Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 6 de março de 2015

Texto "Indignado" - Feira do Livro de Bogotá (Colômbia) - Apresentação da obra "Ensaio sobre a Cegueira" Novembro de 2004

Recuperação do texto publicado na revista "Blimunda" #10, de Março de 2013

"Em novembro de 2004 José Saramago visitou a Biblioteca Luís Ángel Arango, de Bogotá, para uma conversa com Jorge Orlando Melo, director da Biblioteca, a propósito do livro Ensaio sobre a Lucidez. No mês que antecede o início da Feira do Livro de Bogotá, que terá Portugal como país convidado, parte dessa conversa é agora publicada na Blimunda."

(José Saramago durante a "Feria Internacional del Libro" em Bogotá, Colômbia)

"A conclusão é muito fácil: os políticos preferem a abstenção ao voto em branco. Com a abstenção viveram sempre e encontraram uma forma de a justificar: pela chuva, pelo sol, pela praia, pela gripe, pela doença, ou simplesmente porque à pessoa não lhe apeteceu votar. Não é o mesmo que 40% de eleitores tenham intenção de votar e, porque as propostas existentes não lhes interessam, decidem votar em branco. 
Penso que não se pode dizer, com toda a ligeireza do mundo, que vivemos em democracia quando essa democracia não dispõe de meios nem de qualquer instrumento para controlar ou para impedir os abusos do poder económico. 
Acima daquilo a que chamamos o poder político há outro poder não democrático, o económico, que a partir de cima determina a vida do outro poder que está por baixo. 
Ao FMI manobram-no representantes das cinco grandes potência do mundo. Por isso para os outros países não há nada a fazer: ou se submetem, aceitam as condições, ou então fecha-se-lhes a torneira.
Isto parece-me muito claro e dou-vos um exemplo. Houve um tempo em que toda a ambição, a ilusão de um governo que se prometia aos cidadãos era o que se chamava então de pleno emprego, o que significaria emprego para toda a gente e para toda a vida. Era um ideal inalcançável, mas pelo menos falava-se disso. Em 20 anos, ou até em menos tempo, passámos do pleno emprego para a realidade brutal do emprego precário, a que eufemisticamente chamo mobilidade social. Como é que isto aconteceu? 
No fundo, é como um exercício de prestidigitação assombrosa, pelo meio do qual o poder económico, muito respeitado, fez saber aos governos que precisamos de ter as mãos livres, que se temos de encerrar umas fábricas, pois que as cerremos e não peçamos contas, levamo-las para outro país onde os salários são mais baixos e onde os horários de trabalho não têm limite. Então, como uma ordem que cai do céu, pouco a pouco, sem nos darmos conta, passamos ao emprego precário. Isto fez-se de maneira tal que já ninguém recorda, ou comportamo-nos como se não nos recordássemos de que houve um tempo, não tão distante assim, em que se falava de emprego para toda a gente. 
Agora vivemos nisto. Empresas que contratam trabalhadores por uma hora, aquilo a que em Espanha se chama contrato-lixo. O pior de tudo é que é como se nos tivessem arrancado um dente com anestesia. Arrancaram o dente, não sofremos nada, mas agora sentimos que há um vazio que é a preocupação, o medo de perder o trabalho. Isso é o que chamamos de democracia. É uma fachada. Não quero dizer que por trás dessa fachada não exista nada, pois todos os dias se constrói, todos os dias se tenta e todos os dias algo se consegue, mas não no fundamental, que constitui o velho e permanente problema: o poder. Quem detém o poder, como chegou ao poder, para que fim o tem, e o que há que aceitar, porque é uma evidência que os governos se transformaram nos comissários políticos do poder económico, o concubinato entre o poder político e o poder económico existe desde sempre. Creio que a democracia é o menos mau de todos os sistemas políticos, mas poderíamos reinventá-la, e para isto apenas se requer que lhe demos os meios adequados, que são as convicções dos cidadãos, a capacidade de intervenção de cada um de nós para que a democracia, simplesmente, seja como deve ser, e a verdade é que não o é.
