Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 23 de outubro de 2016

"Os 12 Melhores Livros Portugueses dos Últimos 100 anos" - pela Revista Estante (FNAC - Outubro 2016)

"OS 12 MELHORES LIVROS PORTUGUESES DOS ÚLTIMOS 100 ANOS"

"A Estante convidou um júri de cinco elementos, composto pela jornalista Clara Ferreira Alves, o crítico Pedro Mexia, o professor catedrático Carlos Reis, o editor Manuel Alberto Valente e a jornalista Isabel Lucas, para eleger os 12 melhores livros portugueses dos últimos 100 anos. Este é o resultado.

Por: Catarina Sousa | Ilustração: Gonçalo Viana | Fotografias: Bruno Colaço/4SEE"



AO LONGO DE DEZ EDIÇÕES a revista Estante tem vindo a entrevistar muitos autores portugueses, explorando várias temáticas nas quais a língua portuguesa surge como pano de fundo. Tínhamos desde o início uma vontade que transformámos em desafio e materializámos em iniciativa: eleger os melhores livros portugueses.

Não procurávamos uma lista demasiado extensa. Queríamos que os decisores fossem pessoas dos mais variados quadrantes, mas personalidades respeitadas e conhecedoras do mundo da literatura em Portugal. Cinco pessoas aceitaram o nosso convite: o professor e ensaísta Carlos Reis; a jornalista e escritora Clara Ferreira Alves; a jornalista Isabel Lucas; o editor da Porto Editora, Manuel Alberto Valente; e o crítico literário e assessor cultural do Presidente da República, Pedro Mexia.

O desafio não se adivinhava fácil: escolher os melhores livros portugueses dos últimos 100 anos. Contudo, reunidos à volta de uma mesa, a escolha foi até bastante rápida.

O júri selecionou os melhores livros portugueses dos últimos 100 anos, restringindo a escolha a obras de ficção narrativa publicadas entre 1 de janeiro de 1916 e 1 de janeiro de 2016. A eleição recaiu sobre os 12 livros que se apresentam abaixo, sem qualquer ordem a não ser a alfabética.

Curiosamente, entre os autores dos livros selecionados apenas dois estão vivos: António Lobo Antunes e Agustina Bessa-Luís. Deixamos mais informação sobre cada um destes livros que ajudam não só a justificar a escolha do júri, mas a enquadrar a importância de cada uma das obras na literatura portuguesa dos últimos 100 anos.

A equipa da Estante estabeleceu alguns critérios que considerou pertinentes para a seleção dos melhores livros portugueses.
1. Os livros devem ter sido originalmente publicados a partir do dia 1 de janeiro de 1916.
2. Os autores devem ser de nacionalidade portuguesa.
3. As obras em causa devem ser de ficção.
4. Podem ser incluídas edições de autor."


"O Ano da Morte de Ricardo Reis" - José Saramago
A obra de José Saramago (1922-2010) é tão singular que lhe valeu o Prémio Nobel de Literatura – o único que Portugal recebeu até hoje nesta área.
O Ano da Morte de Ricardo Reis é não só peculiar como faz por questionar tudo o que nos rodeia. Quem somos? O que nos acontece quando morremos? Somos únicos ou, como Fernando Pessoa, somos vários?

O livro conta a história do regresso a Portugal, vindo do Brasil, de Ricardo Reis, o heterónimo de Pessoa, quando confrontado com a morte do seu criador. É um livro denso mas vai envolvendo o leitor do início ao fim, fazendo também uma viagem pela história de Portugal.

AS PRIMEIRAS FRASES
“Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias.”

SOBRE O AUTOR
“Falava e escrevia com o desassombro e com a clareza que a alguns desagradava, mas que para ele eram uma forma inalienável de respiração intelectual.”
Carlos Reis


A compilação das 12 obras escolhidas

"Problema de Homens" publicado no post online do "Outros Cadernos de Saramago" e no livro do blog

Pode ser recuperado através do site da Fundação José Saramago, aqui
em http://www.josesaramago.org/problema-de-homens-texto-publicado-no-blogue-a-27-de-julho-de-2009/ e http://caderno.josesaramago.org/54038.html

"Problema de Homens (publicado originalmente a 27 de julho de 2009)"

