Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Critica "O livro perdido de José Saramago chegou ao teatro 3 dias atrás" Por Ana Rita Caldeira - Via Ardinas

Texto de Ana Rita Caldeira, que pode ser consultado aqui, 
em http://www.ardinas.pt/index.php/2015/12/21/o-livro-perdido-de-jose-saramago-chega-ao-teatro/

"O livro perdido de José Saramago, publicado seis décadas depois de ter sido escrito, é agora adaptado pelo teatro A Barraca, de uma forma, no mínimo, brilhante.

Com destaque para o cenário, que se funde à personalidade de cada personagem, e para a interpretação rigorosa dos textos de Saramago, “Claraboia” é uma peça obrigatória, não só para quem leu o livro que a inspira, mas também para quem quer conhecer a origem da genialidade de Saramago. A adaptação está em cena pelo menos até Janeiro e não merece tantas cadeiras vazias.

 (Fotografia de Luis Rocha)

Ao longo das três horas da peça, que passam a voar, Pílar del Rio assiste compenetrada, sozinha, isolada numa das filas da plateia. O seu riso ouve-se mais do que o dos outros quando chegam a palco certas passagens do livro, certamente gravadas na memória de Pílar, que traduziu “Claraboia” para espanhol. Pílar sorri emocionada em vários momentos da peça, momentos que a transportam para um lugar no tempo em que ainda não conhecia José Saramago. O livro, que agora é adaptado ao teatro, foi escrito em 1953, quando Saramago tinha 31 anos. Ainda com a pontuação e parágrafos convencionais, “Claraboia” foi enviado para uma editora que nunca respondeu. Saramago não escreveu durante 20 anos, depois disso. 40 anos depois, quando já não era um jovem escritor desconhecido, acabado de publicar “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, o escritor foi convidado a publicar “Claraboia”, cujo manuscrito teria sido encontrado na editora. O futuro nobel da literatura não leu o livro e disse que nunca seria publicado enquanto vivesse. 60 anos depois de ter sido escrito e um ano depois da morte de Saramago, “Claraboia” foi editado e publicado, em 2011, com o consentimento de Pílar.


Agora, a ex-mulher do escritor reconhece neste romance pequenos fragmentos daquilo que viria a ser a identidade literária de Saramago. Há a valorização do ser humano, sem que entre nos textos a palavra política, há discussões em que participam poemas de Fernando Pessoa, há sinfonias de Beethoven, há a recusa da resignação (presente em “Levantado do Chão”) ou os debates sobre lucidez (mais tarde, presentes em “Ensaio sobre a Lucidez”). “Claraboia” é um marco fundamental na escrita de Saramago. Ainda que sem o estilo formal que lhe é associado, ainda que tenha diálogos paragrafados de forma convencional, marca a origem das preocupações de Saramago enquanto escritor, as preocupações que, anos depois, de uma forma mais madura, se transpuseram para outros romances, mais aclamados.

Quem lê o livro, e depois toma conhecimento da sua adaptação para o teatro, pensa imediatamente na dificuldade que terão tido os cenógrafos. A história do romance “Claraboia” passa-se num prédio da Lisboa dos anos 50, com 3 andares e seis apartamentos. O espaço é absolutamente essencial na leitura do livro, assim como as divisões dos apartamentos, descritas com a maior precisão. Surpreendentemente, José Costa Reis, responsável pela cenografia, conseguiu meter um prédio dentro da sala 1 d’A Barraca. O palco ganha três andares, divididos por dois lances de escada, e observados pela grande claraboia, que é azul ou amarela, para nos dizer quando é de noite e de dia. Também o som do amolador pela manhã e uma música clássica de embalar pela noite nos dizem em que altura do dia as personagens se encontram. O trabalho de sonoplastia, que se encarrega dos sons de portas a fechar ou das campainhas, é do mesmo modo irrepreensível. Mas é o desempenho dos atores, que debitam as palavras de Saramago, que dá brilho à adaptação. João Maria Pinto, que interpreta o papel do sapateiro Silvestre, ou Maria do Céu Guerra, que é Amélia e também a mãe de Lídia, deixariam José Saramago com um brilho nos olhos.

Ao todo, são 18 personagens que vivem num prédio tipicamente lisboeta dos anos 50, em pleno Estado Novo. No rés-do-chão vive o sapateiro Silvestre e a mulher Mariana, que alugam um dos quartos a um viajante misterioso, e, ainda, um casal problemático, que já é conhecido pelos vizinhos pelas discussões acesas. No primeiro direito mora Lídia, uma mulher sensual e promíscua, que recebe visitas de um gordo empresário todas as noites. Uma mulher atormentada pela morte da filha e pela indiferença do marido vive no primeiro esquerdo, passando grande parte dos dias a observar o retrato da menina. O último andar divide-se no apartamento de uma família de quatro mulheres costureiras e um casal com uma filha libertina.

