Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Conferência em Paris - "Academia Universal das Culturas" (Cadernos de Lanzarote Diário II - 20/12/1994)

in, "Cadernos de Lanzarote - Diário II"
Caminho, páginas 254 a 259 (20/12/1994)

"Não sei se diga. Não sei se diga que vim a Paris, não sei se diga que participei pela primeira vez na assembleia da Academia Universal das Culturas e que nela botei fala crítica, tão protestativa quanto dorida-mente patriótica. Se digo, que dirão? Que não devia dizer, que deveria ter dito outra coisa, tudo menos que fui a Paris e que me receberam na Academia, aquela. Portanto não digo que infelizmente Jorge Amado não estava, mas que estavam, entre outros de que não tinha notícia anterior, Elie Wiesel, Umberto Eco, Wole Soyinka, Paul Ricoeur, Jacques Le Goff, Ismail Kadaré, Jorge Semprun. Também não digo que conheci com gosto e proveito o libanês Amin Maalouf, o tunisino Mohamed Talbi, o israelita Joseph Ciechanover, uns tantos outros de aqui e de além, de que não farei men-ção para não alongar mais o que não digo. Limitar-me-ei a dizer umas quantas palavras daquelas que não disse: 

«Quando se pede a um português uma definição breve do seu País, as explicações previsíveis, pondo de parte alguma diferença de pormenor, são, invariavelmente, duas: a primeira, ingénua, optimista, proclamará que jamais existiu, debaixo do Sol, outra terra tão notável e tão admirável gente; a segunda, pelo contrário, corrosiva e pessimista, nega essas sublimadas excelências e afirma que, últimos entre os últimos no continente europeu desde há quatro séculos, nessa situação ainda hoje nos comprazemos, mesmo quando protestamos dela querer sair. 
«Procuram os optimistas encontrar em tudo razões para que os Portugueses possam vangloriar-se duma identidade, duma cultura, duma história alegadamente superiores, como se História, Cultura e Identidade, qualquer que seja o grau de comparabilidade recíproca admissível, não fossem radicalmente inseparáveis, em causa e efeito, da própria relação social, conflitiva ou harmoniosa, dos seres humanos no tempo. 
«Já os pessimistas, propensos, em geral, a uma percepção relativizadora dos factos, afirmam que a História e a Cultura portuguesas, projectadas na época dos Descobrimentos em todas as direcções do globo, não foram, depois deles, e hoje, no limiar de integrações de todo o tipo que se anunciam arrasadoras, igualmente não parecem, essa História e essa Cultura, bastante sólidas para defender, preservar e intensificar a identidade de um povo que, com demasiada frequência, cai na simpleza de gabar-se de viver dentro das mais antigas fronteiras da Europa, como se o facto, inegável, se devesse exclusivamente a méritos próprios, e não, como a História ensina, aos acasos da geografia e à evidente insignificância estratégica da região.» 
Também não disse: 
«Ao longo de quatro séculos vivemos o que poderia denominar-se a expressão endémica duma subalternidade estrutural, atravessada por surtos agudos de intervenção estrangeira directa, como foi o caso do pró-consulado de William Beresford, o general inglês que foi para Portugal em 1809, com a missão de reorganizar o exército desmantelado em consequência da primeira invasão napoleónica, e que no país se manteve até 1820, exercendo um poder que foi, primeiro, rigoroso, depois abusivo, e finalmente ditatorial. Do mesmo nosso aliado britânico viria mais tarde, em 1890, a brutalidade e a humilhação do Ultimatum, sem dúvida um episódio menor no quadro mundial das disputas coloniais da época, mas que se configurou como ocasião para uma daquelas erupções de passionalidade patriótica com que, de longe em longe, procura equilibrar-se vitalmente a habitual passividade portuguesa. Chegou-se ao ponto de promover uma subscrição nacional para a compra de navios de guerra, a qual, sendo tão escassos os recursos do País, não deu para mais que a aquisição de um cruzador, construído em Itália, que entrou em Lisboa sete anos depois. Tinha razão Antero de Quental quando escreveu, no meio do mais indignado ardor das manifestações públicas, estas lúcidas e implacáveis palavras que deveriam ter-nos servido de lição para o futuro: "O nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos...".» 
Igualmente não disse: 
«Acabados de sair duma longa e traumatizante guerra colonial, teria sido desejável que os Portugueses tivessem podido pensar sobre si mesmos, examinando o seu passado e o seu presente, para depois, pelos caminhos de uma consciência criticamente nova, acertarem o passo com a Modernidade, sendo, porém, primeira condição desse ajuste novo o apuramento e desenvolvimento de mais amplas capacidades de auto-regeneração, e não a simples adopção, voluntária ou forçada, de modelos alheios que, no final das contas, já demasiado o sabemos, muito melhor servem a alheios interesses. 