"Vejo nas sondagens que a violência contra as mulheres é o assunto número catorze nas preocupações dos espanhóis, apesar de que todos os meses se contem pelos dedos, e desgraçadamente faltam dedos, as mulheres assassinadas por aqueles que crêem ser seus donos.
Vejo também que a sociedade, na publicidade institucional e em distintas iniciativas cívicas, assume, é certo que só pouco a pouco, que esta violência é um problema dos homens e que os homens têm de resolver.
De Sevilha e da Estremadura espanhola chegaram-nos, há tempos, notícias de um bom exemplo: manifestações de homens contra a violência. Até agora eram somente as mulheres quem saía à praça pública a protestar contra os contínuos maus tratos sofridos às mãos dos maridos e companheiros (companheiros, triste ironia esta), e que, a par de em muitíssimos casos tomarem aspectos de fria e deliberada tortura, não recuam perante o assassínio, o estrangulamento, a punhalada, a degolação, o ácido, o fogo. A violência desde sempre exercida sobre a mulher encontrou no cárcere em que se transformou o lugar de coabitação (neguemo-nos a chamar-lhe lar) o espaço por excelência para a humilhação diária, para o espancamento habitual, para a crueldade psicológica como instrumento de domínio.
É o problema das mulheres, diz-se, e isso não é verdade. O problema é dos homens, do egoísmo dos homens, do doentio sentimento possessivo dos homens, da poltronaria dos homens, essa miserável cobardia que os autoriza a usar a força contra um ser fisicamente mais débil e a quem foi reduzida sistematicamente a capacidade de resistência psíquica. Há poucos dias, em Huelva, cumprindo as regras habituais dos mais velhos, vários adolescentes de treze e catorze anos violaram uma rapariga da mesma idade e com uma deficiência psíquica, talvez por pensarem que tinham direito ao crime e à violência. Direito a usar o que consideravam seu. Este novo acto de violência de género, mais os que se produziram neste fim-de-semana, em Madrid uma menina assassinada, em Toledo uma mulher de 33 anos morta diante da sua filha de seis, deveriam ter feito sair os homens à rua.
Talvez 100 mil homens, só homens, nada mais que homens, manifestando-se nas ruas, enquanto as mulheres, nos passeios, lhes lançariam flores, este poderia ser o sinal de que a sociedade necessita para combater, desde o seu próprio interior e sem demora, esta vergonha insuportável. E para que a violência de género, com resultado de morte ou não, passe a ser uma das primeiras dores e preocupações dos cidadãos. É um sonho, é um dever. Pode não ser uma utopia."

In O Caderno, José Saramago

De Violante Saramago Matos "A memória do meu pai, o Nobel" via Público (Márcio Berenguer - 16/10/2016)

A reportagem pode ser recuperada e consultada, aqui

Publicada pelo jornalista Márcio Berenguer - 16/10/2016


"Violante Saramago Matos viajou ao passado até 8 de Outubro de 1998, dia em que se soube da distinção máxima da Academia Sueca para o seu pai, o escritor José Saramago. Sobre Bob Dylan diz: “Penso que foi uma forma da Academia reconhecer que a literatura não é feita apenas de romances"

A certa altura deixamos de falar sobre isso. Naquele ano de 1998 o Nobel não era um tema tabu. Simplesmente não era um tema. Não povoava as nossas conversas. Há muito que não. Antes conversávamos muito sobre ele. Ciclicamente, claro. Já era tempo de a Academia Sueca olhar para a língua portuguesa. Seria este ano o ano? Mas o reconhecimento ia sempre para outro lugar, para outro nome, que não este.

Naquele ano de 1998 já não falávamos sobre isso. É verdade.

Antes, tentávamos descodificar os sinais políticos — há sempre uma componente política nestas coisas —, olhar para quem tinha recebido antes e para quem poderia ser galardoado depois. Demorávamo-nos a discorrer sobre a actualidade, numa tentativa de antecipar o que poderia ou não vir. Percorrer os nobelizáveis e os outros, que não sendo, podiam vir a ser. Mas naquele ano não. Falávamos de outras coisas. De livros. De nós.

