleasing is when mood and story complement each other syntactically. The run-on sentence by Saramago is a thing of beauty, like the swift plays across the field by the Spanish football team—geometries within geometries, passing the ball back and forth idly or insistently, always expertly and with a goal, so to speak, and most of all with patience and trust. In death now, perhaps Saramago may find that his style—as echoed despairingly by Thomas Bernhard, mournfully by W. G. Sebald, meticulously by David Albahari, and comically by Bohumil Hrabal—can finally attract readers who have been reluctant in the past to take him on. Read everything, he insists to his readers. I would amend this statement to: Read everything by Saramago.

*

Published Jun 24, 2010   Copyright 2010 Wah-Ming Chang



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«Não há palavras, Saramago levou-as todas» - Discurso de Gabriela Canavilhas

Aqui o link da TSF
http://www.tsf.pt/paginainicial/AudioeVideo.aspx?content_id=1598325

O portal do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, transcreveu o discurso.
Aqui, em http://www.mst.org.br/node/10128

20 de Junho de 2010

Saramago e a "luta contra as injustiças"

"Leia discurso da ministra da Cultura de Portugal, Gabriela Canavilhas, na cerimónia de homenagem a José Saramago, que faz referência à luta do escritor comunista contra as injustiças e em defesa das "causas dos Sem Terra".

Abaixo, leia o discurso.
Sr. Primeiro-Ministro
Senhores membros do Governo
Sr. Presidente da Câmara de Lisboa
Sra. Vice-Presidente do Governo de Espanha
Ilustres individualidades presentes
Caras Pilar Del Río, Violante Saramago, e seus filhos,
Senhoras e Senhores,

Era uma vez um rei que fez promessas de levantar um convento em Mafra, um soldado maneta, uma mulher que tinha poderes, e um padre que queria voar numa Passarola e que morreu doido;
Era uma vez Jesus, que disse a Maria Magdalena - “quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos”;
Era uma vez um cão que lambeu as lágrimas a uma mulher desesperada num mundo de cegos, desejando também cegar para ser poupada aos horrores que a vista lhe trazia;
Era uma vez a morte, que tinha um plano e que o cumpriu – abraçou-se ao homem sem que ele compreendesse o que lhe estava a suceder, e ela, a morte, que nunca dormia, deixou descair suavemente as pálpebras enquanto adormecia; no dia seguinte, ninguém morreu;
Era uma vez um homem, que quando morreu, partiram 2 pessoas: saiu ele, de mão dada com a criança que foi – tal como o próprio José Saramago previu, nas suas próprias palavras.
Era uma vez e tantas outras vezes, o respeito à terra e aos homens, a luta contra as injustiças, a defesa dos direitos humanos, a denúncia contra a guerra do Iraque ou contra a ocupação palestiniana, as causas dos Sem Terra, do movimento anti-globalizante, da preservação do ambiente, ou do anti-clericalismo desassombrado.
Estas e tantas outras, foram as histórias com que o ateu místico, religioso laico, interrogador de Deus e dos homens, José Saramago, “comunista hormonal” nas suas palavras, questionou Portugal e o mundo incessantemente, directa ou metaforicamente.
A liberdade do pensamento define o criador: Saramago foi voz lúcida, inconformada, firme, insubmissa na luta contra a desigualdade entre os homens – esta sim “a verdadeira miséria”, dizia.
Parte da imensa receptividade que as suas obras têm merecido em todo o mundo, e que a atribuição do Nobel cimentou e glorificou, deve-se a esse carácter humanista, à esperança que a sua obra impõe ao Homem.
Recebeu o Prémio Nobel da Literatura... pela sua capacidade de tornar compreensível uma realidade fugidia, com parábolas sustentadas pela imaginação, pela compaixão e pela ironia», segundo a Academia Sueca.
Fiel ao seu compromisso com a consciência, usou a escrita para uma reflexão sobre as grandes causas da humanidade, edificando uma obra coerente, ousada, sólida, moldada pela ética, visando, sempre, a dignificação do Homem.
E fê-lo por vezes subvertendo normas - quer de narrativa (o seu estilo é inconfundível, nas suas frases longas e de pontuação singular), quer enfrentando dogmas - não tinha fé em Deus (mas certamente Deus teve fé nele).
Para ele a escrita, enquanto forma de expressão do pensamento e de intervenção intelectual, foi instrumento, foi arma, foi agente provocador e plataforma de interrogação permanente do indivíduo e da sociedade.
Com a sua actividade cívica aliada à criação literária, cumpriu aquilo que é mais caro aos criadores e aos artistas – conseguiu com a sua obra fazer pensar os destinatários, perturbar os conformados, incomodar as consciências e aguçar a lucidez.
Deixa a Fundação José Saramago, à qual se dedicará a companheira e musa da sua vida, Pilar Del Rio, força inabalável que foi determinante na sua alma e na sua obra, a quem também prestamos aqui homenagem. Fundação José Saramago que assume, entre os seus objectivos principais, a defesa e a divulgação da literatura contemporânea, a defesa e a exigência de cumprimento da Carta dos Direitos Humanos e o cuidado do meio ambiente.
Enquanto escritor português, José Saramago deu um incontestável contributo para a afirmação e difusão da Língua Portuguesa, para a divulgação da Literatura Portuguesa e para a união do mundo lusófono. Embaixador da cultura portuguesa no mundo, a influência da sua obra estendeu-se a um amplo espectro de outras expressões artísticas - na ópera, no cinema, nas artes visuais, sublinhando a universalidade da sua linguagem.
A Literatura Portuguesa, as Literaturas em Português, com Saramago, adquiriram ressonância internacional e prestígio global, pela universalidade das questões que o Escritor agarra e reflecte com tenacidade e vigor, e pelo génio sísmico com que as dá a ler, a pensar, através da sua escrita.
Portugal homenageia hoje o homem, simples, sensível e corajoso;
Portugal celebra em Saramago, a sua humanidade, grandeza e universalidade;
Portugal orgulha-se do Escritor e engrandece-se com a sua obra, poliédrica, ímpar e seminal.
Portugal agradece, sentida e sinceramente, o encontro mágico de Saramago com a Literatura, e o lugar único e perene que José Saramago ocupará para sempre na Literatura e na Cultura do mundo.
Como escreveu ontem um amigo a Pilar, - Não há palavras. Saramago levou-as todas…
Obrigado José Saramago."

