Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 22 de agosto de 2015

"Objecto Quase", livro de contos de José Saramago - Olhar via "Universo dos Leitores" (30/09/2014)

A reprodução desta matéria, pode ser consultada aqui, via "Universo dos Leitores"
em http://www.universodosleitores.com/2014/09/objecto-quase-de-jose-saramago.html

(Imagem via link do "Universo dos Leitores") 

"Ler Saramago é sempre uma experiência incrível, já que ele tem uma capacidade ímpar de retratar o ser humano com o seu pessimismo, a sua alienação, as suas opressões, falhas e imperfeições. 

Nesse livro, que reúne seis histórias originalmente publicadas no ano de 1978, o genial escritor nos leva por caminhos variados, mas todos eles apresentam situações inovadoras e absolutamente críticas, que permitem reflexões intensas sobre a condição do ser humano em meio ao capitalismo e à necessidade exacerbada de possuir bens materiais. 

Saramago, em cada um dos contos reunidos neste exemplar, demonstra que atualmente tratamos as pessoas como “coisas” e as coisas como “pessoas”. O interessante é que para apresentar todas as críticas à estrutura social em que vivemos, ele se utilizou de metáforas e mesclou assuntos políticos com narrativas tão intensas que chegam a ser poéticas, mesmo não tendo poesia alguma. 

Também convém ressaltar que para enfatizar a diferença existente entre os seres humanos, Saramago apresentou dois tipos de protagonistas: aqueles que aceitam a condição de objetos e não lutam contra o sistema e aqueles que tentam de alguma forma lutar contra a tal objetificação e animalização do homem, esforçando-se e dedicando-se para o bem estar da sociedade. Neste segundo grupo perdura a ideia de vingança e de revolta contra as atitudes supostamente aceitas socialmente. 

Um ponto comum entre todas as narrativas é que elas não apresentam finais conclusivos ou estruturados. Em cada conto, a última frase ou o último parágrafo abrem espaço para diversas possibilidades e diversas situações. Isso é interessante já que a vida é exatamente assim: indefinida, incerta, incalculável. 

Para dar uma noção geral dos contos, vou falar de forma sucinta de cada um:

Cadeira, o primeiro conto do livro, apresenta uma descrição detalhada e irônica sobre o desgaste de uma cadeira no momento da queda de Salazar, um ditador já idoso. Saramago utiliza da estrutura da cadeira, da deterioração da madeira e da falta de braços para fazer uma alegoria com a queda da ditadura e do sistema que dominava Portugal e impunha comportamentos e crenças. 

"Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo esta graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para a deter e assistimos juntos."

Em Embargo o escritor utiliza de um tom crítico, dramático e irônico para narrar a história de um automóvel que passa a ter vida própria e consciência no momento em que sofre restrições ao acesso do combustível. O conto é uma metáfora acerca da condição do ser humano diante dos objetos e dos bens materiais em geral, apresentando situações políticas e econômicas que rodeiam a sociedade. 

(Imagem via "Universo dos Leitores")

Refluxo, por sua vez, conta a história de um Rei que não suporta conviver com a ideia da morte e a lembrança da finitude da vida, e decide criar um cemitério único e gigantesco, que irá contornar a cidade, para que todos os corpos espalhados nos diversos cemitérios sejam direcionados para o novo local, que será um templo para a celebração da morte. Aqui, a morte é utilizada como uma metáfora para as pessoas que se transformaram em coisas e estão se privando da essência da vida. 

No conto Coisas, o mais longo do livro, somos apresentados a uma sociedade futurista em que as pessoas são dividas em grupos, conforme a capacidade de consumo. A estrutura social entra em estado de caos quando os objetos começam a desaparecer de forma rápida e misteriosa. Contudo, o verdadeiro problema aparece quando cidades inteiras somem de forma inexplicável e toda a materialidade deixa de existir, perde o sentido e o significado. 

"Foi então que do bosque saíram todos os homens e mulheres que ali tinham se escondido desde que a revolta começara, desde o primeiro oumi desaparecido. E um deles disse:
— Agora é preciso reconstruir tudo.
E uma mulher disse:
— Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas."

Em Centauro o personagem é um centauro que se esconde no mundo e vive atento à destruição dos seres e das criaturas existentes. Contudo, certo dia, ele seqüestra uma mulher e a notícia se torna pública, situação que faz com que ele seja caçado pelos homens, tornando-se um espetáculo midiático. Sem saber como fazer diante de toda a perseguição, o animal decide pular de um penhasco, mas no momento da queda, uma situação inesperada acontece e ele se transforma em dois – um homem e um cavalo - o que deixa clara a mensagem que somos homens animais, homens falhos e com pouca consciência. 

A narrativa representa a constante fuga em que vivemos: a fuga de nós mesmos e da nossa consciência. 

"Então olhou seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer."

Por fim, em Desforra, o último conto do livro, Saramago utiliza de poucas palavras para contar a história de um porco que ao ser castrado pelo homem, decide comer os próprios testículos. O contexto agressivo e intenso da narrativa visa reafirmar a condição do homem que nega a sua condição e a sua capacidade predatória e destrutiva.

(Imagem via "Universo dos Leitores")

Esse livro permite uma leitura agradável e reflexiva, além de ser um excelente contato com a linguagem inteligente e diferenciada de Saramago, um gênio da literatura."

Texto de Isabela Lapa

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