Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 12 de junho de 2016

Crónica "Cataclismo, ou talvez não" (25/5/72) - "As opiniões que o DL teve"

Crónica "Cataclismo, ou talvez não" publicada no "Diário de Lisboa", sobre a capacidade do ser humano não providenciar a sustentabilidade dos recursos naturais do planeta.
Na "Declaração de Princípios" da Fundação José Saramago, e sendo este um assunto de enorme preocupação para José Saramago, pelo seu punho deixou escrito na alínea c), "Que à Fundação José Saramago mereçam atenção particular os problemas do meio ambiente e do aquecimento global do planeta, os quais atingiram níveis de tal gravidade que já ameaçam escapar às intervenções correctivas que começam a esboçar-se no mundo." (29/06/2007)
Na leitura das crónicas, "está lá tudo".
Rui Santos

José Saramago acompanhado de Betinho e Sebastião Salgado - Rio de Janeiro, 1997

"Cataclismo, ou talvez não"
(25 de maio de 1972)

"De vez em quando, e com uma regularidade que poderia levar a acreditar em revezamento premeditado, surgem vozes de alarme contra a rapidez com que se vão consumindo as reservas naturais do planeta, agravada por aquilo a que passou a chamar-se, maltusinamente, «explosão demográfica». Em regra, tais declarações são proferidas por autoridades competentes, não vezes adornadas pelo toque superlativo de um Prémio Nobel.
Veio agora o Dr. Dennis Gabor, cientista inglês distinguido com aquele prémio, avisar-nos de que a humanidade poderá ter apenas mais quarenta anos de vida, se a explosão demográfica não cessar. E que «no ano 2010, a Terra será tão paupérrima que nem os fertilizantes serão suficientes para evitar o descalabro». Sugere pois que se inicie o cultivo de plâncton, «em vez de se destruir essa extraordinária riqueza por meio da poluição». 
É possível que o Dr. Gabor tenha razão, que a tenham todos quantos, cientistas ou apenas profetas, andam pelo mundo nesta nova cruzada apocalíptica, a anunciar o fim dos tempos. Talvez haja, de facto, gente a mais, e a poluição, em todas as suas formas, ganha certamente proporções de cataclismo. Quanto aos recursos da Terra, se nos lembrarmos de que nada se pode tirar donde não haja, não custa a acreditar que se caminha para uma pauperização das fontes de energia e de subsistência que permitiram, até agora, melhor ou pior, a vida dos homens. 
Resta saber, porém, se o remédio está, como disse o Dr. Gabor, em «fazer congregar a evolução da ciência inteiramente em novas conceções biológicas», o que pode significar uma forma de planificação eugenística para «poupar a humanidade a uma crise de crescimento desmesurado». Tudo se passaria, se não interpretamos mal, como se o número de habitantes da Terra tivesse de ser cientificamente controlado em cada geração de acordo com os alimentos disponíveis, algo como o que sempre aconteceu entre as espécies animais, que têm de sofrer passivamente as flutuações da pitança e de resignar-se à redução a níveis viáveis quando a sua própria «explosão demográfica» venha a tornar-se insuportável. 
Mas o homem é o ser racional entre todos os seres que constituem a população animal da Terra. Pela razão que em si habita, libertou-se da sujeição cega à natureza e afeiçoou-a às suas necessidades. Errou muitas vezes, emendou-se e insistiu no caminho, e hoje, vivida uma história de milénios, acha-se, ao que parece, diante da possibilidade de desaparecer da face da Terra, não, como chegou a imaginar-se, através do desastre nuclear, do envenenamento radiativo, mas simplesmente, absurdamente, porque comeu tudo quanto havia para comer, ao mesmo tempo que sujava a mesa e a toalha... 
Importa pois saber (se, como se presume, não há nenhuma entidade demoníaca friamente apostada em fazer-nos desaparecer do mundo...) em que mãos se encontram de facto os destinos da humanidade. Já hoje centenas de milhões de seres humanos não comem quanto deveriam, embora os alimentos existentes bastassem para tal, se fossem produzidos e distribuídos em estrito acordo com as necessidades da humanidade. Estes males só poderão agravar-se com o aumento da população e com o desperdício das riquezas naturais, mas isto não há de significar que a «recessão demográfica» por alguns desejada se faça em termos de discriminação entre povos ricos e pobres. Pelo princípio dos vasos comunicantes, o lado «cheio» tende preencher o lado «vazio», porventura esvaziado para que isso mesmo aconteça... 

in "As opiniões que o DL teve"
25/05/1972

(NR: Bold meu)