7 de Outubro (de 1996)
Por ocasião do 5.° Congresso do sindicato Comisiones Obreras de Canárias, entrevistou-me a revista Tierra Canaria. Como me pareceu que a conversa não ficaria a destoar nestes Cadernos (bem pelo contrário), aqui a deixo:
Como se materializa o compromisso do artista, do escritor ou do intelectual com o seu tempo e a sociedade em que está inserido?
Gostaria de dizer que as minhas origens camponesas determinaram as minhas ideias políticas, mas isso, já o sabemos, não é uma condição necessária nem suficiente. Seja como for, desde muito novo compreendi que um mundo assente na desigualdade de oportunidades e na exploração de um ser humano por outro, jamais será um mundo justo. Compreendi muito cedo que é um erro pedir «mais justiça social»: o que há que exigir é «justiça social» simplesmente, porque onde exista um «mais» sempre haverá a possibilidade de um «menos», isto é, a possibilidade de reduções sociais selectivas ou generalizadas, como está a acontecer agora mesmo. No meu oficio de escritor, penso não me ter afastado nunca da minha consciência de cidadão. Defendo que aonde vai um, deve ir o outro. Não recordo ter escrito uma só palavra que estivesse em contradição com as minhas convicções políticas, mas isso não significa que alguma vez tenha posto a literatura ao serviço da minha ideologia. O que significa, isso sim, é que no momento em que escrevo estou expressando a totalidade da pessoa que sou.
Explique-nos, do ponto de vista social, a alegoria da cegueira de que trata o seu último livro.
No meu romance Ensaio sobre a Cegueira tentei, recorrendo à alegoria, dizer ao leitor que a vida que vivemos não se rege pela racionalidade, que estamos usando a razão contra a razão, contra a própria vida. Tentei dizer que a razão não deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade não deve ser a excepção, mas a regra. Tentei dizer que a nossa razão está a comportar-se como uma razão cega que não sabe aonde vai nem quer sabê-lo. Tentei dizer que ainda nos falta muito caminho para chegar a ser autenticamente humanos e que não creio que seja boa a direcção em que vamos.
Estamos vivendo a construção de uma Europa onde a classe trabalhadora vê como aumenta o desemprego, como se reduzem os investimentos sociais, como se deteriora o serviço público de saúde... Que pensa a este respeito?
Isso a que chamamos «construção duma Europa uni-da» não passa duma falácia de mau gosto. A relação de poder entre os diversos Estados europeus continua a ser a que foi sempre: países que mandam, países que obedecem. Que aqueles, por táctica, simulem diluir a sua autoridade e o seu domínio numa aparência de consenso geral; que estes, pelo pouco que lhes restou de soberania nacional, finjam discutir de igual para igual - é algo que só pode enganar os ingénuos. O que sucede é que ninguém se atreve a dizer que a rainha Europa vai nua. Nem sequer o facto de levar atrás de si quase vinte milhões de desempregados foi suficiente para desencadear um protesto digno desse nome. No meio de tudo isto, o movimento sindical europeu dá mostras de não ter outra estratégia que não seja recolher agradecido (a isso chamam negociar...) as esmolas de um capitalismo triunfante.
Que opina das políticas de liberalização desenfreada, de diminuição da capacidade do Estado, da privatização das empresas públicas?
Desgraçadamente estamos a passar das promessas do Estado-providência à realidade que é o Estado-vampiro. Ao mesmo tempo que os impostos directos e indirectos sobem, o Estado foge às suas obrigações e deixa os cidadãos nas mãos de empresas privadas que se regem exclusivamente por uma lógica de lucro. Auguro que mais cedo ou mais tarde, o cidadão terá de fazer a si mesmo a pergunta: «A quem está servindo um Estado que não nos serve?» Então alguma coisa poderá começar a mudar.
Estamos vivendo momentos em que, rapidamente, se deterioram valores como o princípio de solidariedade, se afastam as possibilidades e esperanças dos que vi-vem de um salário quanto à distribuição das riquezas... Qual é a sua opinião?
As pessoas vivem hoje sob a ameaça permanente do desemprego. Numa situação como esta não é fácil pensar em algo mais que sobreviver. Talvez isso ex-plique a diminuição da capacidade mobilizadora dos sindicatos. Por outro lado, as indústrias de divertimento de massas, em particular a televisão e o futebol, vão anulando de forma insidiosa o que ainda restava de espírito cívico e de vontade de participação. Há milhões de espanhóis para quem o Barça e o Real Madrid são importantes todos os dias da semana, há milhões de espanhóis para quem Espanha não é importante um único dia do ano...
Por onde considera que deve ir a esquerda social depois da cultura do pragmatismo que nos leva a uma suposta queda dos valores das utopias?
Deixemos de falar de utopias, se continuamos a chamar utopia ao direito de viver com dignidade, sem mais temores que os que resultam da precariedade da própria existência. Não se pode continuar a falar de esquerda quando os partidos socialistas europeus se converteram em partidos de centro: o Partido Trabalhista britânico acaba de mostrar até que ponto a ideia de socialismo foi pervertida. Há que inventar, sobre as novas realidades económicas e sociais, uma esquerda nova, herdeira e continuadora das melhores tradições socialistas, capaz de levar os trabalhadores a uma reflexão sobre a situação concreta de um mundo sob o domínio de um neoliberalismo para quem o ser humano deixou de ter qualquer importância.
Os parâmetros de convergência marcados em Maastricht afectam directamente a Portugal e a Espanha. V. que conhece a realidade de ambos os países, que consequências trarão às suas respectivas classes trabalhadoras?
Numa palavra: as piores. Todos os governos da Europa o sabem, mas todos o calam. Diante disso, que fazem os sindicatos? Em meu entender, nada que se veja. Com perdão.
in,. "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 232 a 236 (7/out/1996)
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