Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 3 de janeiro de 2016

Texto de Ângela Caires "Um rapaz chamado Saramago" republicado em "Cadernos de Lanzarote Diário II" (7/2/1994)

in, "Cadernos de Lanzarote Diário II"
Páginas 38 a 41, entrada com data de 7 de Fevereiro de 1994

(...) "Mãos amigas fizeram-me chegar... Dantes usava-se muito esta expressão, sobretudo em cartas dirigidas aos jornais, quando alguém que se sentia visado por alusões em geral desfavoráveis pretendia varrer publicamente a sua testada. Fazia-se assim crer que havia por aí umas boas almas cuja maior preocupação, pelos vistos, era informar (fazer chegar às mãos) o que a outras, apesar de únicas ou principais interessadas, houvesse passado despercebido. O que sucedia, em muitos casos, era não querer a pessoa visada que se soubesse que ela própria é que dera com a notícia caluniosa ou menoscabante, provavelmente por considerar indigno da sua importância tomar directo conhecimento das coisas inferiores do mundo. 
Não foi este o caso. As mãos amigas são reais e verdadeiras, são as de Iva e Manuel Freire, graças a quem, cá nesta Lanzarote onde vivo, pude ler um artigo de Ângela Caires publicado num jornal - O Fiel Inimigo - de cuja existência não tinha dado fé. O artigo chama-se «Um rapaz chamado Saramago» e é dos mais divertidos textos em que alguma vez pus os olhos. Não resisto à tentação, com a devida vénia, de trazê-lo aqui: 
«Costumo receber uns livros de capa amarela, habitados por personagens de nomes esdrúxulos, que têm em comum o facto se serem assinados por um rapaz chamado Saramago. Na dúvida se haveria de sacrificar-lhes o meu tempo, face a um antigo volume que levantei do chão, perguntei a um editor meu amigo se tal livro seria merecedor de atenção. Que não, garantiu. Aduzindo argumento demolidor: a sua editora recusara-se a publicá-lo. Com sobejas razões: o escrevente, que usa e abusa de vírgulas, raramente sabe onde colocá-las. Pontos parágrafos, então, nem vê-los. Daria um trabalho dos diabos transformar aquela massa informe de texto em prosa escorreita. Por esta razão, lá foi o original parar a uma editora de comunistas, onde, aliás, o sujeito se acoita, politicamente falando. «Os camaradas fizeram o primeiro frete, dando à estampa um volume com o nome arrevesado de Levantado do Chão que, segundo creio, passou completamente despercebido. Para não falar do flop total de outra tentativa, Memorial do Convento, de que seguramente ninguém guarda memória. Os editores, certos de que esta aventura lhes apontaria a falência, nem investiram muito no produto: não gastaram uns tostões a ilustrar as capas, produzindo-as em cartão liso de cor desmaiada. 
«O candidato a escritor poderia ter ficado por aqui. Mas a prova de que o autor não tem o menor sentido de humildade é que reincidiu. Raro é o ano em que não põe cá fora mais volumes de capa amarela, sempre com títulos desenxabidos e enganadores. 
«Nunca mais me vi livre dele. Por um aniversário, veio-me parar às mãos, camuflada em fitas e celofane, uma Jangada de Pedra, que mais não era do que urna narrativa alucinada da experiência vivida por um cão com pavores de tremores de terra. Num Natal couberam-me sete exemplares da História do Cerco de Lisboa, que não é história de um cerco nem de Lisboa, mas, sim, de um revisor às voltas com uma esquisita sinalefa tida por deleatur. Para não falar do dia em que ofereci a um sobrinho com pendor para as belas artes um Manual de Pintura e Caligrafia que nada tinha a ver com pincéis nem caneta. A última afronta, qualquer coisa como O Evangelho segundo Jesus Cristo, é a prova concreta da sua total falha de recursos criativos. Nem plagiar a Bíblia o sujeito sabe. E, mesmo depois dos conselhos do dr. Sousa Lara ("homem, vá para casa, leia, estude"), continua a escrever. Continua. Continua. 
«Como ninguém lhe compra livros, acho que vêm todos parar à minha estante, por via de amigos e familiares que adoram pregar-me partidas - não sei por que é que a editora insiste em publicar as suas mal arrumadas prosas, arruinando-se certamente. Coisas de comunistas. 
«Além do mais, como escritor, o homem é um perigo. Imagine-se que os seus textos vão parar às escolas. Lá se vai o denodado esforço de Couto dos Santos, de Roberto Carneiro, de Deus Pinheiro, e de outros intrépidos ministros da Educação, para as criancinhas aprenderem o bom português da dra. Edite Estrela. 
«Aterrador, não é? O pior é que a criatura, ainda por cima, se ri de nós. Não sei porquê. Nunca lhe deram o Prémio Nobel. Vive exilado numa ilha do fim do mundo. Casado com uma espanhola. Como se isto não bastasse, há um montão de anos que está desempregado. Por causa daquele seu mau feitio, a teimosia própria de quem não enxerga de que lado sopra o poder, nunca será funcionário do dr. Santana Lopes nem presidente da Câmara de Cascais. Bem feita.» 
Em tudo Ângela Caires sabe do que fala. Até sabe que a Bertrand recusou publicar o Levantado do Chão... Regalámo-nos de riso aqui. As gargalhadas de Carmélia e de Pilar deviam ter-se ouvido em Fuerteventura. Espero que não tenham faltado em Portugal, de mistura com alguns sorrisos tão amarelos como as capas dos meus livros..."~

Informação sobre a autora do texto, via Wikipédia aqui
"Maria Ângela Moreira de Caires (n. Funchal, 31 de Agosto de 1939 - m. Mafra, 27 de Agosto de 2013) foi uma escritora e jornalista portuguesa. Trabalhou nas redacções dos jornais Sempre Fixe, Diário de Lisboa, O Jornal, Visão, O Inimigo. O Pasquim, Tribuna e Notícias de Lourenço Marques foram outros jornais em que escreveu.
Também colaborou, nos anos 60 do século XX, no jornal satírico Re-Nhau-Nhau, que se publicou no Funchal e foi a mais duradoura publicação periódica do género que se publicou em Portugal (entre 1929 a 1977)
Copywriter em várias agências de publicidade durante alguns anos, é ainda autora dos romances Daqui em diante só há dragões (de 1988, um romance cuja ação se passa no Ambriz, em Angola, antes das guerras de libertação, e que viria a dar origem à série televisiva O café do Ambriz, produzida e transmitida pela RTP) e O amante da Bela Otero (publicado em 1989).

Obras principais
O segundo homem, Lisboa, 1957.
Madrugada cinzenta, Lisboa, 1959.
Yolanda, Lisboa, 1960.
As pedras envelhecem, 1964.
Daqui em diante só há dragões, Venda Nova, 1988.
O amante da bela Otero, Venda Nova, 1989.
O Capitão Tormenta, 1989-1990 (inédito).

Antologias
Narrativa Literária de Autores da Madeira: século XX. Nelson Veríssimo, org. Funchal, 1990. p. 201-208.
Contos Madeirenses. Nelson Veríssimo, org. Porto, 2005. p. 215-224.


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