Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 13 de dezembro de 2015

"Portugal pela Clarabóia" - Entrevista a Maria do Céu Guerra - Encenadora da peça de teatro "A Claraboia" Teatro A Barraca (Visão - 11/12/2015)

"Portugal pela Clarabóia" - Entrevista a Maria do Céu Guerra
Encenadora da peça de teatro "A Clarabóia" Teatro A Barraca (Visão - 11/12/2015)

A entrevista pode ser consultada e lida, via revista Visão, aqui
em http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/teatroedanca/2015-12-11-Maria-do-Ceu-Guerra---Portugal-pela-Claraboia

Fotografias de Luís Rocha - Movimento de Expressão Fotográfica
Mais informação em http://www.mef.pt/mef/ 


"Um 'fresco' Portugal nos anos 50, visto através da Claraboia, o romance de José Saramago no palco de A Barraca estreou na quinta-feira, dia 10, no Cinearte, em Lisboa. Um espetáculo encenado por Maria do Céu Guerra, que abre um ciclo que a companhia vai dedicar ao Nobel da Literatura."

"O teatro em tempos de “austeritarismo” encolheu os atos e os “sonhos”. A Barraca quase acabou, com os cortes e os 40 mil euros de subsídio anual a que viu reduzida a existência. Farta de tanto aperto e míngua, Maria do Céu Guerra não quer poupar mais na “ousadia” de “fazer um espetáculo em grande”. Sentiu essa ânsia crescer página a página, capítulo a capítulo do livro de José Saramago que agora arrisca levar à cena: Claraboia, o romance póstumo do escritor, embora tivesse sido escrito em 1953. E atreveu-se a encená-lo, mesmo tendo que poupar em tudo menos em esforços e imaginação. Essa nunca é “pobrezinha”, como garante a atriz e encenadora."

"No palco, um prédio com seis casas dentro, um “mosaico” de quotidianos familiares, nos anos pardacentos do fascismo, e subterrâneo o conflito, as pulsões da condição humana. São 16 atores para dar corpo à narrativa de Saramago tornada diálogo, com a adaptação de João Paulo Guerra. Para a reconstituição desse tempo, o cenário criado por Costa Reis. Um espetáculo para ‘virar a página’ da austeridade. “Um pontapé na sorte”, diz Maria do Céu Guerra, consciente do risco da aposta. E sabe-se que a sorte protege os audazes."

Jornal de Letras: Que possibilidades teatrais descobriu neste romance de Saramago?
Maria do Céu Guerra: Foi Pilar del Río quem me ofereceu Claraboia, que sabia que tinha tido uma história editorial complicada. Quando o comecei a ler fiquei logo interessada no retrato que José Saramago faz das casas, das famílias, da vida naqueles anos pesados, mesquinhos, do Estado Novo.

Um retrato quotidiano do fascismo?
E sem nunca falar de repressão, de polícia ou mesmo aparentemente de política, a não ser pela boca de uma personagem, assumidamente oposicionista. Saramago consegue dar uma narração do fascismo branco. Isso entusiasmou-me e comecei a imaginar como seria possível pôr um prédio em cena, com seis famílias em simultâneo. A partir do meio, o livro começou a desafiar-me para o palco. E cada vez me apaixonava mais pela própria dificuldade desse exercício.

Fotografias de Luís Rocha - Movimento de Expressão Fotográfica

Que aguçou o engenho?
Estes anos de austeritarismo, como lhe chamo, dificultaram tanto a vida d’A Barraca que andamos a fazer reposições, um Tartufo muito austero, sempre a contar os tostões. Há dois anos estivemos mesmo para acabar. Só não aconteceu porque tivemos sempre a solidariedade do nosso público e houve uma petição entregue e aprovada na Assembleia da República reconhecendo o nosso trabalho, o que não nos trouxe mais dinheiro mas nos deu ânimo. Pensei muitas vezes que não me apetecia fazer mais nada, continuar a pensar só em coisas baratinhas, pequeninas. E sei que o público também gosta de qualquer coisa de espetáculo, o que é caro. Claraboia fez-me sentir vontade de correr esse risco.

É uma grande produção, com 17 personagens. Como foi possível?
A Pilar del Río ajudou-nos, não economicamente mas a abrir alguns caminhos, a chegar por exemplo ao Fundo de Fomento Cultural e a entreabrir algumas portas. Claro que foi uma dívida enorme que A Barraca contraiu e que só será capaz de pagar se o público vier ver a peça.

Uma ‘ousadia’ nos tempos que correm?
Foi um rasgo e avancei, apesar desses perigos. E teve o condão de me entusiasmar e apaixonar de novo. E sair da mediania. Já tenho esta idade e ainda muitos sonhos que quero realizar. A ousadia muitas vezes ajuda a dar um salto em frente. E é preciso.

Além das questões orçamentais, encenar Claraboia foi um quebra-cabeças?
Se foi. São muitas famílias, personagens, cenas, feitas ao mesmo tempo… E que têm que o ser em estilos diversos, porque são mesmo diferentes. Cada casa é uma casa, com o seu décor, as suas formas de relacionamento, pessoas que se cruzam nas escadas, que se veem e ouvem, uma que transporta o desgosto de ter perdido uma filha, duas irmãs com o amor pela música e pela rádio, um linotipista do Diário de Notícias sórdido, uma rapariga por conta e o seu protetor, um casal infeliz, com uma galega nostálgica e muito divertida… Foi obra não os deixar contagiar pelos ritmos uns dos outros.

E a narrativa de Saramago não levantou problemas especiais na transposição para o palco?
Não. É um romance com um fio ficcional ténue, a história surge naquele painel de vidas remediadas. No teatro, esse fresco é dado, mas o conflito vai-se insinuando como um réptil, através da calúnia, da mentira, dos defeitos dominantes daquele tempo, talvez de todos os tempos. Tudo o que vemos naquele prédio se calhar não está tão longe de nós.

É isso que procura sublinhar a sua encenação?
Interessou-me trabalhar precisamente esse lado dos conflitos das famílias, as histórias silenciosas das casas, aquilo que acontece portas adentro. Por isso, fazemos uma espécie de corte naquela casa maravilhosa, criada pelo Costa Reis, inspirado na casa onde nasceu, e convocamos os espetadores a serem voyeurs desses universos fechados. Gostei muito de fazer esta dramaturgia. Aliás, agrada-me muito a passagem da escrita narrativa para a dramática.

Porquê?
Já adaptámos muitos romances e seduz-me esse exercício de tornar as descrições didascálias, o narrativo ativo. E desta vez, sem recorrer a narrador, o que acontecia numa outra adaptação, A Balada do Café Triste, de Carson McCullers, uma peça de que gostei muito. E sem ninguém a narrar é mais difícil. São seis casas ativas na frente do público, como a espreitar pela claraboia, o verdadeiro olho de Deus, para o interior daquelas vidas. E vão ajudar-nos as roupas, os hábitos, o que se comia, como se vivia.

Fizeram uma verdadeira ‘reconstituição’?
Sim. E foi muito divertido recuar no tempo. E tenho a aspiração de que o público faça essa viagem connosco. Estamos muito contentes com o espetáculo. Por outro lado, o Hélder [Costa] há muito queria encenar O Ano da Morte de Ricardo Reis e decidimos fazer um ciclo José Saramago, que se prolonga pelo primeiro semestre do próximo ano.

Haverá mais textos de Saramago?
O Conto da Ilha Desconhecida, que vamos fazer em reposição. E gostaria muito que Claraboia ainda estivesse em cena quando A Barraca fizer 40 anos, a 4 de março

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