Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Sobre Sofía Gandarias, a pintora que retratou José Saramago - "Cadernos de Lanzarote Diário III" (19/08/1995)

Informação sobre a pintora Sofía Gandarias - http://gandarias.es/

19 de Agosto (de 1995)

"Com o título de O Rosto e o Espelho ou a Pintura como Memória, escrevi hoje para o catálogo da exposição que Sofía Gandarias vai apresentar em Lisboa o seguinte breve texto, por onde se verá que ainda não pude libertar-me completamente dos cegos do Ensaio e que certas ideias do Manual se mantêm constantes: 

Título "Saramago" - Técnica Oleo sobre lienzo y arena
Año 1995 - Medidas 162x130 cm

«O pintor está diante do espelho, não de viés ou a três-quartos, conforme se queira designar a posição em que costuma colocar-se quando decide escolher-se a si mesmo para modelo. A tela é o espelho, é sobre o espelho que as tintas irão ser estendidas. O pintor desenha com rigor de cartógrafo o contorno da sua imagem. Como se ele fosse uma fronteira, um limite, converte-se em seu próprio prisioneiro. A mão que pinta mover-se-se-á continuamente entre os dois rostos, o real e o reflectido, mas não terá lugar na pintura. A mão que pinta não pode pintar-se a si própria no acto de pintar. É indiferente que o pintor comece a pintar-se no espelho pela boca ou pelo nariz, pela testa ou pelo queixo, mas deve ter o cuidado supremo de não principiar pelos olhos porque então deixaria de ver. O espelho, neste caso, mudaria de lugar. O pintor pintará com precisão o que vê sobre aquilo que vê, com tanta precisão que tenha de perguntar-se mil vezes, durante o trabalho, se o que está a ver é já pintura, ou será apenas, ainda, a sua imagem no espelho. Correrá portanto o risco de ter de continuar a pintar-se infinitamente, salvo se, por não ter podido suportar mais a perplexidade, a angústia, resolveu correr o risco maior de pintar enfim os olhos sobre os olhos, perdendo assim, quem sabe, o conhecimento do seu próprio rosto, transformado num plano sem cor nem forma que será necessário pintar outra vez. De memória. 
«As telas de Sofía Gandarias são estes espelhos pintados, de onde se retirou, recomposta, a sua imagem, ou onde, oculta, ainda se mantém, talvez sob uma camada de luz dourada ou de sombra nocturna, para entregar ao uso da memória o espaço e a profundidade que lhe convêm. Não importa que sejam retratos ou naturezas-mortas: estas pinturas são sempre lugares de memória. De uma memória visual, obviamente, como se espera de qualquer pintor, mas também de uma memória cultural complexa e riquíssima, o que já é muito menos comum num tempo como o nosso, em que os olhares, quer o do quotidiano, quer o da arte, parecem satisfazer-se com discorrer simplesmente pela superfície das coisas, sem se darem conta da contradição em que se encontram, em confronto com um olhar científico moderno que transferiu o seu campo principal de trabalho para o não visível, seja ele o astronómico ou o subatómico. 
«Para Sofía Gandarias, um retrato nunca é só um retrato. Algumas vezes parecerá que ela se propôs contar-nos uma história, relatar-nos uma vida, quando, por exemplo, rodeia o seu retratado de elementos figurativos cuja função, ou intenção, se há-de supor alegórica, como um hieróglifo cuja decifração mais ou menos rápida irá depender do grau de conhecimento das respectivas chaves por parte do observador. É transparente, por exemplo, o significado da presença da pirâmide maia no retrato de Octavio Paz, ou o de uma Melina Mercuri atada ao Pártenon, é-o muito menos o de Graham Green olhando por uma janela com as vidraças partidas, ou o de Juan Rulfo amarrado às tumbas de Comala. Encarada deste ponto de vista, a pintura de Sofía Gandarias, com independência do seu altíssimo mérito artístico e da sua evidente qualidade técnica, poderia ser entendida como um exercício literário para iniciados capazes de organizar os símbolos mostrados, e portanto completar, em nível próprio, a enigmática proposta do quadro. Tratar-se-ia de uma consideração flagrantemente redutora, em todo o caso absolvida pelo próprio imediatismo da leitura, se a pintura de Sofía Gandarias não fosse o que, de modo superior, é: a singularidade de uma memória de relação. 

