Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 14 de fevereiro de 2015

"A Praça" Crónica publicada no "Jornal do Fundão" e compilada em "A Bagagem do Viajante" (3/10/1971)


Inserida no livro de crónicas "A Bagagem do Viajante" 
Caminho (4.ª edição) Páginas 131 a 133

 "A Praça"

"Juntavam-se na praça ao domingo; chovesse ou fizesse sol. Punham uma camisa lavada, as calças de cotim menos remendadas, as botas ensebadas de fresco, quando não os sapatos de tromba larga, que nenhuma pomada conseguia pôr a brilhar. O colete era indispensável, ou a jaqueta, quando as posses lá chegavam. Na cabeça, o chapéu preto, mole, ou o barrete de igual cor. Verde só para os campinos, o pessoal da praça era gente de pé e nas mãos de todos eles o pau, símbolo de virilidade e poder, instrumento de ataque e defesa, atravessado no caminho dos ombros, como o ramo horizontal duma cruz onde sobrepostos os braços descansavam. 
Reuniam-se em grupos enquanto os feitores não chegavam. Davam rápidos cachações nos garotos que brincavam ao bate-e-foge e assim cortavam os diálogos espaçados, as meias frases que transportavam os temas principais da conversa: o trabalho, o patrão que se esperava, o último desvirgamento, o provável preço da jorna. Os mais velhos encostavam-se ao pau, fazendo da mão esquerda um ninho que lhes protegia o sovaco, e assim ficavam horas numa conversa lenta, interrompida por intervalos na taberna. Os mais novos bebiam menos, floreavam o pau em jeito de corte, quando as raparigas, sempre aos grupos, de braço dado, atravessavam a praça numa provocação sorridente e um pouco sonsa. Nessas ocasiões se faziam grandes jogos de olhares mal disfarçados, que vinham firmar namoros incipientes, ou pôr ideias de casamento nos rapazes. 
Em épocas certas do ano, alguns moços deixavam a aldeia. Era a tropa. Só alguns não voltavam. Quase todos, passado o tempo do serviço, retomavam a enxada, a gadanha e a pá de valar – e continuavam a reunir-se na praça ao domingo, mais velhos, sacudindo os próprios filhos, enquanto esperavam que viesse propor-lhes a jorna, segundo a fórmula tradicional: tantos mil réis e um litro de vinho. Encorreavam-se-lhes os rostos, os cabelos embranqueciam e rareavam, ali na praça, debaixo dos plátanos e ao pé da bomba, rodeados pelas mesmas casas baixas. Nem sempre havia trabalho. E outras vezes havia, mas os homens não o queriam. Os feitores subiam a jorna até onde estavam autorizados: era uma guerra, ora ganha, ora perdida. Até hoje. 

Juntam-se na praça ao domingo pela manhã e ali ficam durante algumas horas. Falam baixinho, como quem não quer incomodar nem sequer as pedras. Têm uma linguagem incompreensível, em que de vez em quando parece aflorar uma palavra conhecida, que logo se perde numa cascata dispersa de sons raros. Em todo o circuito da praça, as lojas mostram as portas fechadas, e a estátua que está ao meio, aquela que representa o poeta, parece uma ruína morta, alheia aos homens que a rodeiam. Estes vestem quase todos de escuro. Alguns são belos. Altos, delgados, têm feições finas e melancólicas. Outros parecem contrafeitos, torcidos como plantas do deserto que muito tivessem procurado a água. 
A placa central da praça pertence-lhes. Os habitantes da cidade passam de longe, a fingir que não reparam, olhando para o lado, como quem não pode ser natural ou não se habituou ainda a sê-lo. Olham gulosamente e à socapa as raras mulheres dos homens da praça. O cheiro do trópico, o segredo das ilhas, perturba um pouco o cinismo inábil do branco. E elas, as mulheres, quase todas novíssimas raparigas, são belas sem exceção, de olhos alagados e veludosos, e quando conversam com os homens da sua raça sorriem muito. Talvez não sejam alegres, mas sabem o que é alegria. Os companheiros são mais graves: andam lentamente de um modo ondulante, como quem ainda sente nos quadris o roçar do capim e das plantações. 
Durante horas, a praça fica coalhada de homens estranhos. Para ali se transportou o largo de terra calcada pelos pés de gerações, uma espécie de porto de salvamento onde se colhem notícias da ilha e dos companheiros. Dali irão ao trabalho da semana seguinte com o contentamento de se saberem juntos. 

Um largo da província, uma praça de Lisboa: a mesma necessidade de espaço livre e aberto, onde os homens possam falar e reconhecerem-se uns aos outros. Onde possam contar-se, saber quantos são e quanto valem, onde os nomes não sejam palavras mortas mas antes se colem em rostos vivos. Onde as mãos fraternalmente pousem nos ombros dos amigos, ou afaguem devagar o rosto da mulher escolhida e que nos escolheu, sejam eles do outro lado do rio ou do outro lado do mar."

Esta é uma crónica de José Saramago publicada no Jornal do Fundão, a 3 de Outubro de 1971, e republicada a 1 de Agosto de 2013. 

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