Era de manhã. A meio da manhã. É aí que me situo na memória daquele dia. Estava numa reunião na Câmara do Funchal. Era vereadora, na altura. Eleita como independente pelo Partido Socialista. Estava no meio de uma discussão com o Ricardo Silva, do PSD, responsável pelo urbanismo da cidade. Foi o [André] Escórcio que bateu à porta — ou melhor, entrou esbaforido pela sala adentro, chamando o meu nome. “Espera, espera”, disse eu com um gesto de enfado. Insistiu o Escórcio. Insistiu muito. Uma, duas, três vezes: “Violante, Violante, Violante.” A minha resposta sempre a mesma. Sempre a gesticular, cada vez mais exaltada. “Agora não. Agora não, já disse!” Insistiu: “O teu pai. É sobre o teu pai.” Parei de imediato. Já tinha toda a minha atenção. Gelei. Olhei-o de frente. “O meu pai? O que aconteceu ao meu pai?” “Estão a dizer que ganhou o Nobel.” A reunião terminou aí.     

Ele estava em Frankfurt, na Feira do Livro, e eu na Madeira. Em 1998, era como se ele estivesse no outro lado do mundo, numa ilha deserta. Não existiam as ligações rápidas, instantâneas, como agora. Era outra velocidade. Parece outro século. Era mesmo. Outro século, outro tempo. Liguei várias vezes. Perdi a conta de quantas. Ele deve ter feito o mesmo. Não sei. Sei que só a meio da tarde é que conseguimos falar. Foi ele que ligou, de um número que não era o dele. Não sei de quem era. Não perguntei. Importa? O que falámos? O que eu disse? Parabéns. Um beijo. Muitos. Mil beijinhos. Eu sei lá o que disse. Um amor que não se descreve, nem escreve. Um desejo imenso de o abraçar. Foi isso.

Tive de esperar. Um dia, dois. Foi uma semana de loucos. Nunca estamos realmente preparados para estas grandes coisas. Para as grandes emoções que nos assaltam assim, sem pedirem licença para entrar. Não conseguia reagir. Só o vi em Lisboa, quando chegou vindo de Lanzarote. Era eu entre muitos que o esperavam. Um Nobel português, num ano de Expo. É um pouco como agora, com a selecção na Europa e Guterres na ONU. Havia muito entusiasmo. Muita portugalidade. Um mar de personalidades no aeroporto. Senti, naquele momento, que todos ali tinham mais que ver com ele do que eu. Foi estranho sentir-me assim. Eu era a filha, a única filha. Só queria dar-lhe um beijinho, mas tive de esperar. Digo isto sem qualquer animosidade. Mas eu era a filha... não é?

Toda a minha vida cresci com este sentimento. Ainda o guardo. O de ser filha de. Durante anos fui filha de. É coisa boa quando a herança do nome dos pais nos enche o coração, mas é coisa difícil quando o tamanho do nome dos pais nos abafa o ser. Então é preciso saber emergir das águas daqueles dois caudais de talento, saber quem somos para além da grandeza deles, saber em que cruzamento — das duas ruas por onde correm dois nomes maiores da nossa cultura — fica a nossa esquina.

E ali estava eu agora. Naquela esquina do aeroporto. Ao olhar aquele homem, no meio da multidão, onde tantos viam frieza, distanciamento e má disposição, eu encontrava os afectos que transbordavam dos seus livros e das relações humanas, familiares. Um homem extremamente tímido, reservado, que vestia uma couraça para se proteger dessa timidez espantosa. E ele ali, no centro daquela celebração, e eu do outro lado do muro de pessoas. Tão próxima. Tão distante. A observar. Com um orgulho imenso no peito que levaria comigo — ainda o trago — para Estocolmo.

Não era só o prémio, o Nobel. Foram os fundamentos — “com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia” — da Academia Sueca para distinguir José Saramago. O ser maior do que um escritor. Um filósofo, como o meu filho, ainda pequeno, um dia disse. Só esses fundamentos bastavam-me. Mas havia mais. Quanto orgulho consegue segurar uma pessoa?

No banquete, na câmara de Estocolmo, onde o meu pai se sentou ao lado da rainha, encontrei mais razões para vibrar por aquele homem que era meu pai. Há uma espécie de hierarquia naquela cerimónia. Uma hierarquia mal disfarçada. Os laureados são dispostos no salão obedecendo a uma qualquer ordem de importância. E eu estava ali, com ele, a Pilar e a minha filha (cada um dos premiados só tem direito a levar três pessoas) na mesa de honra. O Danilo [o marido] e o meu filho ficaram em cima, na plateia.

