Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 23 de novembro de 2014

"A Caverna" de um centro comercial em construção, nasce uma obra filosófica...

A alegoria da Caverna de José Saramago, é inspirada na acelerada mutação da sociedade agrícola e mais rudimentar, numa vivência industrializada baseada na criação da produção em massa, intensiva, global e asfixiante, em que o homem enquanto ser social consome de foram viciada e dependente sem questionar.
Este espaço comercial em construção, à entrada da cidade de Lisboa (capital e alusão a uma metáfora superior no espaço e tempo de uma sociedade), pela sua brutal dimensão e oferta de produtos e serviços ao dispor dos visitantes, foi o mote para a reflexão que Saramago propôs construir.
A co-relação entre a alegoria proposta por José Saramago, com uma vincada índole consumista e política, da alienação do homem social aos ditames de interesses corporativos sobre as massas, faz a ponte com a milenar e original metáfora de Platão, na "República", "Livro VII" - "Alegoria da Caverna". 
Aqui, Platão, à luz da sociedade organizada da antiga Grécia, preocupava-se em teorizar sobre a "prisão" do ser humano, enquanto ser pensante e eventualmente auto-exilado em si. 
Platão conjuntamente com os seus discípulos, alerta e debate sobre a capacidade do homem de então, poder pensar por si e com os seus (outros) em comunidade. Pensar, discutir, propor, decidir e acima de tudo poder questionar. 
Saramago, adopta e assume este princípio de Platão (e outros seguidores, desde então até esta data, assumindo esta capacidade filosófica com muitas centenas de anos) e acrescenta à metáfora a consciência política e económica de Marx e Engels. O homem que sob o trabalho escravo, sob a miséria das relações laborais, perde a sua condição pessoal e social de independência; ao mesmo tempo, não questiona, não assume a ruptura em conjunto com os seus demais, e deixa-se subjugar.
Acima de tudo, "A Caverna" é o espelho da viciação do ser humano. 




(...) Um dia, à entrada de Lisboa, aonde regressava vindo do norte, vi, ao lado da estrada, um grande cartaz que anunciava a próxima abertura de um novo centro comercial. Imediatamente, a imaginação desenhou na minha mente uma escavação profunda, da qual se levantava um edifício de dimensões enormes, de muros potentes, como uma fortificação gigantesca. Acabava de nascer "A Caverna", que é a visão de um mundo possível, onde os seres humanos quererão habitar no interior dos mesmos espaços comerciais que lhes vendem o que necessitam ou creem necessitar. É uma metáfora da vida nos países desenvolvidos ou que, não o sendo, se enganam a si mesmos em virtude de uma prosperidade apenas aparente, e é também uma alegoria: "A Caverna" retoma o mito platónico e por isso a epígrafe que abre o livro e diz. «Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós». O que "A Caverna" faz é perguntar ao leitor: 



«Seremos nós como os prisioneiros da Caverna de Platão que acreditavam que as sombras que se moviam na parede eram a realidade?
Estamos vivendo num mundo de ilusões?
Que temos feito do nosso sentido crítico, da nossa exigência ética, da nossa dignidade de seres pensantes»? (...)

em, "A Estátua e a Pedra"
Fundação José Saramago
Página 40


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