Título "Pessoa" - Técnica Oleo sobre lienzo
Año 1995 - Medidas 195x130 cm

«De dupla relação, acrescentarei. A do retratado e da sua circunstância, exposta na distribuição dos elementos pictóricos secundários do quadro, e em que naturalmente se apreciarão questões como a semelhança, a pertinência, a concatenação plástica; e outra, a meu ver não menos importante, que é a relação cultural que Sofía Gandarias, a pintora, mas sobretudo a pessoa desse nome, mantém com a circunstância vivencial e intelectual dos seus retratados. Aqui trata-se claramente de pintura, mas trata-se também da expressão intensíssima de uma memória cultural particular. Mais do que simplesmente pintar retratos de figuras ditas públicas, o que Sofía Gandarias faz é convocar um por um os habitantes da sua memória e da sua cultura, aqueles a quem ela própria chama "as presenças", transportando-os para uma tela onde terão o privilégio de serem muito mais do que retratos, porque serão os sinais, as marcas, as cicatrizes, as luzes e as sombras do seu mundo interior. 
«Há melancolia nesta pintura. A melancolia de nos sabermos fugazes, transitórios, pequenos corpos cadentes que se apagam quando mal começaram a brilhar. O fundo quase sempre escuro dos quadros de Sofía Gandarias é uma noite, os rostos e os símbolos que como satélites os rodeiam são apenas os nosso pálidos e humanos fulgores. O mundo é o que somos, e esta pintura um dos seus sentidos.» 
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 142 a 145 (19 de Agosto de 1995)

Título "Año de Nacimiento de Ricardo Reis" 
Técnica Óleo, arena y polvo de mármol
Año 1995 - Medidas 230x200 cm.



Sofía Gandarias, faleceu dia 23 de Janeiro de 2016, em Madrid
"Sofia era uma amiga antiga de Portugal, do Centro Nacional de Cultura, de Helena e Alberto Vaz da Silva, de Yehudi Menuhin. Há cerca de um ano esteve connosco com seu marido Enrique Barón Crespo cheia de entusiasmo e de projetos, com a ideia de poder trazer-nos a Portugal algumas das suas obras emblemáticas. Em casa de Francisco Balsemão foi uma noite plena de sonhos e de futuro. Em si a literatura e a pintura estavam intimamente ligadas. Trabalhou intensamente até nos deixar e em Sevilha (no Espaço Santa Clara) é possível visitar uma extraordinária exposição de 28 telas que assinala os quatro séculos da morte de Miguel de Cervantes - «Coloquio de Perros». O conto é uma extraordinária metáfora humana. Quis que tudo ficasse pronto e conseguiu, apesar da doença. Sofia era determinada e persistente. A vida era um bem sagrado. Deixa-nos esse extraordinário exemplo. Amiga de José Saramago e de Pilar del Rio, o autor de «Memorial do Convento» definiu as suas telas como «espelhos pintados». É a defesa da dignidade humana que está sempre presente, invocando Kafka, o holocausto, a memória de Velasquez, a lembrança do seu País Basco e de Guernica… O carácter sombrio de muitas das suas telas é um grito de alerta, um apelo humaníssimo, para que não se esqueça a barbárie! 
Sofia Gandarias fica na nossa memória como uma mulher de fibra e de sensibilidade, de amizade e afetos! Ao Enrique e ao Alejandro enviamos a expressão mais funda da nossa amizade e solidariedade! Sofia continua connosco." 
Guilherme d’Oliveira Martins

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