Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Revista "Blimunda" edição #67 (12/2017)

A presente edição está disponível para consulta e download através dos links aqui publicados,


Capa da edição #67

Página do Facebook da "Blimunda" https://www.facebook.com/revistablimunda/

Apresentação da revista
"Com o novo ano quase à porta, chega a edição 67 da Blimunda. Este mês a revista visitou a It´s a book, livraria nascida há um ano em Lisboa que aposta na “curadoria” dos livros que tem disponíveis como o seu principal diferencial. A Blimunda esteve também com Duarte Pereira, um jovem livreiro que leva a sua livraria, a Snob, a todo o país.
Merece ainda destaque neste número a publicação de «Comer Beber», de Filipe Melo e Juan Cavia, um livro ilustrado que tem a memória como tema central.
Como no número anterior, a Blimunda dá espaço para um autor britânico inédito em português. Este mês a revista publica um excerto de The Bone Readers, de Jacob Ross, traduzido por Carla Fernandes.
A Saramaguiana vasculhou o arquivo de Gabriel García Márquez para recuperar um episódio em que ele, José Saramago e outros grandes nomes da literatura mundial se uniram para apoiar a Orhan Pamuk.
A fechar 2017, a nossa e vossa Blimunda deixa o desejo de um Bom 2018."

"A Jangada da Europa à Deriva – Apontamentos sobre a Actualidade d’A Jangada de Pedra de José Saramago" via I Cátedra Internacional José Saramago da Universidade de Vigo

"A Jangada da Europa à Deriva – Apontamentos sobre a Actualidade d’A Jangada de Pedra de José Saramago" pode ser recuperado aqui 
em http://catedrasaramago.webs.uvigo.es/pt/publicacions-da-catedra/a-jangada-da-europa-a-deriva-apontamentos-sobre-a-actualidade-d-a-jangada-de-pedra-de-jose-saramago-49/#_edn2

Toda a informação aqui em http://catedrasaramago.webs.uvigo.es/

"A Jangada de Pedra" da edição Caminho (1986)


“Fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal...), o romance que então escrevi - A Jangada de Pedra - separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção ao Sul do mundo, «massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais», a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens... Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais generosa e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra - duas mulheres, três homens e um cão - viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros...). Isso lhes basta.”  
(José Saramago, Discursos de Estocolmo) 

Em 2016, os 30 anos da edição d’A Jangada de Pedra de José Saramago coincidiram com o trigésimo aniversário da adesão de Portugal e Espanha à CEE, a futura União Europeia. A relevância da perspectiva saramaguiana sobre a relação das culturas ibéricas com o resto da Europa, sobre o processo de construção da UE continua a ser evidente. 

No seu momento, o romance e as opiniões do autor representavam uma visão radicalmente diferente daquela que vigorava na opinião pública de então. Desde a direita até ao centro-esquerda, depreciava-se qualquer debate sobre os perigos de antecipar uma união económica a uma convergência político-cultural. Uma ampla maioria nos principais países europeus acreditava que o período de paz após a II Guerra Mundial só se devia ao processo de integração económica europeia. 

Mas o romance sugeriu, de uma forma muito plástica, como o conflito pós-colonial de sistemas também se podia transformar em conflito cultural na própria metrópole Europa. Depois de 500 anos de presença em três continentes e após a perda das últimas colónias, a entrada de Portugal e Espanha na CEE tinha sido menos um regresso do que uma chegada. Até à morte de Franco ou ao 25 de Abril, respectivamente, a Europa tinha sido para Espanha e Portugal sobretudo um destino de emigração e de exílio. 

A adesão económica, porém, aconteceu num momento no qual esta Europa já se encontrava desprovida de um imaginário comum. Nos casos espanhol e português, talvez tenha vigorado naquele momento uma utopia de modernização das suas sociedades. Mas o que realmente produziu uma política de factos consumados era a economia comunitária com os seus caudais de fundos de desenvolvimento. 

Porém, não havia naquele momento um projecto político-cultural de uma Europa com valores comuns que pudesse ter servido de alicerce para uma integração. Precisamente por isso, A Jangada de Pedra insistiu na necessidade de acção de um sujeito que não pode ser desvinculado do seu contexto histórico-social e político. Como em toda a obra saramaguiana, também este romance participa de uma certa utopia do destino individual e do futuro melhor. Mas esta só se justifica pela acção histórica do sujeito e por este adquirir uma memória crítica do passado. 