A gente abala quando vive um momento daqueles. Abana quando ouve aquele discurso. Aquelas palavras imensas. Ainda hoje as guardo. Os Discursos de Estocolmo e o Ensaio sobre a Cegueira continuam à minha cabeceira, vou regressando a eles amiúde.  

É uma maneira de celebrar José Saramago escritor. O país ainda o celebra. Festeja, mesmo. Deixa-me feliz saber isso — que depois de tantos anos ainda o lemos. Penso que ele também ficaria — ter presenciado, ter vivido a reconciliação com um país onde nasceu e cresceu foi importante para ele. Eu vi isso. Conversámos sobre isso —para lá dos Sousas Laras daquele Portugal pequeno, do Cavaco, com quem ele nunca mais falou. O que aconteceu com o Evangelho segundo Jesus Cristo deixou-o sentido. Triste, até. Quem não ficaria? Mas tudo isso foi ultrapassado.

Lê-lo é a maior homenagem. Continuar a mergulhar nos livros é festejar um autor, um homem, um pai que mais do que intransigente, que o era em questões de princípios, era essencialmente muito exigente. Basta ler com atenção a obra que deixou, que transcende a simples literatura. Se é que podemos falar de literatura simples.

Ele também era tudo menos simples. Recusava as respostas prontas. O sim e o não ficavam de fora das nossas questões. Queria que pensássemos. Era assim que ele era como pai, como escritor e como cidadão interventivo. Não existiam vários Saramagos. O que ele foi, o que ele era está ali, na obra que deixou. Estar a ler o meu pai é como estar a ouvi-lo falar, porque ele escrevia como falava. Não era um homem de sim e não, era um homem que respondia, procurando sempre uma explicação.

É assim que recordo o meu pai. É assim que guardo aquele ano de 1998, em que já não falávamos do Nobel e ele apareceu.

Depoimento recolhido pelo jornalista Márcio Berenguer"

"A Maior Flor do Mundo" conto infantil de José Saramago catalogado pela "The White Ravens International Youth Library"

"The White Ravens - International Youth Library
A Selection of International Children's and Youth Literature"



Pode ser consultado aqui 



"A maior flor do mundo"
(The biggest flower in the world)

Saramago, José (text)
Letria, André (illus.)
Porto: Porto Editora, 2015. – [48] p.
ISBN 978-972-0-72821-0
the first edition containing these illustrations (Ed. Caminho, 2013) is no longer available
Love of nature  | Children's literature  | Storytelling  | Simplicity

White Ravens issue: 2016
Reading age: 6+

"Nobel Prize-winner José Saramago (1922-2010) plays a double game in this story: he first laments his inability to write for children, because he can’t write in a simple way. If only he could do so, he would write the most beautiful of all children’s stories – he then proceeds to explain what would happen in that story, were he but able to write it… Finally, Saramago does go on to tell a “real” story, delicate and touching, about a boy who saves a flower from dying of thirst high on a mountain, which then becomes the biggest flower in the world. It is a great story for adults and children alike about the art of storytelling and writing, the art and beauty of simplicity and about a child who surpasses himself. The text, first published in 2001 with illustrations by João Caetano, here is newly interpreted by illustrator André Letria. Part straightforward, part mysterious and poetically powerful, his illustrations truly complement the great author’s literary masterstroke."

"Salman Rushdie ao encontro de Camões, Pessoa e Saramago" - Via Notícias Magazine (16/10/2016)

"Um dia em Lisboa com o escritor britânico." 