Neste livro há uma frase que, no fundo, resume o romance, condensa-o, concentra-o em pouquíssimas palavras: «Quando nascemos é como se assinássemos um pacto para toda a vida, mas pode chegar o momento em que nos perguntemos quem é que assinou isto por mim». Creio que isso nos acontece. A Saulo, que perseguia os cristãos, de repente aparece-lhe uma luz imensa, cai do cavalo e escuta uma voz que diz: «Por que me persegues, Saulo?». E aí converteu-se. Claro que não aspiro a tanto, não sou tão ingénuo a ponto de poder dizer que com esta frase mudei o mundo, mas vai chegar o dia em que perguntaremos quem é que assinou isto por mim e não se ouvirá uma voz que diga por que me persegues, mas talvez possamos dizer-nos uns aos outros «óptimo, andamos a pensar nisso». 
Há uns anos reuniram-se dez escritores e filósofos para debater algo tão interessante e ao mesmo tempo tão inútil como apresentar dez propostas para o milénio, como se o milénio estivesse preocupado com as propostas, e eu era um deles. Todos tomaram o tema proposto de forma séria e apresentaram propostas para o milénio, evidentes quase todas, e eu, que sou muito mais consciente das minhas próprias limitações, propus regressar a essa coisa tão simples, tão estupenda, tão magnífica, tão deslumbrante, que é o pensamento. Pensar, regressar à filosofia. 
Agora mesmo, em todo o mundo estão a realizar-se milhares de congressos, milhares de mesas redondas, milhares de simpósios, e posso assegurar, sem medo de me equivocar, que há uma única coisa que não se está a discutir: a democracia. É como se fosse um dado descoberto de uma vez por todas e para sempre, e portanto sobre ele não vale a pena falar e eu digo que, pelo contrário, sim, vale a pena, falar interminavelmente, pensar, reflectir, discutir com os nossos entes mais próximos, clarificar coisas. Nós vivemos no que se pode chamar hoje, sem nenhum exagero, um deserto de ideias; não há ideias, não há ideias novas, não há ideias que mobilizem, não há ideias que façam levantar as pessoas da sua resignação, parece que todos nos resignámos a uma espécie de fatalidade que não aceita mudanças. Mas as ideias tão-pouco nascem assim do nada, é a própria sociedade a que tem de gerá-las e, quando tal ocorrer, começaremos a ter alguma coisa. 
Se a vida privada acabou de alguma forma, a consciência privada, para usar o mesmo termo técnico, sofreu um atentado semelhante. A liberdade, e agora falo da liberdade de consciência, por vezes arrisca-se a converter-se em algo utópico, com muito pouco conteúdo. 
Tivemos liberdade para torturar, para matar, para assassinar, e tivemos liberdade para lutar, para ir em frente, para tentar manter a dignidade. É aterrador o uso que se pode fazer de uma palavra. O importante é que exista a presença de um sentido de responsabilidade cívica, de dignidade pessoal, de respeito colectivo; se se mantém, se se constrói, se não se aceita cair na resignação, na apatia, na indiferença, isto pode ser uma semente para que algo mude. 
O que vai provocar a palavra semente? Algo que amanhã dará flores e frutos. Acredito muito que, se houver debate, é possível mudar as coisas, mas não podemos limitar-nos a esse debate que por vezes aparece nos meios de comunicação, que é uma coisa entre uma determinada família de comunicadores, de jornalistas, de políticos também, que no fundo manipulam os conceitos, como temos visto, como é claro para todo o mundo. Enquanto não ser puder mudar o que está por cima (o poder económico), vai ser muito difícil. 
Hoje, quando passámos ao lado de um cemitério de Bogotá, falava com a minha mulher sobre o epitáfio que escreveria na lápide, supondo que os restos ficassem ali, e então disse que poria «Indignado». E realmente digo indignado por dois motivos: um pessoal e o outro egoísta. Indignado por estar morto, não há direito, realmente, e o outro, pior, indignado por ter passado pela vida e não ter podido mudá-la. Isto é terrível." 

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