Assim, a vara de negrilho e o risco de Joana Carda, que maravilhosamente desencadeiam a rotura da Península Ibérica nos Pirenéus, deslegitimam todas as vinculações impostas, sociais ou políticas. É sugerida a instituição de uma nova realidade, de uma necessária heterogeneidade cultural e de uma reescrita pós-colonial da História. A leitura crítica da História que propõe o romance lembra-nos que a Europa precisa de uma narrativa actualizada e da sua conseguinte posta em prática. Entre outros aspectos, sugere que é indispensável assumirmos a culpabilidade europeia em relação às culturas e aos espaços colonizados. 

Saramago concretizou esta reivindicação em 1998, no seu discurso na cerimónia de entrega do prémio Nobel. Aí reclamou uma “nova utopia” para a Europa, uma reorientação “para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo” e que esta Europa se assuma, de uma vez por todas “finalmente como ética”.[1] Não era a única ocasião em que se desvinculara da corrente europeizante do pensamento nacional em Portugal.[2] 

Mas era no discurso de Estocolmo onde chegou a caracterizar A Jangada de Pedra como o “fruto do ressentimento colectivo português” e até, “pessoal”, “pelos desdéns históricos de Europa”.[3] E em 1986, numa entrevista para a revista francesa Libération, tinha deixado claro que no cerne da questão estava a necessidade de acrescentarmos à memória colectiva europeia uma argumentação ética: 

“Esse romance […] é o efeito, talvez último, de um ressentimento histórico. Provavelmente, só um português poderia ter escrito tal livro. Mas o seu autor, este autor, declara que estaria pronto a fazer regressar do mar a errante jangada, depois de alguma coisa ter aprendido de vitalmente necessário durante a sua navegação, se a Europa, reconhecendo-se, de facto, incompleta sem a Península Ibérica, viesse a fazer pública confissão dos erros cometidos, das injustiças e dos desprezos com que durante tantos anos tratou dois povos a quem deve muito mais do que aquilo que tem querido reconhecer.”[4] 

Mas a utopia de uma “Europa finalmente como ética”, livre de complexos de superioridade, não implica o desaparecimento dos ‘factos diferenciais’ que distinguem as culturas ibéricas entre si, mas também, pelo menos na sua grande maioria, das outras culturas europeias. Continua a haver lugar para o sonho de um destino atlântico das culturas peninsulares. 

Naturalmente, isto inclui também a defesa de um pluralismo e de uma identidade cultural fluída, acorde com um mundo globalizado, sem nunca abdicar da premissa de uma ética concreta e palpável: 

“De um ponto de vista ético abstracto, a Europa não tem mais culpas no cartório da história que outra qualquer parte do mundo onde, hoje e ontem, por todos os meios, se tenham disputado o poder e a hegemonia. Mas a ética, exercendo-se, como no-lo está dizendo o senso comum, sobre o concreto social, é porventura a menos abstracta de todas as coisas.”[5] 

Esta filosofia do sentido comum é a base do “privilegiamento das permutas culturais” com a América Latina e a África,[6] com o qual o eurocentrismo deve ser contrariado, uma ideia que Saramago circunscreveu com o conceito da “trans-ibericidade”.[7] Quer dizer, o desafio de a Europa enfrentar a sua imagem no espelho das culturas pós-coloniais às quais deu origem. 

Hoje, quando se deplora o euro-cepticismo seria conveniente lembrar que Saramago já nos avisou em 1986 que existe “além dessa espécie de deformação congénita denominada eurocentrismo, aquele outro comportamento aberrante que consiste em ser a Europa, por assim dizer, eurocêntrica em relação a si mesma”.[8] Saramago sempre insistiu na correlação entre uma ética comum e a necessária aceitação dos factos diferenciais das diferentes culturas europeias: 

“[…] não haverá no futuro próximo uma nova Europa se esta não instituir frontalmente como entidade moral, e também não a haverá se não for abolido, mais do que os egoísmos nacionais, que quantas vezes não passam de meros reflexos defensivos, o preconceito da prevalência ou da subordinação das culturas.”[9] 

