Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 29 de julho de 2015

"Sofía Gandarias" post no Livro/Blog "O Caderno" ... Auschwitz e deus...

http://caderno.josesaramago.org/41158.html

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"Sofía Gandarias"

"À pergunta angustiada, ainda que carregada de uma retórica fácil, que o papa lançou em Auschwitz para surpresa e escândalo do mundo crente: “Onde estava Deus?”, vem esta grande exposição de Sofía Gandarias responder com simplicidade: “Deus não está aqui”. É evidente que Deus não leu Kafka e, pelos vistos, Ratzinger também não. Não leram nem sequer Primo Levi, que está mais perto do nosso tempo e nunca se serviu de alegorias para descrever o horror. Se se me permite a ousadia, eu aconselharia ao papa que visitasse, com tempo e olhos de ver, esta exposição de Sofía, que escutasse com atenção as explicações que lhe fossem dadas por uma pintora que, sabendo muito da arte que cultiva, muito sabe também do mundo e da vida que nele temos feito, os que crêem e os que não crêem, os que esperam e os que desesperam, e os outros, os que fizeram Auschwitz e os que perguntam onde estava Deus. Melhor seria que nos perguntássemos onde estamos nós, que doença incurável é esta que não nos deixa inventar uma vida diferente, com deuses, se quiserem, mas sem nenhuma obrigação de crer neles. A única e autêntica liberdade do ser humano é a do espírito, de um espírito não contaminado por crenças irracionais e por superstições talvez poéticas em algum caso, mas que deformam a percepção da realidade e deveriam ofender a razão mais elementar. Acompanho o trabalho de Sofía Gandarias desde há anos. Assombra-me a sua capacidade de trabalho, a força da sua vocação, a mestria com que transfere para a tela as visões do seu mundo interior, a relação quase orgânica que mantém com a cor e o desenho. Sofía Gandarias é, toda ela, memória. Memória de si mesma, como qualquer, em primeiro lugar, mas também memória do que viveu e do que aprendeu, memória de tudo o que interiorizou como algo próprio, memória de Kafka, de Primo Levi, de Roa Bastos, de Borges, de Rilke, de Brecht, de Hanna Arendt, de quantos, para tudo dizer numa palavra, se debruçaram do poço da alma humana e sentiram a vertigem.Nota: Texto para a exposição “Kafka, o visionário”, de Sofía Gandarias, que poderá visitar-se na Haus am Kleistpark de Berlim a partir do dia 28 deste mês. (14 de Maio de 2009)"

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