12 de Dezembro (de 1996)
Roberto Fernández Retamar pediu-me, para a revista Casa de las Américas, um artigo sobre Ernesto Che Guevara. Com o título «Breve Meditação sobre Um Retrato de Che Guevara», escrevi isto:
«Não importa que retrato. Um qualquer: sério, sorrindo, de arma na mão, com Fidel ou sem Fidel, discursando nas Nações Unidas, ou morto, de tronco nu e olhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quisesse acompanhar o rasto do mundo que teve de deixar, como se não se resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitas crianças que estavam por nascer. Sobre cada uma destas imagens poder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lírico ou de um modo dramático, com a objectividade prosaica do historiador ou simplesmente como quem se dispôs a falar do amigo que percebe ter perdido porque o não chegou a conhecer...
«Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e de Caetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito com manchas fortes de negro e de vermelho, que se tornou em imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto férteis que nunca haveriam de murchar em rotinas e cepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade. Emoldurado ou seguro à parede por meios precários, esse retrato assistiu a debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos, minorou desânimos, acalentou esperanças. Foi olhado como um Cristo que tivesse descido da cruz para descrucificar a humanidade, como um ser dotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de uma pedra a água com que se matariam todas as sedes e transformar essa mesma água no vinho com que se beberia ao esplendor da vida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano.
«Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos habitantes as ideologias políticas de afirmação socialista não passavam de um mero capricho conjuntural, forma supostamente arriscada de ocupar ócios mentais, frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeiro choque da realidade, quando os factos vieram exigir o cumprimento das palavras. Então, o retrato de Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e de acção futura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúncia cobarde ou da traição aberta, foi retirado das paredes, escondido, na melhor hipótese, no fundo de um armário, ou radicalmente destruído, como se gostaria de fazer a algo que tivesse sido motivo de vergonha.
«Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensam de si próprios esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara à cabeceira da cama, ou em frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam os amigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingido acreditar. Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, ao perder a sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto era inútil ficar a chorar, como uma criança, o leite derramado. Outros confessariam que se deixaram envolver por uma moda do tempo, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas, como se a revolução fosse uma questão de cabeleireiro. Os mais honestos reconheceriam que o coração lhes dói, que sentem nele o movimento perpétuo de um remorso, como se a sua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nem esperança, sem uma ideia de futuro que dê algum sentido ao presente.
«Che Guevara, se tal se pode dizer, já existia antes de ter nascido, Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existir depois de ter morrido. Porque Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.»
in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 265 a 267 - 12/12/1996
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