Nos trinta anos que Portugal e Espanha estão agora na CEE e na UE, nivelaram-se muitas diferenças económicas e administrativas, mas também culturais. A visibilidade e o conhecimento das culturas ibéricas nas grandes potências europeias, e na UE em geral, têm certamente aumentado. Mas também presenciamos uma crescente desconfiança dos países do Centro-Norte em relação aos países do Sul, frequentemente acusados de serem demasiado corruptos, dispendiosos e preguiçosos. Uma recente tentativa do Ministro de Finanças alemão de interferir na política interna portuguesa tem sido disso só um exemplo paradigmático, entre muitos outros. Em 2016, numa cimeira em Budapeste, Wolfgang Schäuble apresentou o Portugal da Troika como um exemplo do que devem ser as políticas económicas a seguir pelos países da zona euro, ao dizer que “Portugal estava a ser muito bem sucedido até entrar um novo governo, depois das eleições”, que a sua falha tinha sido “declarar que não iria respeitar os compromissos assumidos pelo anterior Governo” e “se seguirem esse caminho, vão assumir um grande risco”, afirmou.[10] Já antes, o mais poderoso dos ministros de finanças da UE tinha advertido do perigo de Portugal ter de pedir um novo resgate, se não acatasse as regras ditadas pela Comissão Europeia. 

Estas imposições de cortes financeiros chocam com o facto de terem sido os 10% mais pobres que perderam 24% do rendimento, entre 2009 e 2013 em Portugal, enquanto o rendimento dos 10% mais ricos só desceu 8%. Também segundo o Eurostat, mais de um quarto da população portuguesa (25,3%, na Espanha são 28,2%) está em risco de pobreza e exclusão social, um risco que está a aumentar em todos os países da União Europeia, ininterruptamente desde 2008, sobretudo nos países sujeitos a ‘troikas’ ou a medidas radicais de austeridade, eufemisticamente ditas “ajustamentos estruturais”. 

Em 1986, Saramago já intuiu que uma integração económica europeia sem enquadramento cultural, político e ético iria causar muitos desequilíbrios e que “o seu pecado ou vício maior, […] é a existência de duas Europas, a central e a periférica, mais o consequente lastro histórico de injustiças, discriminações e ressentimentos”.[11] O facto de Portugal, especialmente durante os anos da recente crise económica e financeira mundial, ter sido relegado para o papel de fornecedor de mão-de-obra barata ou de destino turístico de baixo custo e massificado, com Lisboa e Porto em clara deriva para a gentrificação e a descaracterização, ilustra esses desequilíbrios. A desconfiança e altivez com que os governos dos países do Centro-Norte costumam dirigir-se ao Sul da Europa, não é um fenómeno recente e já estava presente quando Saramago escreveu A Jangada de Pedra: 

“é desta maneira idealizada que os europeus costumam ver-se no espelho de si mesmos, e essa é a servil resposta que a si mesmos invariavelmente vêm dand «Sou eu o que de mais belo, de mais inteligente e de mais culto a Terra produziu até hoje.»”.[12] 

Um dos principais reflexos actuais desta atitude doutoral desprovida de uma ética do “concreto social” talvez seja a imposição de uma austeridade e de um dogmatismo financeiros que produziram novas vagas de emigração, agravado ainda pela falta de uma política de compromisso inequívoco em relação à crise humanitária dos refugiados. Estas e muitas outras dissonâncias no seio da EU compõem um desolador panorama de desintegração e falta de solidariedade, tal como o descreveu Saramago já em 1986:

“Para os estados europeus ricos e, segundo a opinião narcísica em que se comprazem, culturalmente superiores, o resto da Europa é algo vago e difuso, um pouco exótico, um pouco pitoresco, merecedor, quando muito, da atenção da antropologia e da arqueologia.”[13] 

Não é só Portugal que se debate hoje com transformações estereotipadas e superficialmente estetizadas da sua identidade. Há uma pressão para que os economicamente mais fracos correspondam, entre outras imposições de um mercado comunitário e simultaneamente globalizado, ao ideal de destino de negócio aliciante ou de turismo low cost. Enquanto a Europa se encontrar numa deriva desintegradora, austerocrática, paternalista, heteropatriarcal e sem consenso sobre valores comuns, um livro como A Jangada de Pedra continuará a ser uma mensagem política relevante para os indispensáveis debates sobre o futuro da UE. 