Jô Soares entrevista José Saramago, Chico Buarque e Sebastião Salgado - Livro "Terra"


Jô Soares entrevista Sebastião Salgado, José Saramago e Chico Buarque, por ocasião do lançamento do livro reportagem "Terra", abordando a luta do povo «Sem Terra», as relações da reforma agrária no Brasil. Livro com prefácio de Saramago e musica de Chico Buarque.


José Saramago, Chico Buarque e Sebastião Salgado no Jô (1/5)

José Saramago, Chico Buarque e Sebastião Salgado no Jô (2/5)

José Saramago, Chico Buarque e Sebastião Salgado no Jô (3/5)

José Saramago, Chico Buarque e Sebastião Salgado no Jô (4/5)

José Saramago, Chico Buarque e Sebastião Salgado no Jô (5/5)

Aqui o link agregado das 5 partes da entrevista
https://www.youtube.com/playlist?list=PLE19A74822ED5A694

Citador #5 - Saramago também assumidamente politico


Publicação "Grain de Sable"
19 de Janeiro de 2005

«Conhece o ditado 'quem não é revolucionário aos 20 anos não tem coração e quem o continua a ser aos 40 não tem cabeça'? Eu continuo a ter coração e uma cabeça. Sou aquele que fui até agora. Pode-se ter a mesma ilusão aos 82 anos.»


Aqui a entrevista original, em http://www.resoo.com/graindesable/cgi-bin/resoopage.pl?253

http://www.resoo.com/graindesable/

«En Colombie il n'y a pas de guérillas mais des bandes armées» 
Le 19/01/2005 
Grain de sable


Le prix Nobel de littérature de 1998 José Saramago, assure, dans un entretien avec Yamid Amat que ces groupes «n'ont rien de communistes».

Il ajoute que dans le monde, le pouvoir n'est pas politique mais économique. «Ils appellent mondialisation l'empire économique et financier».

Cet écrivain et penseur (Portugal, 1922) jouit d'une admiration sans bornes pour un monde qui l'a consacré comme une des plus importantes figures littéraires du siècle dernier.

Saramago est le maître d'un monde particulier qu'il créa livre après livre, depuis son premier roman «terre de péché» (1947), ou ses récits «Le dieu manchot»(1982) et «Le radeau de pierre»(1986), jusqu'au scandaleux et controversé «L'évangile selon Jésus christ» (1991) ou l'indiscutable originalité de «L'aveuglement»(1996) et «La caverne»(2000).