A presente reportagem pode ser recuperada e consultada, aqui
em http://www.noticiasmagazine.pt/2016/salman-rushdie-ao-encontro-de-camoes-pessoa-e-saramago/

"Salman Rushdie no Festival FOLIO. 
Fotografia Henriques da Cunha/Global Imagens"

"O escritor esteve em Portugal para participar no festival de Óbidos. Em Lisboa, sem se armar em turista, andou a percorrer as capelinhas literárias: Camões, Pessoa e Saramago.
Pronunciar o nome do escritor Salman Rushdie é recordar a fatwa que o amaldi­çoou de morte por ter publicado o roman­ce Versículos Satânicos. Esteve escondido e rodeado de guarda-costas durante mais de uma década e ainda hoje tem um par de ho­mens de corpo treinado sempre por perto. Não que o queira, mas os serviços secretos portugueses – SIS – acharam melhor preve­nir em vez de remediar. A vigilância não evi­tou que Rushdie peregrinasse durante um dia por Lisboa, após ter estado no Festival Literário de Óbidos, o Folio.
Não o fez como simples turista. Portugal e a sua história está muitas vezes presente nos seus livros, como é o caso do mais recente – Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites –, um título que, somadas as noites, dá as mil e uma de Xerazade, e em que o autor conta a história de Gerónimo Manezes, a personagem de que mais gosta neste romance e que descenderá de algum Menezes português: «Com o passar do tempo, as pessoas começaram a pronunciar mal os nomes. Ele é de Goa, membro dessa minoria cristã que tinha sempre nomes portugueses devido à presença colonial.» Além de Menezes, há muitos outros nomes lusos na sua obra, tal como Camões, personagem de O Último Suspiro do Mouro. Uma inspiração vinda do poeta português, que Salman Rushdie visitou na praça com o seu nome em Lisboa e com a estátua de quem quis tirar uma fotografia.
No próximo romance, que está três quartos escrito, não existem nomes portugueses: «Peço desculpa», diz, sorrindo. Em Salman Rushdie, o sorriso e até a gargalhada estão sempre presentes.
Camões não foi o único escritor português com quem quis tirar uma fotografia e, assim como milhões de estrangeiros que sobem até ao Chiado, também se sentou na cadeira ao lado de Fernando Pessoa, ali tão perto de A Brasileira, e lá se fez fotografar."

«Conheci Pessoa através da leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago. Eu era um grande fã de Saramago e tive a sorte de o conhecer razoavelmente.»

"Não foi por acaso, confirma-se, que nesta peregrinação lisboeta também fez questão de visitar a Casa dos Bicos, onde se deparou com uma boa recordação: «Encontrei lá uma fotografia nossa em Santiago de Compostela, onde nos conhecemos.»
Quanto a Pessoa, Rushdie revela que ficou muito surpreendido com os heterónimos: «É uma obra apaixonante e espantosa como nunca vi entre escritores.»
À provocação de que mais parece um ator do que um escritor tal é o à-vontade no momento em que sobe ao palco, como aconteceu em Óbidos, Rushdie volta a sorrir e garante que ficou surpreendido com o entusiasmo da audiência portuguesa: «Existem muitos escritores que não gostam da coisa pública, mas eu aprecio estar com os meus leitores porque escrever ou ler são situações de recolhimento. Tenho a sorte de os meus editores em Portugal publicarem tudo o que escrevo e manterem os livros disponíveis. Por isso, tenho uma boa presença no país há muito tempo.»