«Porém, a História tinha pressa, a História não podia esperar que os Portugueses parassem para pensar em si mesmos, fazendo algo parecido com um exame do seu sentido histórico, num trabalho sério de reflexão colectiva que lhes permitisse identificar claramente as causas estruturais, mas também ideológicas e psicológicas, da sua tendência a aceitarem ser, como por uma espécie de determinismo congénito, um parceiro menor, e de certa maneira nisso se satisfazerem, talvez porque essa subordinação lhes permite, por um lado, exercitar a paixão da lamentação e do protesto contra as constantes incompreensões e injustiças dos poderosos, paixão essa acrescida de um fechar-se em si mesmos a que chamam orgulho nacional, e, por outro lado, persistir em interpretações messiânicas do destino português, actualizando-as e adaptando-as, melhor ou pior, às novas realidades exteriores. «Bastará recordar a Mensagem de Fernando Pessoa, agora retomada por novos visionários de todas as idades, porventura de uma maneira menos primariamente "patriótica", dificilmente adoptável por aqueles outros, os pragmáticos, que se preocupam, sobretudo, com decorar e repetir, como se seu fosse, o discurso europeu oficial, abandonando, por antiquados, os sonhos pessoanos de um império espiritual português, excepto nos casos em que tal discurso se mostre ainda ideologicamonte vantajoso para uso interno, ainda assim muito mais com o objectivo de ornamentar com citações literárias a banalidade da nova retórica política do que por convicta adesão a esses retardados messianismos.» 
O que vem a seguir também não foi dito: 
«Interessante, porém, será observar como uns e outros, os visionários e os pragmáticos, coincidem numa visão finalmente providencialista: enquanto os primeiros teimam em colocar num tempo sucessivamente adiado a Hora em que Portugal se achará a si mesmo, os outros, prosseguindo um percurso mental semelhante, colocam as suas esperanças nas benesses materiais da União Europeia, graças ao que, com mínimo esforço próprio e como por um efeito mecânico de «arrastamento», consequência do processo integrador geral, todos os problemas portugueses se acharão resolvidos, com as evidentes vantagens do dinheiro fácil, do curto prazo, das datas à vista, em lugar da infinita espera de um infinito futuro. 
«Tudo considerado, creio poder dizer-se, quanto aos primeiros, que lhes é bastante indiferente o que Portugal venha a ser, desde que seja (mesmo apresentando-se tão pouco nítido o ser que é possível deduzir das suas nebulosas especulações); quanto aos segundos, tão-pouco essa questão lhes parece importante, porque, não tendo uma ideia precisa do que Portugal poderia ser, estão decididos a transformá-lo noutra coisa o mais depressa possível, e, sendo tão faltos de imaginação criadora, não serão capazes de fazer melhor que pagar, por qualquer preço, o modelo europeu prêt-à-porter, onde o corpo português terá de entrar, com jeito ou à força, consoante as exigências de cada momento, reduzindo-o no que sobrar ou esticando-o até à completa ruptura social e cultural.» 
E finalmente não disse: 
«Portugal não foi capaz, até hoje, nem parece preparado para o fazer, de definir e executar um projecto nacional próprio, obviamente enquadrável, sendo as coisas o que são, na União Europeia, mas não exclusivamente tributário dela, porquanto uma definitiva dependência económica (ressalvando o que na palavra definitivo há de demasiado categórico) não deixará de acarretar uma dependência política e cultural não menos definitiva. O que, no decorrer dos tempos, foi começado por incipientes interesses dinásticos, depois continuado por razões imperiosas de estratégia militar, será inevitavelmente consolidado pela lógica de ferro dos condicionamentos políticos e culturais que resultarão duma organização planificada, não só da produção e da distribuição, mas também do consumo... 
«Não parecem estas evidências perturbar excessivamente os governantes europeus. Menos ainda, talvez, os governantes portugueses, se tenho em conta a resposta dada por um deles - hoje festejado comissário da União Europeia - ao serem-lhe apontados os perigos duma diminuição da soberania nacional por efeito da aplicação do Tratado de Maastricht: "Ainda no século passado, um governo português não chegou a tomar posse por a isso se ter oposto o almirante duma esquadra inglesa fundeada no Tejo..." E sorriu ao dizê-lo, provavelmente porque, a partir de agora, as ordens, ferindo ou não a legitimidade dos governos e a dignidade dos povos, vão passar a ser dadas por um civil - e de Bruxelas.» 
Realmente, não sei se diga. É que teria de dizer que vim a Paris, que vim à assembleia da Academia Universal das Culturas, e isso já se sabe que não pode ser dito. Não faltaria mais." 

in, "Cadernos de Lanzarote - Diário II"
Caminho, páginas 254 a 259 (20/12/1994)

Integrou desde 1994 a Academia Universal das Culturas, com sede em Paris. França.

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