Como instituição, cuja credibilidade depende de como consegue responder às expectativas da cidadania, a UE vive, hoje em dia, submersa numa grave crise de valores. Para que possa formular alternativas reais ao euro-cepticismo crescente, não só precisa de uma reflexão colectiva e inter-cultural em torno dos problemas actuais como bem-estar, coesão, equidade ou segurança. Mas também sobre a promessa incumprida de uma Europa das Regiões, sobre a necessária redefinição de uma identidade cultural europeia a partir de valores como solidariedade e Direitos Humanos, entre muitos outros. 

Apesar de ter sido um declarado crítico do conceito de utopia, Saramago sempre se esforçou por deixar uma porta aberta para uma reinvenção em positivo da narrativa “Europa”. Porém, este renovado relato ético teria de partir da cidadania e do sujeito, da ideia de um demos (δήμος) europeu, ou seja, de um conceito de povo que não se fundamenta exclusivamente no étnico. Só a expressão deliberativa, cooperativa e colectiva da vontade dos sujeitos pode legitimar uma acção política e social oposta à tecnocracia descaracterizadora. Mas antes de lá chegar, esta cidadania precisa de assumir que 

“as culturas, é tempo de começar a entendê-lo Europa, e entendida tente ficar de uma vez para sempre, não são melhores nem piores umas que as outras, não são mais ricas nem mais pobres. Pelo destino, valem-se e equivalem-se, e pela diferença, assumida e aprofundada, é que se justificam.”[14]

(Burghard Baltrusch)

Como citar este artigo:

Baltrusch, Burghard (2016). "A Jangada da Europa à Deriva –  Apontamentos sobre a Actualidade d’A Jangada de Pedra de José Saramago", in Publicações no site da I Cátedra Internacional José Saramago, (acesso ../../....).


Este texto é uma versão abreviada e ligeiramente modificada do artigo "NOS 30 ANOS D’A JANGADA DE PEDRA: JOSÉ SARAMAGO E A ATUALIDADE DO DISCURSO DA “TRANS-IBERICIDADE”, publicado em Fênix - Revista de História e Estudos Culturais (n.º 2, 2016).

[1]Saramago (1999). Discursos de Estocolmo. Lisboa: Caminho. 
[2]Saramago (1988). “O (meu) Iberismo”, Jornal de Letras, Artes e Ideias 330, 31.10., p. 32. 
[3]Saramago (1999), Discursos de Estocolmo. Lisboa: Caminho. 
[4]Saramago [1986] (2016). “Meditação sobre uma Jangada”, Blimunda 55, p. 105, reed. em port. de uma entrevista dada à Libération em 1986. 
[5]Ibid., p. 100. 
[6]Saramago (1986). “A Península Ibérica nunca esteve ligada à Europa” [entrevista a Inês Pedrosa], Jornal de Letras, Artes e Ideias, 10.11., p. 24. 
[7]Saramago (1989). “Acerca do (meu) Iberismo”, Encontros: Revista Hispano Portuguesa de Investigadores en Ciencias Humanas y Sociales 1, p. 31. 
[8]Saramago [1986] (2016). “Meditação sobre uma Jangada”, Blimunda 55, p. 101. 
[9]Ibid., p. 102-103. 
[10]Público do 26.10.2016, <https://www.publico.pt/2016/10/26/economia/noticia/schauble-diz-que-portugal-estava-a-ser-bem-sucedido-ate-entrar-um-novo-governo-1748949>, acess 20/01/2017. 
[11]Saramago [1986] (2016). “Meditação sobre uma Jangada”, Blimunda 55, p. 101. 
[12]Ibid., p. 99. 
[13]Ibid., p. 102. 
[14]Ibid., p. 103. 

"José Saramago – O homem dividido" na "Up Magazine TAP Portugal" de Ana Sousa Dias (01/12/2009)

"José Saramago – O homem dividido"
O trabalho de Ana Sousa Dias para a "Up Magazine TAP Portugal" (01/12/2009), pode ser consultado e recuperado aqui
em http://upmagazine-tap.com/pt_artigos/jose-saramago-o-homem-dividido/

 Fotografia constante na presente crónica

"Sempre se regressa, diz José Saramago nesta conversa com viagens em fundo. Quem fala, tem dois sítios e não sabe qual deles é o “mais sítio”. Lisboa, a cidade onde se fez homem e escritor, ou Lanzarote, a ilha escolhida para viver."