Ao contrário do que se esperava, há ação a decorrer em todos os andares, em quase todos os momentos da peça. A intensidade das luzes guia-nos para o diálogo que merece destaque, para o apartamento em que se desenrola uma ação importante. Enquanto isso, nos outros andares, as famílias jantam, deitam-se, conversam, o sapateiro trabalha. O trabalho de encenação e dramaturgia, a cargo da atriz Maria do Céu Guerra, conseguiu dar movimento às personagens de “Claraboia”, que têm tanto de fantásticas como de corriqueiras. São pessoas atormentadas pela censura dos pensamentos, e não só das ações, pelas dificuldades financeiras, pelas consequências que os seus atos podem ter no julgamento dos outros, neste caso, dos vizinhos. Nenhuma delas ganha protagonismo na peça, ainda que os diálogos entre o sapateiro Silvestre e o seu hóspede, Abel, sejam o fio condutor do romance. Naqueles apartamentos, decorados com tempo, enfeitados com pratos de porcelana trabalhada, molduras com fotografias esbatidas e cómodas sem espaço livre, os dias daquelas pessoas esgotam-se na relação com os vizinhos.

Pílar del Rio vê nesta adaptação de “Claraboia” um milagre, o milagre de conseguir reproduzir a simultaneidade das cenas, a passagem das conversas entre as irmãs Isaura e Adriana para as discussões entre Carmen e Emílio, por exemplo. Através da variação da intensidade das luzes, que não saem de projetores sóbrios, mas sim de candeeiros protegidos por abajures de todos os feitios. Estes pormenores, como o som do fechar e abrir de portas, fundem todas as histórias que se passam dentro do prédio. “La Barraca le ha puesto cuerpo” foi o elogio final de Pílar a toda a equipa que pôs em cena “Claraboia”. Trata-se de uma adaptação genial, que não se esgota no desempenho dos atores, e que merece ficar n’ A Barraca depois de Janeiro. É um trabalho que honra o nascimento da genialidade de José Saramago, e também o nascimento das suas preocupações e prioridades enquanto escritor e enquanto homem. A peça está em cena de quinta a sábado às 21h30 e às 16h30 de sábado e domingo."


Um conto de Natal de José Saramago - "História de um muro branco e de uma neve preta"

(Árvore de natal - Fundação José Saramago 2014)


Um conto de Natal de José Saramago - "História de um muro branco e de uma neve preta"

"Não haveria nada mais fácil no mundo das histórias que escrever um conto de Natal com Menino Jesus ou sem ele, se não fosse dar-se o caso de que uma criança que nasce está sempre nascendo. O nosso grande erro, esquecidos como em geral andamos das infâncias que vivemos, foi pensar que as crianças nascem uma única vez e que depois de nascidas se limitam a ficar à espera de que o tempo passe e as transforme em adultos, os quais, como deveríamos saber, constituem uma espécie diferente de seres humanos. A criança começa por nascer uma vez, que é a de vir ao mundo, e depois continua a nascer para compreendê-lo: não tem outro remédio nem há outra maneira. Como se verá pelas duas breves histórias que se seguem, ambas autênticas, ambas verdadeiras. 

A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol. Não tem chovido, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira cheia de Inverno, os charcos são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala quando respiramos, como se nele se suspendesse uma ténue rede de cristais de gelo. Há uma casa e luz lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos troncos de lenha de donde se desprendem, lentas, as brasas. Quando à fogueira se lhes juntam gravetos, ramos secos, um punhado de palha, a labareda cresce, divide-se em trémulas línguas, sobe pela chaminé encarvoada de fuligem, ilumina os rostos da família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o frigir do azeite onde bóiam as formas redondas das filhós, entre o fumo espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas do telhado e nas roupas húmidas. São talvez nove horas, a modesta mesa está posta, o momento é de paz e de conciliação, e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos, como um formigueiro.

Não tarda que saiam todos para o quintal. Vai ser lançado ao ar o foguete de três respostas, esse que, cumprindo a tradição, anunciará aos vizinhos que naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no alguidar profundo onde aguardará o retoque final da canela e da calda de açúcar. Entre portas, a Criança vê a Família a sorrir fazendo e desfazendo grupos em torno do avô, que sopra um tição trazido da lareira e o aproxima do cartucho de pólvora amarrado ao caniço. Tinha pedido que o deixassem ajudar, mas responderam-lhe como das outras vezes: “Ainda és muito pequeno, para o ano que vem”. A Família tem razão: é preciso ter cuidado com as crianças.