A recordação das suas visitas anteriores a Portugal, a Lisboa e ao Porto várias vezes, leva-o ao Palácio de Queluz, nos anos 1980: «Estive lá, num festival literário fabuloso organizado por Ann Getty, que foi o mais luxuoso evento literário de toda a história da literatura. Fomos instalados no Hotel Ritz, havia limusinas para nos levar até ao palácio, onde se reuniram muitos dos grandes escritores mundiais. Foi um encontro deslumbrante, que ficou marcado por ser a primeira vez que os escritores russos de verdade foram autorizados pelas autoridades a deixar a Rússia em vez de enviarem os escritores do regime. Tatiana Tolstói nunca tinha saído do país durante toda a sua vida, e convidaram os russos emigrados, como o Nobel, Joseph Brodsky. E também lá encontrei Antonio Tabucchi, Ian McEwan, Martin Amis… Estavam todos.»
A presença de Portugal nos seus livros não acontece apenas devido a essas boas memórias, como esclarece: «Na Índia, houve uma presença colonial portuguesa muito forte em Goa e o catolicismo romano espalhou-se no país devido a essa presença. Ainda hoje muitas pessoas dessa parte da Índia têm nomes portugueses, que permanecem em sucessivas gerações de cidadãos indianos cristãos, muitos deles falavam português como segunda ou terceira língua.» Como história puxa história, Rushdie acrescenta: «Há uma parte de Bombaim, Bandra, onde O Último Suspiro do Mouro se passa, que se mantém uma área onde vivem muitos cristãos e onde é quase impossível a alguém não cristão comprar um apartamento. Não vendem porque querem preservar a área como cristã, local onde vivem muitas pessoas que se chamam Pinto ou Fernando. Aliás, tenho amigos escritores indianos que têm esse legado: o Jerry Pinto ou Naresh Fernandes. São nomes muito comuns por causa do colonialismo.»
Quanto a ter posto duas famílias portuguesas nesse livro, Rushdie explica que o primeiro contacto entre a Índia e o Ocidente foi com a chegada de Vasco da Gama: «Esse momento é o início de tudo, e Gama não ia para conquistar mas para fazer comércio, porque aquela costa era famosa pelas especiarias picantes, a pimenta e a canela, ingredientes que deixavam a comida europeia com mais sabor. Daí que haja muita gente na Índia que também tenha como apelido Da Gama, foi um nome que ficou. Em Cochim até há uma igreja onde se pode ver o túmulo do navegador, mesmo que já lá não esteja porque uma dúzia de anos depois foi trasladado para o Mosteiro dos Jerónimos.»
Adianta como a sua ligação literária com Portugal começa: «Como queria escrever um romance sobre minorias na Índia, escolhi essa pequena minoria cristã e acrescentei uma minoria ainda menor de judeus, criando então casamentos entre eles, de que resultaram minorias ainda mais pequenas, para mostrar que houve um tempo na Índia em que as pessoas não queriam que a experiência espiritual fosse uma única. Foi por isso que fiquei muito feliz ao tirar uma fotografia ao lado da estátua de Camões, porque usei o seu nome numa das personagens.»
Com o rio Tejo ao fundo, pergunta-se porque é que decidiu colocá-lo, e ao Douro também, nesse seu livro. Ouve surpreendido a questão e responde de imediato: «Estudei História na universidade e sei a sua importância [do rio Tejo] nas campanhas militares; quanto ao Douro, conheço a presença das companhias de vinho do Porto que, historicamente, são propriedades inglesas. Além de ter estado junto deles várias vezes, li sobre esses rios. Quero sempre conhecer o material com que trabalho, por isso não é difícil recuperar as recordações, mesmo que com o passar do tempo confie cada vez menos na minha memória. Agora confirmo as lembranças cada vez mais porque a memória brinca connosco e tem os seus truques; pensamos que uma determinada igreja está numa rua mas afinal encontra-se duas ruas acima. Esses são erros estúpidos que não quero fazer, portanto verifico tudo o que coloco nas páginas.»
Salman Rushdie muda o rumo da conversa e alerta para o facto de estar perto de cumprir 70 anos de vida e considerar que é tempo de fazer outras coisas.
«Já disse a mim próprio que após acabar o próximo romance irei fazer alguma coisa diferente em vez de começar outro livro.» Quando se lhe pergunta o quê, o escritor volta a sorrir: «Talvez seja a oportunidade de finalmente tentar aos 70 anos fazer tudo o que ainda não consegui.»
E confessa: «Eu queria ser ator quando era jovem, esse era o meu sonho, desfeito porque apenas consegui pequenos papéis. Hoje, lamento não ter lutado um pouco mais, pois agora se me escolherem para um elenco sou demasiado conhecido e será difícil para o público ver-me como uma personagem em vez de Salman Rushdie vestido como personagem. Terei de tornar-me noutra coisa e mudar o meu aspeto completamente, tal como pôr um nariz falso e mais cabelo. É o que faz ter ficado conhecido por uma profissão.»
O desejo de mudar de vida aos 70 anos continua a dominar a conversa: «Quando se é jovem temos a fantasia de que podemos ser muitas coisas e eu sempre pensei que estaria mais envolvido em teatro. No entanto, gosto tanto desta arte e nunca escrevi uma peça, apenas colaborei na adaptação de dois livros para teatro.» Seria capaz de escrever uma peça? «Sinto-me surpreendido por ter chegado a esta idade e nunca o ter feito», diz, «até porque a minha grande paixão é o cinema e não a literatura, e sou um grande “aficionado”. Também nessa área só uma vez na minha vida é que escrevi um guião sobre um livro meu. Surpreende-me não ter feito mais nessa área. Vivemos num tempo em que as séries de televisão são muito interessantes e há muita gente que me pede para desenvolver alguma coisa nessa área. Eu estou interessado, mesmo que não saiba o que fazer. Será o meu próximo desafio, espero.»
Ao falar do seu interesse no cinema, vem à memória uma página da sua autobiografia sobre os tempos escondidos após a ameaça do islão à sua vida, o livro Joseph Anto, em que conta uma zanga com o produtor português Paulo Branco: «Oh meu Deus, lembra-se disso… Esse foi um momento muito estranho, mas não foi bem ele que estava em causa, era mais a dificuldade em chegar a um acordo com o realizador Raoul Ruiz, que queria filmar O Chão Que Ela Pisa, mas a nossa relação nunca funcionou, nem senti que o meu trabalho estivesse em mãos seguras e que entendiam a natureza do meu romance. Portanto, o filme não aconteceu e ainda bem. Paulo Branco é um dos grandes produtores independentes e fez centenas de filmes, o problema foi com o realizador.»