"Três memórias sobressaem na caminhada “viageira” do escritor português nascido na Azinhaga, perto da Golegã, a 16 de Novembro de 1922. O comboio das 5 e 55, que apanhava na estação do Rossio até Mato Miranda, para as férias em casa da avó Josefa. A escada, nem sequer escadaria, da Biblioteca Laurenziana, em Florença. E a inesperada subida ao topo da Montanha Branca, num dia de 1993.

A própria ideia de turismo aborrece o escritor que, depois do Prémio Nobel da Literatura (1998), viaja sucessivamente, em visitas de toca-e-foge. Entre Viagem a Portugal e A Viagem do Elefante, o autor deu voltas à língua e às verdades feitas, como quem desmancha um brinquedo e o remonta com outra lógica. Caim, o seu mais recente livro, aí está para incomodar as mentes resignadas. E os dedos de José continuam a teclar o computador para mais um livro, para mais crónicas do observador do mundo.Velhinho, o cão Camões aconchega-se no soalho. A casa de Lanzarote está sossegada, com Pilar del Rio, a mulher de Saramago, trabalhando e sempre atenta.

Começamos por falar do livro Viagem a Portugal (1985), “uma viagem que eu nunca imaginei que um dia faria”. Foi convidado a fazê-la pelo amigo Manuel Dias Carvalho, então editor do Círculo de Leitores. Logo no título há uma intenção, e a ideia foi Saramago buscá-la ao livro do espanhol Camilo José Cela, Viaje a la Alcarria. E para dar razão ao “a” em vez do “em”, o escritor demorou-se uns dias na Galiza e entrou em Portugal por Miranda do Douro. Foi fazendo outras excursões. Percorria uma região e regressava a Lisboa com muitas fotografias e cadernos decapa preta cobertos de notas. Depois de tudo junto e arrumado e escrito tornou-se o livro que levou muita gente a querer descobrir o país.

Passados mais de 20 anos, o que pensa o autor deste trabalho? “Não que tenha sido o livro mais importante que escrevi, mas é daqueles que eu estimo mais. Tudo isto é um pouco contraditório, porque sempre fui uma pessoa muito sedentária, tirando a vida no campo, em que fazia longuíssimas excursões por aqueles rios. Mas gosto do livro. É o livro de uma pessoa que não se importa de ser surpreendida com a sua própria ignorância. Escrevi sobre aquilo que vi, experimentei, senti.” Essa Viagem a Portugal é para o Nobel português como uma “irmã gémea” de O Memorial do Convento, seu primeiro grande sucesso editorial: “São escritas distintas, evidentemente, uma de relato e outra de ficção, mas há um gosto quase físico pelo uso da palavra, por procurar o sítio onde a vais pôr. E é um livro longo, longo, longo. Quando cheguei ao final fiquei surpreendido. Tenho coisas que ainda hoje leio e continuo a gostar muito”."

Baptismo de voo

"Por se reconhecer sedentário, o escritor confessa que só tirou passaporte em 1969, “inevitavelmente, para ir a Paris”. Foi a primeira vez que andou de avião, e também a primeira que passou a fronteira – “nem a Badajoz tinha ido”.

“Podia pensar que seria interessante, que valeria a pena, mas com que dinheiro podia fazer essa viagem? Tendo levado quase uma vida neste rame-rame do quotidiano, do trabalho, realmente não senti essa espécie de brotoeja que convida à viagem, ou que empurra à viagem. Há pessoas assim, eu não sou uma delas.”

Essa primeira viagem a Paris, como outras que se lhe seguiram, teve no escultor Lagoa Henriques um guia experiente e sabedor: “O que eu conheço da Europa devo-o a esses anos. Porque depois, embora tivesse regressado a alguns desses lugares, o tempo para mim era uma coisa muito semelhante ao de um jogador de futebol: viagem, hotel, estádio, hotel, viagem”.

Percorreu o mundo principalmente depois da viagem especial que fez à Suécia, em 1998, para receber o Prémio Nobel da Literatura. Tem pena de nunca ter ido ao Japão.