A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de fagulhas vivíssimas, silva como uma serpente, e logo é um dragão rugindo que sobe para o ar gelado, corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto, quase tocando as primeiras estrelas, estala, estraleja, cobrindo os ecos de outro foguete distante. O caniço desce com uma luz mortiça que desmaia, e vai cair longe, nos olivais que rodeiam a casa, sobre as ervas cobertas de geada. Com este tempo não há perigo de que pegue fogo às árvores. De súbito, a Família diz que está frio e volta para casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a Criança a quem não deixaram ajudar a lançar o foguete. Tinham deixado a porta aberta, o interior da cozinha arrefecera. A Avó acode a espalhar na fogueira uma mão-cheia de aparas, desgalha um ramo seco de oliveira, parte-o com as mãos calejadas, mas é com suavidade que depois chega os troços à chama, como se estivesse a alimentá-la. O lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha, e depois, indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça o seu eterno ofício de fabricante de cinzas.

A Família gira em redor da mesa, arruma-se nas poucas cadeiras que há, trazidas algumas de outras casas, uns quantos escabelos pouco firmes, um caixote velho posto em pé. Os rostos estão sorridentes e corados, e têm nomes e apelidos, mas, para a Criança, são, antes de tudo, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos, um enorme e complicado corpo de animal que lhe lembra a história da Bicha-de-Sete-Cabeças ou o Dragão-Que-Não-Dorme. Sobre a mesa trava-se uma gesticulação ruidosa de facas e garfos, de mãos, de dentes, uma contínua mastigação que deforma os rostos e engordura as bocas. Contam-se casos, anedotas, todos riem. O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano talvez a deixem lançar o foguete sozinha. Também tem uma história para contar, só está à espera duma pausa, dum momento mágico em que todos se calem, acaso emudecidos por um anjo que passou deixando apenas a imagem de um dedo imperioso sobre os lábios cerrados. O momento está a chegar por fim, uma a uma calam-se as bocas da Família, é agora ou nunca, a Criança inspira fundo, rompe o silêncio, começa a falar. A Família olha surpreendida, dá alguma atenção, mas não muita nem por muito tempo, não dura, não pode durar, as vozes regressam do silêncio, e é o Pai que lhe corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase que vai fazer chorar a Criança. Porque o Menino, a Criança é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, com uma varanda dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança.

Faz muito frio. Visto daqui, o céu parece estar feito de veludo negro. E há as estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Olhadas através das lágrimas, as estrelas são diferentes. Mundo estranho, estranho mundo, este. Sob os passos da criança, o chão duro e gelado range, E, em frente, as árvores negras, misteriosas, onde à noite os grandes medos se vão esconder, tomam o ar confidencial de quem conhece todos os segredos futuros, a hora e o lugar onde acontecerá o terceiro nascimento e o quarto, e o quinto, todos os aqueles que ainda esperam a esta Criança, até mesmo quando de havê-lo sido já não lhe restar memória.

As Crianças estão sempre a nascer. Às vezes nascem de explosivas alegrias, de achados incríveis, de deslumbramentos únicos, mas o mais frequente, uma vez após outra, é nascerem de cada tristeza sofrida em silêncio, de cada desgosto padecido, de cada frustração imerecida. Há que ter muito cuidado com as Crianças, nunca me cansarei de o dizer. Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou os seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: “Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira”. Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando “bom”, “mau”, “suficiente”, como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
“Porquê?”, perguntou
a a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: “À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”.

Muitos anos depois destas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: “E eles ainda estão tristes?”. Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso."

Observação
"Este conto (se o é) tem a sua origem em duas crónicas, “Um Natal Há Cem Anos” e “A Neve Preta”, publicadas no jornal A Capital no final dos anos 60 e que hoje podem ser lidas mais comodamente no volume Deste Mundo e do Outro. A junção delas (que de certa maneira é também fusão) aconteceu em 1995 e teve como destino uma revista espanhola entretanto desaparecida. Relidas hoje, novamente refeitas, estas velhas crónicas perguntam se o muro branco ainda lá está e se ainda há quem tenha de continuar a pintar a neve com tinta preta. Por mim, acho que sim. Quem dera que sejam muitos os que tenham razões para pensar que não.

(Coord. Vasco Graça Moura, Gloria in Excelsis, Histórias Portuguesas de Natal, col. Mil Folhas, Público)