Sceptique et intellectuel, Saramago (premier portugais a avoir eu le prix Nobel de littérature) garde une position éthique engagée avec le genre humain. Il est depuis toujours membre du parti communiste. Il se rallia à la révolution dite des oeillets qui marqua la fin de la dictature portugaise (1974).

Il vint en Colombie dans le cadre d'une tournée à travers divers pays pour promouvoir son dernier roman, «Essai sur la lucidité», sa création la plus politique, où il propose une hypothèse originale sur ce qui se passerait si 83% des électeurs d'un pays votaient blanc.

Il préfère un entretien plus orienté vers des sujets politiques, américains ou colombiens que des sujets littéraires.

Vous connaissez bien la situation colombienne. La guerilla se justifie-t-elle ?

Elle a toute sa justification dans le cadre de la résistance d'un peuple occupé par un envahisseur. Ce qui se passa en France pendant la seconde guerre mondiale ou ce qui se passe actuellement en Irak. Le concept de guerilla a quelque chose de noble, c'est à dire des citoyens qui s'organisent pour résister à l'envahisseur. Je ne crois pas que ce soit le cas de la Colombie. Ici il n'y a pas de guérilla mais des bandes armées.

Vous êtes communiste et la guerilla s'est identifiée au communisme...

Je ne peux imaginer un pays communiste qui s'adonne à la séquestration, l'assassinat et la violation des droits de l'homme. Ils ne sont pas communistes, peut être le furent ils au début, plus maintenant.

Quelle est l'alternative face aux problèmes sociaux du pays ?

D'une part une démocratie effective qui fonctionne, d'autre part le respect des droits de l'homme.
A chaque élection, les partis présentent un programme pour obtenir des voix. Si les partis, au lieu de se fatiguer à faire tant de promesses qu'ils ne tiennent jamais, se limitaient à défendre la déclaration universelle des droits de l'homme, ils auraient un programme de gouvernement.
Les droits de l'homme ne sont respectés nulle part. Droit à la vie, à une existence convenable, à manger et au travail; à la santé et à l'éducation. Le grand combat de la citoyenneté doit être la lutte pour le respect des droits de l'homme.

Pourquoi ne s'appliquent ils pas ?

La remise, le 10 décembre 1998, de mon prix Nobel a coïncidé jour pour jour avec le cinquantenaire de la signature de la déclaration des droits de l'homme. A cette occasion, il y eut partout dans le monde des événements et informations sur les droits de l'homme. L'année d'après, le 10 décembre 1999, je n'ai entendu ou lu quoi que ce soit. Je suis très attentif à ce qu'il va se passer dans quelques jours, le 10 décembre de cette année mais je suis sûr que personne n'en parlera. Les gouvernements, les multinationales et entreprises nationales ne s'y intéressent pas. Les citoyens sont apathiques. Les droits de l'homme continuent d'être une sorte de comédie; pire, une farce, pire, une tragédie, parcequ'ils servent seulement la rhétorique parlementaire ou politique quand ça arrange, mais après, on les enterre et on en parle plus.

Que faire dans un pays comme la Colombie, avec deux millions de déplacés, avec 3000 séquestrés, avec des femmes maltraitées, des filles violées, avec des enfants qui font la guerre, avec des hommes assassinés...?

Je dirai qu'en guise de consolation, aux grands maux les grands remèdes: Voter blanc.
Il faut arrêter avec cette fatalité qui consiste à dire on va voter pour un homme ou pour cet autre sans que rien ne change: la police et ses attaques, les bandes armées et ses enlèvements, le peuple avec la faim et le chômage. Le peuple doit dire: ça suffit !. Mais il ne s'agit pas de dire stop et de rester à la maison, c'est à dire s'abstenir de voter; il s'agit de dire stop et voter blanc. Je vous assure qu'on s'en apercevrait et que le système commencerait à trembler.

Vous avez déjà voté blanc ?

Non, jamais.

Si vous ne l'avez pas fait, pourquoi le prôner vous ?

Je n'en fais pas la promotion ni l'apologie. Je dis seulement que le vote blanc existe, et qu'il se peut qu'il soit, dans certaines circonstances, la seule réponse possible.

Mais vous le justifiez ?

Non, mais je vais vous dire ceci : Si j'étais colombien et avais l'occasion de voter, je voterais blanc pour la bonne et simple raison que les conditions ne me satisfont pas. J'exprimerais ainsi mon mécontentement.

Si le vote blanc gagnait, ce serait un échec pour la démocratie ?

40 ou 50% d'abstention, ce n'est pas un échec pour la démocratie ? Et ceci nous conduit à la pire des conclusions, celle des politiciens qui préfèrent l'abstention parcequ'ils s'y sont habitués, et nous avec.