Ainda assim, sem vontade de viajante, Saramago tem boas memórias guardadas. Por exemplo, a subida a Machu Picchu, “uma das emoções, não sei se estéticas se outra coisa, da minha vida”. Ou ainda: “Na Viagem a Portugal, em Trás-os-Montes, ter passado uma pequena ponte de uma margem para a outra, e depois olhar para o outro lado. Não parece nada de extraordinário, mas a atmosfera, as plantas, o luar, as nuvens, o rio, aquilo de repente foi um choque”. E por falar em choque: “Choque, mas choque, aconteceu-me em Florença. É uma cidade inesgotável, nunca se acaba de ver Florença. Eu estava só e lembro-me de um sítio onde há um desses mercados de rua e uma igreja que nem acabada está. Como sabia que havia ali a biblioteca Laurenziana, do Lorenzo de Medici, fui lá. Nunca me aconteceu nada assim”.

E o que é que aconteceu? “O acesso à biblioteca, riquíssima, faz-se por um pequeno espaço que não tem nada de especial a não ser uma escada. O que conta é a escada. Nem sequer foi esculpida por Miguel Ângelo porque aquilo é trabalho de canteiro. Mas ele desenhou-a. Quando me enfrentei com ela – nunca me tinha acontecido tal coisa – tremi da cabeça aos pés. Vi muita coisa, os Uffizi, o [Palácio] Pitti, o Louvre, o Jeu de Paume, e creio que vi muito. Anos depois voltei lá e o milagre já não aconteceu, mas a grande emoção estética da minha vida não é um quadro do Rembrandt, do Van Gogh, ou do Velásquez, foi uma escada. Talvez não fosse o supra-sumo da escada mas era e é para mim o supra-sumo da arte.”

"José Saramago cerimónia Prémio Nobel/ Nobel Prize ceremony"

Viagens interiores

"Desçamos agora da escada de Florença para reencontrar o homem que insiste em nunca ter tido “o prazer da viagem”. E no entanto, vai buscá-lo a um passado bem antigo: “Sou incapaz de mostrar que estou contente, com esta cara que Deus me deu. A emoção da viagem, senti-a quando era garoto e apanhava, na estação do Rossio, normalmente sozinho, o comboio que me levava para férias à estação de Mato Miranda, onde estava ou a minha tia Levira, ou quase sempre a minha avó Josefa esperando-me. Isso sim, aquele comboio lento que nunca mais chegava, troca-troca, troca-troca, troca-troca. A expectativa, a noite que se mal dorme porque há uma excitação. E embora aquilo já não tivesse segredos para mim, vivia-o de cada vez com a emoção de quem sabia o que o esperava – chegar à Azinhaga, entrar na casa dos meus avós com o seu chão de barro e tirar os sapatos, que era a primeira coisa que eu fazia. Só voltava a calçá-los quando regressava, já com o pé um pouco maior. Isso sim. O sentido da  viagem, ir andando e descobrindo, só o tive na Azinhaga”.

Em Novembro de 2008, Saramago emergiu de um longo período de doença com um livro surpreendente: A Viagem do Elefante. Novamente a viagem no título, desta vez para conduzir à Áustria o elefante Salomão, um presente do rei português D. João III para o primo da mulher, Dona Catarina. Haverá nesta caminhada sinais da viagem a Portugal dos anos 80?

“A parte portuguesa de A Viagem do Elefante é pura invenção. Estamos no século XVI. Então invento essa viagem sem nomear lugares, salvo Castelo Rodrigo, lá em cima. A Viagem do Elefante é um produto da imaginação, só da imaginação. De elefantes eu não sei nada e duvido mesmo que se possa saber qualquer coisa de jeito. É um animal simpático e portanto tratava-se de levá-lo, pô-lo nas mãos do arquiduque da Áustria, e fazer-se aquela viagem enorme até à Catalunha, e continuar a inventar tudo, porque eu nunca estive nos Alpes. Posso dar uma falsa ideia de grande viajante, mas sinceramente não sou.”

Regressar é preciso

Sabemos que a caminhada europeia do elefante Salomão não teve regresso, mas Saramago sabe que “sempre se regressa”, ele que tem dois portos de chegada: “Tenho dois sítios e é difícil dizer qual é o sítio mais sítio. Vim para Lanzarote com a Pilar em 1993, cheguei aqui com 70 anos, a enraizar-me. Não conhecia ninguém e depois isto foi crescendo de uma maneira que eu não podia sonhar”.

