Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 15 de março de 2016

Discurso perante o presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso pela atribuição do Prémio Camões (Cadernos de Lanzarote Diário IV - 26/01/1996)

26 de Janeiro (de 1996)
"Mais uma obrigação cumprida à última hora, como em tantas outras ocasiões tem sucedido: desta vez, as palavras com que irei agradecer ao presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, a entrega do Prémio Luís de Camões. Em casos destes, as conveniências aconselham um discurso «politicamente correcto», sem surpresas, um discurso que cumpra o horário, pare em todas as estações, e sobretudo não descarrile. Pensei, contudo, que uma viagem tão longa e um acto previsivelmente tão solene mereciam um grãozinho de fantasia irreverente - e a oração saiu assim: 

«Senhor Presidente, permitir-me-á que reserve para o fim as palavras formais de agradecimento, não porque elas não sejam devidas já, mas porque terei de agradecer-lhe, nessa altura, por esperançosa antecipação, muitíssimo mais (imagine!) que a honra que nos deu, a minha Mulher e a mim, ao convidar-nos a vir ao Brasil, eu, para receber das suas mãos o Prémio Luís de Camões, ela, porque aonde vai um, vai o outro. 
«Desde que cheguei à idade do entendimento, ando a ouvir dizer, com encorajadora insistência, que Brasil e Portugal são dois países irmãos, de sangues cruzados e linfas misturadas, e muita história de ida e volta. Quando aqui há uns anos demos por que a pena inconstante e vária de Fernando Pessoa tinha escrito aquilo de ser a pátria dele a língua portuguesa, e, portanto, por extensão, a de todos nós, acredito que os mais idealistas desta costa e da outra, das africanas também, terão pensado que se encontrava ali a chave mágica, graças à qual acederíamos a possibilidades mais fraternas e frutuosas de encontro e de diálogo. Se a língua portuguesa era realmente pátria, então era a pátria de quantos pensavam, falavam e escreviam português, logo, afinidade de espírito e sensibilidade, bandeira e pregão de todos. Se algo faltasse ainda a essa nova pátria para ser pátria geral, que não desesperássemos, porque o tempo resolveria os problemas, e todo o mais nos havia de vir por acréscimo. Entretanto, trataríamos de convencer-nos, a nós próprios e às gerações, repetindo, até à náusea, que a nossa pátria é mesmo a língua portuguesa. Pobre e sofredora pátria essa, digo eu, tão mal ensinada, tão real aprendida, inçada grotescamente de estrangeirismos inúteis, instrumento que já parece em risco de perder a necessidade e a serventia! 
«Talvez que uma língua partilhada, a nossa ou outra qualquer, com Pessoa ou sem Pessoa para proclamá-lo, possa vir a constituir-se, de facto, em uma certa forma de pátria. Mas, então, aquilo que estivesse a faltar-lhe para ser pátria suficiente, não só nunca lhe viria por simples acréscimo como seria isso, precisamente, o que iria dar-lhe o verdadeiro sentido. Di-lo-ei em palavras directas e sem retórica: interesses comuns, objectivos comuns, trabalho em comum. Os nossos registos históricos de nascimento continuam a demonstrar que somos parentes, mas as páginas das respectivas biografias colectivas estão cheias de mal-entendidos, de indiferenças, de mútuas desqualificações, de mesquinhos egoísmos, de muita conversa e pouca obra. 
«Senhor Presidente, não creio que, ao convidar-me a vir ao Brasil receber o Prémio Luís de Camões, a sua intenção tenha sido apenas a de estabelecer, diplomaticamente, um princípio de alternância que, em verdade, já estava tardando. Quero antes pensar que este acto solene significa, no seu espírito, o primeiro movimento de uma mudança de estilo e de acção nas relações culturais entre os países a que chamamos de língua oficial portuguesa. Quero pensar que, num futuro próximo, já que não poderá ser imediato, todos esses países - Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal -, consoante as disponibilidades humanas e financeiras de cada um, possam elaborar e pôr em funcionamento um plano de trabalho conjunto, atento, naturalmente, às circunstâncias e exigências nacionais, mas visando, com um espírito generoso e aberto, a preservação equilibrada e a difusão eficaz da língua portuguesa no mundo, mas também, e sobretudo, no próprio interior dos países que a falam, os nossos. 
«Era nisto que eu pensava, Senhor Presidente, quando comecei por dizer que teria de agradecer-lhe, por antecipação, muito mais que a honra de receber das suas mãos o Prémio Luís de Camões. Como escritor, como cidadão pedestre, peço-lhe que toque o alarme, e que ele se ouça por cima dos mares e das fronteiras. Afinal, talvez Fernando Pessoa tenha tido razão antes de tempo: foram tantas as coisas que ele anunciou para o futuro, que bem pode ser fosse esta uma delas. E não necessito lembrar que nós, os que falamos português, estamos a ser, neste momento, precisamente, um dos futuros de Pessoa... 
«Senhor Presidente, chegou a vez dos outros agradecimentos. Que vão resumir-se, por a mais não poder alcançar a minha eloquência, em cinco palavras: obriga-do, de todo o coração.» 

Não imagino como irá ser recebida em Brasília uma prosa assim. Mas desejaria que, conhecida ela, nunca mais os políticos de cá e de lá nos azoinassem os ouvidos com o nariz-de-cera pessoano de que a nossa pátria é a língua portuguesa... E se o que escrevi não merece tanta consideração, então que se dêem ao trabalho de ler o que realmente se encontra no Livro do Desassossego: 

«Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentido patriotico. Minha pátria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. 
«Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m'a do seu vero manto regio, pela qual é senhora e rainha.» 

Se não me engano na interpretação, a única coisa de que daqui se poderá concluir é que Fernando Pessoa estaria hoje contra o acordo ortográfico... 

in, "Cadernos de Lanzarote - Diário IV"
Caminho, páginas 31 a 34 (26/01/1996)

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