Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Reflexão sobre os caminhos que a vida toma - "Cadernos de Lanzarote Diário II" (22/06/1994)

in, "Cadernos de Lanzarote - Diário II"
Caminho, página 140 e 141

22 de Junho de 1994
"Todos tivemos alguma vez a percepção súbita de estarmos a viver algo que já havia sido vivido antes, um lugar, um cheiro, uma palavra, o perpassar de uma sombra, uma sequência de gestos. A impressão não se demora, esfuma-se no instante seguinte, mas a lembrança desse momento mantém-se, como um animal caçador à espreita de que se repita a ocasião. Os que acreditam na metempsicose dizem que são recordações de vidas anteriores, nossas ou alheias. No segundo caso suponho que se aposta na hipótese de que as almas, não podendo ser infinitas em número, vão sucessivamente tomando posse de corpos diferentes, e, embora, em princípio, no fim de cada vida se tranque a respectiva conta-corrente, levando-se o saldo à rubrica dos ganhos e perdas gerais, não é de todo impossível que uma factura extraviada no tempo venha meter-se na contabilidade do dia em que nos encontramos... Os leitores de ficção científica estão muito habituados a estas cambalhotas temporais. 
O que já deve ser muito raro é a sensação de estar a viver uma vida que não é nossa. Entendamo-nos: somos quem éramos, reconhecemo-nos no espelho, reconhecem-nos os outros, e contudo, sem saber porquê, de repente surpreendemo-nos a pensar que a vida que vivemos, sendo a nossa vida, não deveria sê-lo à pura luz da lógica conjunta dos factos passados. Estou a falar de mim, claro está. Quando aos 64 anos a minha vida virou os pés pela cabeça (permita-se-me uma imagem tão pouco respeitadora da eminente dignidade da pessoa humana, como antes se dizia), não podia eu imaginar aonde me levaria o que então pensava ser uma simples bifurcação e afinal veio a ser estrada real (será preciso explicar aos meus virtuosos inimigos que não estou a falar de êxitos literários ou sociais?). Os dias já vividos não poderiam, pela lógica, ter-me trazido a isto, e no entanto eis-me a viver uma vida que difere tanto daquela que me tinha acostumado a chamar minha, que de duas uma: ou esta vida estava destinada a outro, ou sou eu esse outro. Conclusão: tenho aqui um seriíssimo problema ontológico para resolver." 

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