Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 5 de julho de 2015

"Um jantar com Saramago" por José Rentes de Carvalho... um episódio com memória

Pode ser consultado e lido,

(Arti et Amititiae)

(*) Publicado no nr. 136 da LER

"São sem conta as maneiras de arruinar um jantar, e o que devia ser um civilizado convívio de gente de boas maneiras resulta, por vezes, numa desagradável refeição.
Ao anoitecer de 6 de Outubro de 1998, num restaurante italiano de Amsterdam, sentavam-se à mesa José Saramago; a baronesa Chantal d'Aulnis de Bourouil, directora de Meulenhoff, a editora holandesa de Saramago; Laurens van Krevelen, antigo director da mesma, bom amigo que se arriscara a publicar Com os Holandeses; Ray Güte-Mertin, celebrada agente literária alemã; e este que assina.
A mesa era redonda. José Saramago, que já antes notara que Ray Güte-Mertin e eu nos calhávamos menos que pouco, sentou-se entre nós, tomando a si a função de pára-choques. De nada adiantou, pois o que eu afirmava, dirigindo-me a um dos outros convivas, rebatia-o ela com azedume. Defendia a senhora uma ou outra ideia sobre a literatura portuguesa, caía-lhe eu em cima ridicularizando o seu ponto de vista.
Saramago ouvia sem intervir, os anfitriões faziam o possível por desviar a conversa para a probabilidade dele, dois dias depois receber o Nobel e, despachada a sobremesa, bebido o café, desfez-se a companhia. A alemã despediu-se dos holandeses, de Saramago, e fazendo o que eu já tinha feito,  voltou-me as costas.
-E agora? – perguntou Saramago.
A noite apenas começara, estava serena, fazíamo-nos boa companhia, e como se  alguém o sussurrasse do alto ouvi-me a dizer:
- Vamos homenagear a "Ramalhal figura".
Concordou ele, e porque era mesmo ao lado, começámos por visitarHet Begijnhof, o retiro de beguinas que data de 1389 e é ali um oásis de paz. Seguindo Ramalho, aquando da sua visita à cidade, onde então se realizava a  Exposition Internationale & Coloniale, fomos pela Kalverstraat, desembocámos na Praça do Dam e, logo ao lado, entrámos como ele no  Wijnand Fockink, diminuto espaço onde desde 1679 se bebe licor ou genebra e, por tradição, se enchem os copos tão à borda que o cliente tem de se curvar para chupar o primeiro gole.
O prédio vizinho é agora hotel de luxo, mas em 1883 Ramalho Ortigão maravilhou-se com o Jardim de Inverno do que então era café e mantém o nome de Krasnapolsky. "Vinte bilhares, lugares para duas mil pessoas, iluminação a luz eléctrica e grande orquestra às horas de jantar". Demos uma vista de olhos ao que continua a ser uma sala espectacular e, de novo na praça, deixando perto os canais de boa e má fama, rumamos castamente pelo Rokin.
Parámos no cruzamento dessa avenida com a Spui, julgando o futuro Nobel que nos despedíamos ali. Assim não foi, porque enquanto deambulávamos me tinha ocorrido a possibilidade de terminar o passeio, se não en beauté, pelo menos de modo a que José Saramago guardasse dele boa memória. E guardou, como com uma pontinha de emoção gravemente disse, quando horas depois nos separámos e eu lhe desejei boa estadia em Frankfurt.
Explicando: em meados de 1976, com dois livros publicados na Holanda, um de  inesperado êxito e outro que me marcou com o ferrete de "inimigo do povo e traidor da Revolução", surpreendeu-me o convite de me tornar sócio de Arti et Amititiae, sociedade de intelectuais e artistas fundada em 1839, um pouco no género dos clubes londrinos, com razoável restaurante, boa conversa,  excelente bar e, ao invés desses outros, com companhia feminina.
Quando lá entrei a primeira vez esperava-me uma surpresa: dando-me boas-vindas, o presidente anunciou-me ser eu o segundo sócio português. O nome do primeiro, feito sócio honorário em 1883, era de difícil de pronúncia, mas ia mostrar-mo no livro de registos que eu acabava de assinar. De facto, ao abrir no ano correspondente, lá estava, robusto e floreado o autógrafo de José Duarte Ramalho Ortigão.
Isso contava eu a Saramago, parados ambos no hall de entrada e, posso enganar-me, mas nele como que dei conta de um ligeiro cepticismo. Entrámos, assinámos o livro de presenças e sentámo-nos a aguardar que nos viessem atender. Havia bastante gente, mas a algazarra tornou-se um murmúrio, quando uma senhora se foi sentar ao piano da sala e, de certeza profissional, começou a tocar Bach.
José Saramago ouvia calado, observando o ambiente, os lambris, os candelabros, as estátuas, os sofás de couro. Os duzentos e tal quadros de mestre que Ramalho admirara, acham-se na galeria do primeiro andar, a essa hora fechada, mas havia ali um vintena deles, entre outros um retrato de Erasmo, lendo o seu Elogio da Loucura a Thomas More, uma Lição de Anatomia, de Rembrandt, de 1632;  batalhas navais, retratos de burgomestres, um de Herman Boerhave (1668-1738), médico famoso e mestre do nosso não menos ilustre clínico António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783) natural de Penamacor e médico de Catarina da Rússia.
- Então o Ramalho esteve aqui?
A pergunta parecia encerrar uma ponta de suspeita, e foi o que me fez levantar à procura do gerente. Expliquei quem era o meu convidado e o que provavelmente ia acontecer em Frankfurt, poderia ele fazer-me um favor? Trazer do escritório o registo dos sócios?
A última memória que guardo dessa noite é a de Saramago olhando à vez para o autógrafo da "Ramalhal figura" e para mim, como que a perguntar-se se seria apenas acaso o termos ido ali."

(*) Publicado no nr. 136 da LER

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