Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 20 de dezembro de 2014

José Saramago "A guerra do desprezo" - Publicado na "Crítica Marxista" (São Paulo, 1999)

A revista digital, "Blimunda", pode ser descarregada, gratuitamente, através do site da Fundação José Saramago. É lançado o número 31, que como refere «encerra o ano de 2014 da melhor maneira».
Aqui, pode ser lida a sinopse de apresentação,

"A Blimunda #31 encerra o ano de 2014 da melhor maneira."

"Em destaque, o dossier dedicado a Agustina e a Sophia, duas das grandes autoras portuguesas que este ano receberam justas homenagens da sociedade portuguesa. No caso de Sophia, com a sua entrada no Panteão Nacional, numa cerimónia de enorme beleza, fazendo jus à poesia que nos deixou. Desse momento, a Blimunda publica o texto de José Manuel dos Santos, que em representação da Cultura portuguesa leu o belo texto que agora fica perpetuado nestas páginas. No caso de Agustina, com um grande Congresso organizado pelo Círculo Literário Agustina Bessa-Luís e acolhido pela Fundação Calouste Gulbenkian, do qual publicamos os textos de Artur Santos Silva e de Mónica Baldaque.
Destaque também nesta Blimunda para a conversa de Andreia Brites com um dos grandes autores de álbuns ilustrados do século XX, o norte-americano Eric Carle, no ano em que se assinalam 45 anos da publicação de um dos seus mais aclamados livros, A lagartinha muito comilona.
A 28 de outubro deste ano, o Vaticano recebeu pela primeira vez o Encontro Mundial de Movimentos Populares, promovido pelo Papa Francisco, que contou com a participação do presidente boliviano, Evo Morales. Desse momento histórico chega-nos o relato pela voz de Ignacio Ramonet.
Espaço ainda na Blimunda para a conversa de Sara Figueiredo Costa com os responsáveis por um novo projecto editorial português, a Guilhotina, e a fechar, na Saramaguiana, o texto de Claudia Piñeiro lido na apresentação de Alabardas, que teve lugar na Feira Internacional do Livro de Gudalajara.
No fim de mais um ano, a Blimunda deseja a todos os seus leitores um 2015 de boas leituras!"


Na segunda página, da revista agora lançada, pode ser lido um excerto de um texto, publicado em 1999, a propósito de mais uma chacina prepertrada contra o povo de Chiapas.

Aqui, link original, para leitura completa,
em, http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/sumario.php?id_revista=8&numero_revista=8

"A guerra do desprezo"

O braço direito do índio Jerónimo não se pode levantar porque tem completamente destroçada a articulação do ombro. A mão direita do índio Jerónimo é um coto sem dedos. Não se sabe o que está sob a ligadura que lhe envolve o antebraço. O lado direito do tronco do índio Jerónimo mostra, de cima a baixo, uma cicatriz larga e funda que parece partir-lhe o corpo em dois. Os olhos do índio Jerónimo perguntam-me que faço ali. O índio Jerónimo tem quatro anos e é um dos sobreviventes da matança de Acteal. Não suporto ver aquele braço, aquela mão, aquela cicatriz, aquele olhar, e viro as costas para que não se perceba que vou chorar. Diante de mim, velada pelas lágrimas que me queimam os olhos, está a fossa comum onde se encontram, em duas filas paralelas, os quarenta e cinco mortos de Acteal. Não há tabuletas com nomes. Tiveram um nome enquanto viveram, agora são simplesmente mortos. O filho não saberia dizer onde estão os pais, os pais não saberiam dizer onde está o filho, o marido não sabe onde está a mulher, a mulher não sabe onde está o marido. Estes mortos são mortos da comunidade, não das famílias que a constituem. Sobre eles está a construir-se uma casa. Amanhã, um dia, nas paredes que a pouco e pouco vão sendo erguidas, veremos as imagens possíveis da carnificina, o enterramento dos cadáveres, leremos enfim os nomes dos assassinados, algum retrato, se o tinham. Debaixo dos nossos pés estarão os mortos. Trabalhosamente, descemos ao barranco onde as vítimas se esconderam, fugidas à agressão dos paramilitares que desciam a encosta disparando. A igreja, simples barracão de tábuas em bruto, sem adornos, sequer uma cruz tosca na frontaria, onde os índios, desde há três dias, estavam jejuando e rezando pela paz, mostra os sinais das balas. Dali se escaparam os espavoridos tzotziles de Acteal julgando poder encontrar refúgio mais para baixo, numa reentrância do terreno escarpado. Não sabiam que tinham entrado numa ratoeira. A horda dos paramilitares não tardou a descobrir aquele informe amontoado de mulheres, homens e crianças, dezenas de corpos trémulos, de rostos angustiados, de mãos levantadas a implorar misericórdia. (Ai de nós, o acto de apertar o gatilho de uma arma tornou-se tão habitual na nossa espécie que até o cinema e a televisão já nos dão lições gratuitas dessa arte a qualquer hora do dia e da noite.) Sobre o mísero nó humano que se contorcia e gritava, os paramilitares despejaram, a gosto, rajadas e rajadas, até que o silêncio da morte respondeu aos últimos disparos. Algumas crianças (talvez o índio Jerónimo?) escaparam à chacina por terem ficado debaixo dos corpos crivados de balas. Apenas a 200 metros dali, quarenta agentes da Segurança Pública, chefiados por um general reformado, ouviram o tiroteio e não deram um passo, não fizeram um gesto, apesar de saberem o que estava a acontecer. Foi tal a indiferença das autoridades que nem ao menos cortaram o trânsito na estrada que passa por Acteal, a pouca distância do local do múltiplo crime. A cumplicidade das diversas forças armadas mexicanas com os paramilitares ligados ao partido do Governo, por de mais evidente, não precisa de melhor demonstração. 


