Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 24 de abril de 2016

Cartaz de "Blimunda" de Azio Corghi, ópera baseada no "Memorial do Convento" de José Saramago (Teatro Alla Scala, Milão - 1990)

Teatro Alla Scala

"Blimunda" de Azio Corghi, ópera baseada no "Memorial do Convento" de José Saramago

22 de Maio de 1990

Cartaz de apresentação do espectáculo, depositado na Fundação José Saramago e que faz parte da exposição permanente "José Saramago: A semente e os frutos"

"Blimunda, o Orfeu no feminino ou passagem de Blimunda" por Itália, 
por Maria Armandina Maia

O artigo de Maria Armandina Maia, publicado na revista "Camões  Revista de Letras e Culturas Lusófonas" (n.º3, Outubro-Dezembro de 1998), pode ser recuperado aqui,

"Blimunda", a ópera lírica em três actos que às 21.30 do dia 20 de Maio de 1990 estreava no Teatro Lírico de Milão, tinha a assinatura do compositor italiano Azio Corghi, autor de uma obra consagrada, que conhecera representações nos mais prestigiados teatros e salas de concerto, também a nível internacional. Na obra deste compositor, responsável pela Cátedra de Composição no Conservatório de Milão, colaborador da Fundação Rossini e da Casa Ricordi, ocupavam lugar de indiscutível relevo as obras musicais que resultavam de incursões pelo mundo literário, sobretudo com a composição Gargantua, experiência de tal modo notável que levaria o Teatro alla Scala de Milão a confiar-lhe o projecto da ópera lírica Blimunda, extraída do romance de José Saramago, Memorial do Convento.
O autor do Memorial tinha, por essa altura, três obras suas publicados em Itália: Memoriale del Convento, Feltrinelli, Milano, 1984; La Zattera di Pietra, Feltrinelli, 1987; e Storia dell'Assedio di Lisbona, Bompiani, 1990, traduções assinadas por Rita Desti (com excepção do Memoriale del Convento, fruto de uma tradução a quatro mãos, de Rita Desti e Carmen Radulet).
Para o vasto e exigente público italiano, Saramago era o autor português mais conhecido depois do "fenómeno" Pessoa, o primeiro a merecer destaque e interesse de casas editoras que constituíam um selo de garantia. No entanto, era junto de um núcleo de intelectuais que José Saramago assumia foros de verdadeira revelação, pela qualidade e ineditismo da sua palavra literária.
Ligado, na sua maior parte, a Instituições Universitárias, este grupo promovia a obra e o escritor que, pela sua mão, conheceu cidades como Perugia, Florença, Roma, Milão e Turim, em conferências e reuniões que se multiplicavam.
Foi, aliás, num destes momentos que conheceu Azio Corghi, que, impressionado pela atmosfera criada no Memorial, confessou a José Saramago o seu desejo de "contar a história de um Orfeu no feminino". A resposta de Saramago baptizaria a ópera. "Chamê-la-emos Blimunda".
Num exercício de grande unidade, escritor e compositor intersectaram os respectivos saberes, dando lugar ao magnífico trabalho que é o libreto de Blimunda, descrito pela crítica Lidia Bramani (casa Ricordi), como "uma estrutura em que são determinantes a voz recitante, solistas, oiteto madrigalista, coro, orquestra, electrónica, que se intersectam ao longo de linhas que se fragmentam e refazem, entrecruzando-se, distanciando-se, por vezes tocando-se ao de leve em três espaços musicalmente e cenograficamente distintos: o espaço acústico, o espaço imaginário e o espaço real".
Mas a estreia da ópera não se limitou em Milão ao público da sala que na noite de 20 de Maio encheu o Teatro Lírico, para aplaudir uma obra que, num só tempo, nos deslumbrava e quase estarrecia pela opulência, grandiosidade e magnificência, mas também pelo seu próprio e surpreendente avesso, na contenção da gestualidade, na pureza dos sons, no acenar dos sentidos.
Nos dias que a antecederam, numa organização promovida pela Universidade de Milão, tinha lugar o Colóquio Viaggio intorno al Convento di Mafra, na belíssima "Sala di Rapprezantanza", cujo programa era completado por um concerto de homenagem a autores portugueses do tempo – Carlos Seixas, Domingos Bomtempo e Francisco Lacerda – excelentemente interpretados por um grupo do Conservatorio Verdi, ao qual a Fundação Calouste Gulbenkian, num assinalável esforço de colaboração, facultara, num curtíssimo espaço de tempo, as partituras das obras.
Um vasto público ouviu, entre outros, textos de Piero Ceccucci: Il "Memoriale del Convento" nell'itinerario narrativo di José Saramago e Eduardo Lourenço: O Memorial da história humana como história santa.
De registar, sobretudo, as intervenções dos dois autores, Azio Corghi e José Saramago, que se prolongariam num longo debate com o público, em que falaram longamente do(s) sonho(s) de cada um: "Eu acho que, depois de o padre Bartolomeu Gusmão ter inventado a "passarela" e eu ter inventado a "máquina para viajar", é chegado o momento de o Maestro Corghi explicar a sua obra". A resposta de Corghi deixa clara a unidade da travessia entre a obra e a ópera: "História e história tenderiam para harmonizar-se numa síntese até exigirem, tornando-a "quase necessária", a intervenção da música".
Voltando às palavras de Lidia Bramani "A extraordinária coerência estrutural do Memorial do Convento permite compreender globalmente o pensamento do escritor. Mantendo um desenrolar de sequências, Saramago torna o tempo narrativo centrífugo, dissolvendo a rigidez deste a partir do interior. O tempo psicológico, individual e colectivo vence o da narração convencional graças a uma prosa moderníssima, barroca, opulenta, transbordante de rasgos de projecção, simultaneamente capazes de uma suavíssima essencialidade".
Foi assim no tempo de estreia de Blimunda em Itália. E foi também assim que José Saramago se fez Nobel: com uma estatura de excelência e humildade que ampliou, indelevelmente, o espaço da literatura e da cultura portuguesas no mundo.




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