Questiona-se Rushdie sobre a presença frequente de profetas no seus livros, mas essa é uma situação de que não quer falar muito, porque considera ser produto de uma sátira e nunca muito bem retratados nos seus livros: «A ideia de se adivinhar o futuro não me agrada e na minha vida desconheço tudo o que me irá acontecer depois de amanhã. Perguntam-me quem vai ganhar as eleições americanas e eu não sei o que dizer. Posso referir o que penso, o que considero certo ou errado, o que gostaria que acontecesse, nada mais. E esta é uma grande questão, até porque espero que estejam errados os que acham que Donald Trump vai ganhar. Há cinco semanas também o pensava, mas têm sido tempos maus para a sua campanha e espero que haja mais semanas más para ele.»
Desfaz o ar sério dos últimos instantes quando se lhe diz que o leitor ri-se enquanto lê os seus livros. Também se ri enquanto os escreve? «Às vezes. Neste livro queria ser descontraído e divertido e só após ter encontrado a solução para os problemas do registo e aquilo que queria transmitir, o que às vezes demora bastante tempo, é que me diverti a fazê-lo.»
Neste último romance há uma situação estranha, a presença de referências pouco habituais para um homem da sua idade, como as dos fenómenos da juventude: «Eu não sou um escritor igual aos outros, é só o que posso dizer. Escrevo sobre o mundo que observo e é muito importante não ficarmos parados no tempo e ter apenas um grupo de amigos com a mesma idade. Tal como faço no que leio, porque o normal quando se envelhece é parar de ler as novidades dos escritores mais novos do que nós. O que é um erro, pois repara-se, como acontece com o Woody Allen, que não perceciona como os mais novos estão a viver de forma diferente. Num dos seus filmes, põe a Emma Stone a dizer uma deixa que jamais uma pessoa da sua idade diria. Ou seja, como não quero fazer esse tipo de erros estúpidos por se desconhecer o que se retrata, tenho amigos num grande espetro de idades e sinto-me capaz de ter o pulso do que está a acontecer. Uma das coisas que inspiram este livro é essa nova geração de escritores americanos muito mais novos do que eu, que são imigrantes vindos de todo o lado – Junot Diaz, por exemplo – que trazem o mundo atual para a literatura americana.»
Salman Rushdie revê neles a verdadeira literatura americana, por isso refere que «a América tem sido muitas vezes enriquecida pelos imigrantes», que agora não são apenas italianos ou judeus, mas que vêm de todo o lado e a alimentam. Aproveita para avisar: «Também eu sou agora um cidadão americano.» Continua: «Ler os escritores mais novos dá-me ideias, porque a inspiração nem sempre vai dos mais velhos para os mais novos, pode ser ao contrário.»
É altura de fazer a avaliação do estado do grande romance americano, sobre o qual Rushdie tem uma perspetiva muito clara: «Ninguém comprou o Cidade em Chamas, do Garth Risk Hallberg. Ele coloca o romance num período que conheço muito bem, uma Nova Iorque que desconhece por ser demasiado jovem. Portanto, baseia-se mais em investigação do que em experiências vividas. Nesse tempo, era uma cidade muito diferente, pobre e cheia de vendedores de droga, prostitutas, e a Times Square estava cheia de cinemas porno, mas era uma cidade barata, para onde ia toda a gente que criava: pintores, realizadores, atores, escritores, dançarinos, todos. E esse espírito não está no livro.» Prefere falar de Jonathan Franzen: «Gosto dele, tal como de todos os escritores que se chamam Jonathan: Franzen, Littel, Safron Foer. Se se quer ser um escritor americano deve chamar-se Jonathan…» Mas é anti-Karl Ove Knausgard… «Não sou anti, diria que não é o meu género de escrita. Acho bom, mas tanto ele como a Elena Ferrante fazem um tipo de autoficção que, sendo bem feita, não é parecido com nada que eu queira escrever.»
A terminar a conversa, não se deixa cair Nova Iorque e lembra-se a coincidência de o seu romance Fúria ter sido lançado exatamente no dia 11 de setembro de 2001: «Um mau dia para lançar um livro, principalmente quando tinha sido escrito com o objetivo de ser uma sátira contemporânea sobre a cidade e se tornou logo, por causa dos atentados que a alteraram para sempre, um romance histórico a partir desse dia. Foi muito estranho ter escolhido esse dia para lançar um romance!»"