No município índio de Chenalhó (leia-se Chenal-hó), onde se encontra o povoado de Acteal, misturam-se as histórias pessoais e familiares, políticas e sociais. "Zapatistas" e "priístas" têm parentes e amigos no outro bando, e não é raro que as vexações recíprocas destruam os afectos. Os
deslocados, varridos brutalmente de um lado para outro, provém da destruição das pequenas aldeias em que viviam, da falta de respeito pelos campos comunais, da impossibilidade de se reunirem em assembleias e de trabalharem sem medo, das humilhações inflingidas pelas autoridades, da mudança forçada de dirigentes por outros sem mandato nem eleição, da destruição dos símbolos comunitários, da proibição de reuniões, ou toleradas sob a vigilância de paramilitares protegidos pela polícia. Na
guerra do desprezo que se está travando em Chiapas, os índios são tratados como animais incómodos. E a multinacional Nestlé espera com impaciência que o assunto se resolva: o café está à sua espera...
Perto de Acteal, em Polhó (leia-se Pol-hó), num cartaz à entrada do acampamento de deslocados zapatistas, lêem-se estas palavras: "Que será de nós quando o último de vós se for embora?. E eu pergunto: "Que será de nós quando se perder a última dignidade do mundo?".

"SARAMAGO, José. A guerra do desprezo. Crítica Marxista, São Paulo, Xamã, v.1, n.8,
1999, p.9-10."


Aqui, mais informação, via Wikipédia,

"O massacre de Acteal, ocorrido em 22 de Dezembro de 1997, consistiu na chacina de 45 indígenas tzotziles que se encontravam rezando numa igreja na localidade de Acteal, no estado mexicano de Chiapas. A opinião dominante é que este massacre terá sido executado por forças paramilitares eventualmente opostas ao Exército de Libertação Nacional Zapatista (EZLN) mas nunca realmente identificadas. Entre as vítimas contavam-se dezasseis crianças e adolescentes bem como vinte mulheres (algumas delas supostamente grávidas) e nove homens adultos.
Segundo os relatos de testemunhas as vítimas, pertencentes a um grupo comunitário denominado Las abejas (as abelhas) simpatizante do EZLN, terão sido mortas por cerca de 90 paramilitares, supostamente membros dum grupo denominado Máscara Roja (máscara vermelha), durante uma operação que se terá prolongado por cerca de 7 horas, a curta distância de um posto militar. Os militares ali estacionados não intervieram de forma a evitar o massacre, existindo relatos de que na manhã seguinte alguns deles se encontravam na igreja, lavando o sangue das paredes.
Na sequência do massacre cerca de 100 pessoas, na sua maioria indígenas, acabariam por ser detidas numa prisão de Tuxtla Gutiérrez, a capital de Chiapas.
O então bispo de San Cristóbal de las Casas, Samuel Ruiz, afirmou ser necessário que a Procuradoria Geral da República investigasse sobre quem seriam os instigadores deste massacre.
Entre os presumíveis participantes encontravam-se oito ex-oficiais das forças de segurança pública, condenados a penas de pouco mais de três anos de prisão e libertados logo de seguida.
Segundo dados não oficiais, crê-se que nessa altura em Chiapas operavam vários grupos paramilitares que combatiam o EZLN. Há quem sugira[quem?] que estariam ligados ao Partido Revolucionário Institucional (PRI), então no poder havia 68 anos."