“Essa é outra viagem, a viagem das pessoas e das coisas no tempo. Fizemos esta casa, fizemos outra em Lisboa. Nunca tive casas, nunca tive bens de raiz, e agora tenho tudo, a começar por uma mulher extraordinária que foi a grande sorte da minha vida. E não é pela comodidade da pessoa que envelhece e que tem a seu lado alguém a quem quer, a quem ama e que sabe que é amado e querido por essa pessoa. Não é isso. Escrevi nos Cadernos de Lanzarote que se tivesse morrido com 63 anos, antes de conhecê-la, teria morrido muito mais velho do que sou agora, porque ela veio trazer-me nem sei dizer o quê, a felicidade, sim, mas a felicidade é uma palavra curta, veio trazer outra coisa, um sentido de vida novo. Mesmo assim isso não diz tudo.”

Foi logo no ano de 1993 – e “O ano de 1993” é o título de um livro de poemas que José publicou em 1975 – que Saramago chegou ao cimo da Montanha Branca, vizinha da casa onde vive com Pilar, em Tías, na ilha atlântica de Lanzarote: “Subi a Montanha Branca com 70 anos. Foi uma grande viagem e nem sequer premeditada. Saí de casa para dar um passeio e fui casualmente naquela direcção, não levava nenhuma intenção, e quando cheguei ao sopé da montanha olhei lá para cima e disse para comigo, vou subir um bocado. Comecei a subir, a subir, a subir… A montanha é uma colina, está a 600 metros do nível do mar, portanto ainda são 300 metros de um terreno resvaladiço, dava três passos em frente e recuava dois… enfim, cheguei lá acima”.

Por que foi uma emoção tão grande chegar ao topo? “Foi ver a ilha toda. Vê-se tudo, desde o vulcão no norte, que se chama La Corona, até à Playa Blanca, La Geria, o Parque Nacional de Tymanfaya, com os vulcões. Que coisa, que coisa! Chegar lá acima e ver aquele deslumbramento, com o mar de um lado e o mar do outro, costa e contracosta.”
E de todas as viagens pelo mundo, havia algum sítio onde pudesse ter ficado?

“Não, não. Como diziam os ingleses, a minha casa é o meu castelo. E a sensação de voltarmos a casa é única, seja esta, seja a casa de Lisboa. É aí que eu quero estar, com as minhas coisas, os meus objectos, os meus quadros, a minha música, as bugigangas que só têm importância e valor para mim.”

Por Ana Sousa Dias

"O LUGAR DOS LIVROS
A Biblioteca José Saramago em Lanzarote contém a maior parte dos volumes que José e Pilar foram juntando ao longo das suas vidas. As mãos mais curiosas podem espreitar dedicatórias bem pessoais em muitas primeiras páginas. Catalogados pela Universidade de Granada, os volumes estão arrumados por géneros, temas e nacionalidades. Uma estante ocupa com orgulho a parede: ali só estão livros escritos por mulheres. Este poiso de Lanzarote é temporário, uma vez que a biblioteca definitiva ficará instalada em Lisboa, na Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago. —

PARA O BEM E PARA O MAL
Caim é o título mais recente de Saramago, que publicou romances, contos, poesia, crónicas, ensaios, conferências, teatro, diários e memórias. Já tinha feito uma incursão nos textos bíblicos, ao publicar, em 1991, o Evangelho Segundo Jesus Cristo, e questiona agora o deus do Antigo Testamento, num texto onde a ironia faz sobressair uma dura reflexão. O castigo divino faz de Caim um errante e Saramago vai conduzi-lo pelos episódios bíblicos como um homem imperfeito e observador, capaz de intervir no momento decisivo. Polémico, como muitos outros livros de Saramago, Caim incendiou a opinião pública da intelligentsia nacional."

Primeiro voo do avião José Saramago – TAP

A TAP Portugal baptizou em 24 Junho 2014 um Airbus A320 (matrícula CS-TNW) com o nome de José Saramago.
O seu primeiro voo teve como destino a cidade de Milão, partindo do aeroporto de Lisboa.
Fonte página da Fundação José Saramago