UM DIA COM SALMAN RUSHDIE NA CAPITAL
Por José Manuel Diogo, diretor de comunicação do Folio

"Ele queria ver Lisboa. E nós fomos. Saímos de Óbidos manhã cedinho e viemos, A8 abaixo, a descobrir Quixotes nos moinhos elétricos que bordejam a autoestrada do Oeste até que, dobrada a Calçada de Carriche, nos inundou a luz do Tejo.
Descemos para o rio a contar os reflexos da luz bruta e límpida, com que o Tejo enche Lisboa. Andámos desde o Miradouro de São Pedro de Alcântara até à Casa dos Bicos. Íamos visitar Pilar del Río, que queria muito que Salman Rushdie conhecesse a Fundação Saramago. Estacionámos por baixo do Camões, abandonámos o carro e perdemo-nos nas ruas. Não é todos os dias que se pode passear, de Camões a Saramago, contando as histórias de Lisboa a um dos maiores escritores da atualidade."

"O escritor com Pilar del Río, no Largo Camões, em Lisboa. 
Fotografia José Manuel Diogo"

"Salman Rushdie gostou de ser fotografado ao pé dos imortais escritores portugueses. Sentou-se na esplanada da Brasileira do Chiado e posou sentado, junto ao Pessoa, de Lagoa Henriques. Descemos a Garrett, curvámos à esquerda na Rua do Carmo e por baixo do Elevador de Santa Justa entrámos na Lisboa de Pombal. Luz e mais luz, numa manhã ensolarada. Pausa para café no Martinho da Arcada e mais uma memória inesquecível. Rushdie de pés cruzados, na forma de Almada, na mesa que o imortal café da Praça do Comércio tem reservada para Fernando Pessoa até à eternidade. Houve quem se perguntasse se pelo Cais das Colunas tinha chegado outro heterónimo. Pela Rua da Alfândega chegámos à Casa dos Bicos. Pilar levou-nos por uma viagem onde Rushdie encontrava de novo Saramago. Em frente à medalha Nobel, que o escritor português ganhou em 1998, trocaram votos de futuros. A vontade de um no passado de outro. Saímos apressados pela porta das traseiras. Táxi! A plataforma da Uber estava em baixo e regressámos ao Camões dentro de um carro negro e verde em que o motorista reconheceu o escritor.
– Parece o Salman Rushdie? – disse o taxista. – E a senhora é a viúva do Zé Saramago, retorqui. – Pois, pois – disse o homem troçando –, e eu sou o Fernando Pessoa!
– E se calhar era. Há coisas que nunca se sabem!"

Leia mais: Salman Rushdie ao encontro de Camões, Pessoa e Saramago http://www.noticiasmagazine.pt/2016/salman-rushdie-ao-encontro-de-camoes-pessoa-e-saramago/#ixzz4NtYdQOKO



Epígrafe da edição #53 Revista Blimunda - Outubro de 2016