Dans votre dernier livre « Essai sur la lucidité », vous racontez justement ce qui se passe dans un pays qui vote blanc. Mais vous dénoncez aussi la domination du pouvoir économique sur le pouvoir politique...

L'influence, la domination du pouvoir économique sur l'autorité politique a toujours existé. Mais de nos jours, l'empire économique, empire financier s'est emparé du monde. On appelle cela «mondialisation». Tout se fait sous couvert du pouvoir économique. Au fond les gouvernants ne gouvernent pas. Ils règlent les choses du quotidien. Mais pour le plus important, ce qui détermine la vie concrète des gens, ils ne font rien. Peut être ne peuvent ou ne veulent ils rien faire, peut être ne peuvent-ils pas mais ils ne veulent pas non plus. Certains hommes se placent au dessus de ça et, j'ai envie de le dire, au dessus du bien. Ils ne se placent pas au dessus du mal, seulement au dessus du bien, du bien commun. Nous vivons dans une ploutocratie, le gouvernement des riches.

Et la démocratie ?

La démocratie...! Le pouvoir politique n'a aucun moyen de contrôle sur les abus du pouvoir économique qui sont innombrables. Nous vivons dans un système dit «démocratique», où le citoyen ne peut rien faire d'autre que de défaire un gouvernement et en mettre un autre à la place mais ça ne change rien. Je veux juste donner un exemple très simple : il n'y a pas très longtemps on parlait du bon emploi, du plein emploi. C'est terminé et nous vivons dans ce que nous appelons maintenant d'une manière euphémique «mobilité sociale». C'est une insulte que d'appeler « mobilité sociale » cette situation de précarité de l'emploi partout dans le monde.

Mais cette situation n'est pas imputable aux gouvernements ?

Non. Aucun gouvernement n'en aurait l'idée. C'est le pouvoir économique qui a crée cette nouvelle conception du travail. Le pouvoir économique a dit: faites les lois nécessaires à la flexibilité du marché de l'emploi et que tout fonctionne selon notre bon vouloir. Peut on encore parler de démocratie dans une telle situation ?

Vos relations avec Cuba et Fidel Castro sont elles toujours rompues ?

J'ai dit en avril de l'année dernière, après l'exécution des trois cubains qui avaient pris un ferry en otage à La Havane que Cuba n'avait rien gagné en les fusillant, mais qu'ils avaient en revanche perdu ma confiance, enterré mes espérances, brisé mes rêves. Je continue à penser la même chose. J'ai dit qu'à partir de ce moment, Cuba continuait sa route et moi je restais. Je l'ai dit et je m'y tiens toujours.

Croyez vous que vos opinions ont influencé de quelque manière l'attribution du Nobel ?

Non. Non, le Nobel s'attribue seulement sur critères littéraires. Et avant d'avoir le Nobel, je disais la même chose. Ce qui se passe, c'est que le Nobel est comme une espèce de porte parole. Mais le Nobel ne m'a pas fait dire ce que je ne disais pas avant, parce que je le disais, ni ne m'a fait taire parce que je n'ai jamais caché ce que j'avais à dire.

Il est compréhensible qu'un jeune de 17 ans soit communiste, mais est ce que ça l'est aussi pour un homme de votre âge ?

Vous connaissez le dicton «qui n'est pas révolutionnaire à 20 ans n'a pas de coeur, et qui continue de l'être à 40 ans n'a pas de tête» ? Je continue à avoir un coeur et une tête. Pour autant je suis toujours celui que j'ai été. On peut continuer avec la même illusion à 82 ans.

Mais vous avez une terrible réputation de pessimiste...

C'est que les pessimistes sont les seuls à vouloir changer le monde puisque les optimistes sont contents de ce qu'ils ont.

Croyez vous que les américains, en ré-élisant le président Bush se montrent enchantés de ce qu'ils ont ?

Bush est stupide et il faut avoir de la patience avec les imbéciles. Pour être président des Etats-Unis, il faut avoir de l'argent, parce qu'il n'y a pas de souvenir de président issu de la classe ouvrière et qui aurait eu le soutien de la grande industrie pétrolière et des armes, qui mettent à la tête du gouvernement un de leur représentant. Bush est un homme qui ment sans scrupule.

En plus des problèmes déjà mentionnés en Colombie, nous sommes en train de perdre nos indigènes puisque la guerilla, mais aussi paramilitaires et narco trafiquants les assassinent...

