Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 14 de abril de 2016

"Sobre a fotografia" publicado em os "Cadernos de Lanzarote Diário IV" (26/04/1996)



26 de Abril (de 1996)
"Sobre a fotografia: 
Não há nenhum motivo para sorrirmos ao ciclope, ao monstro de um só olho que é a câmara fotográfica. E, apesar disso, nunca estamos tão desarmados como diante duma objectiva. Ao princípio cremos poder enganá-la, ou porque fechámos o rosto e endurecemos o olhar, ou porque simulámos a expressão que a memória do espelho nos disse ser a mais favorável. Nesse momento começa uma luta entre a paciência do fotógrafo e a resistência de quem se lhe opõe. A paciência do fotógrafo é infinita, a resistência de quem está a ser fotografado acabará sempre por quebrar-se. Cada disparo do obturador atinge um ponto vital das defesas, aos poucos a muralha vai sendo derrubada, até que, por fim, as verdades que por trás dela se escondiam começam a aparecer, não ainda as verdades todas, mas uns quantos fragmentos delas, e também o medo do fotografado de que o processo continue até à exaustão de si mesmo. Em geral, não se chega tão longe. Piedoso, o fotógrafo pára no último instante, detém o fotografado quando ele já vai a cair no abismo, e tudo mais ou menos se recompõe. Mais ou menos. Mal refeito do susto, o fotografado suspira julgando-se livre, enquanto o fotógrafo se afasta a pensar nos bocadinhos de alma que leva dentro da caixa, como o pescador à linha vai contando os peixes que roubou ao cardume."
in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 123 e 124

Sem comentários:

Enviar um comentário