Ce lent génocide contre les véritables propriétaires de la terre américaine commença en 1492 et continue implacablement. Je ne parle pas seulement de la Colombie, également des indigènes de Chenalho aux Chiapas (Mexique) ou des Mapuches du sud. L'indifférence des gens ne m'étonne pas; c'est la marque de fabrique du colonisateur. En continuant ainsi, les indigènes disparaîtront totalement comme une espèce d'animal en voie de disparition, et les gens diront : «Ce fut un crime de plus, à rajouter à ceux déjà commis contre les indigènes.»

Vers quoi va le monde ?

Il y a quelques semaines nous déjeunions ma femme et moi avec Umberto Eco à Milan. A un moment il me dit «j'ai peur de ce que l'avenir réserve à mon petit-fils». Si vous analysez mes propos dans ce reportage, je trouverais que nous devons tous avoir peur de l'avenir.

COURRIEL D'INFORMATION ATTAC (n°497) - http://attac.org

Caim, ou a Bíblia como um «manual de maus costumes»



(...) A aparição de Caim em 2009 significou o regresso do autor ao tema religião, encarado novamente de forma frontal; embora, nesta ocasião, situando-se no Antigo Testamento para ler literalmente e reescrever uma dezena de episódios extraídos do Génesis, do Êxodo e do Livro de Job, cuja característica comum é a violência e o absurdo lógico em que se sustentam. Confronta-se, pois, com um dos últimos grandes relatos vigentes esgrimindo o seu ateísmo anti-religioso, que o faz considerar a Bíblia um «manual de maus costumes», «um catálogo de crueldade». (...)
Sai em defesa do livre arbítrio, do direito à liberdade individual e, diante do mito, esgrime a lucidez e a razão como valores universais que protegem a dignidade humana, numa leitura alternativa, num diálogo crítico que recorre também ao riso irreverente, à sátira, para censurar um deus, fruto da criatividade humana, que, aos seus olhos, se comportava com modos arbitrários e soberbos, opressivos e cruéis.(...)
Caim conclui com uma «negação total» que, em boa medida, sintetiza a visão trágica e desencantada do mundo que o acompanhou até ao final dos seus dias: «A terra está completamente corrompida e cheia de violências, só encontro nela corrupção, pois todos os seus habitantes seguiram caminhos errados, a maldade dos homens é grande, todos os seus pensamentos e desejos pendem sempre e unicamente para o mal, arrependo-me de ter criado o homem.» Inverter o sinal desse destino só podia estar nas suas mãos. Daí que, para Saramago, fosse imprescindível uma revolução ética que, reivindicando o valor supremo da bondade, reconhecesse como única prioridade o ser humano.

Fernando Gómez Aguilera

Excerto, de "A Estátua e a Pedra"
Fundação José Saramago
Páginas 57 a 59



Entrevista via Youtube, em http://www.youtube.com/watch?v=_zzOrpNnXYc

Via Bibliografia Activa, Fundação José Saramago
Aqui, em http://www.josesaramago.org/caim-2009/

A história de Caim e Abel é narrada no livro de Génesis. Este teria sido o primeiro homicídio da história da humanidade. Abel era pastor de ovelhas e Caim, lavrador.
Possuído por ciúmes, Caim armou uma emboscada para seu irmão. Sugeriu a Abel que ambos fossem ao campo e, lá chegando, Caim matou seu irmão. (Wikipédia http://pt.wikipedia.org/wiki/Caim_e_Abel 


Sinopse da Editorial Caminho
“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós , nem nós o entendemos a ele .” José Saramago
“Pela fé, Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor do que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus considerou-o seu amigo e aceitou com agrado as suas ofertas. E é pela fé que Abel, embora tenha morrido, ainda fala.” (Hebreus, 11.4)


(capa da edição turca)


Sinopse da Companhia das Letras
Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele se volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura. No trajecto, o leitor revisitará episódios bíblicos conhecidos, mas sob uma perspectiva inteiramente diferente.
Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogénito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O Evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irónica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.
A volta aos temas religiosos serve, também, para destacar o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: aqui, a capacidade de tornar nova uma história que conhecemos de cabo a rabo, revelando com mordacidade o que se esconde nas frestas dessas antigas lendas. Munido de ferina veia humorística, Saramago narra uma estranha guerra entre o homem e o senhor. Mais que isso, investiga a fundo as possibilidades narrativas da Bíblia, demonstrando novamente que, ao recontar o mito e confrontar a tradição, o bom autor volta à superfície com uma história tão actual e relevante quanto se pode ser.