"Uma carta de Varese (Itália). Escreve-a Micaela Bottinelli. Tem 27 anos, é licenciada em Filosofia e frequentou ultimamente um curso de direcção cénica na Escola de Arte Dramática Paolo Grassi de Milão. Descreve-me em pormenor dois estudos-espectáculos que concebeu e que foram representados na escola, um com o título 7 soli e 7 lune, sobre Memorial do Convento, outro com o título INRI, sobre O Evangelho segundo Jesus Cristo. Envia-me quatro desenhos de cena, que tenho pena de não poder reproduzir aqui, mas que não resistirei à tentação de emoldurar... Micaela Bottinelli assistiu à estreia de A Morte de Lázaro, na Igreja de São Marcos, em Milão, e diz-me que vai tentar arranjar maneira de assistir aos ensaios de Divara, que no princípio do próximo ano se há-de representar em Catânia. Começo a pensar seriamente se não deveria suspendera escrituração destes Cadernos e passar a publicar as cartas que recebo (e que em grande parte os alimentam), cobrando os seus signatários, naturalmente, os direitos de autor respectivos... Um volume dedicado, todo ele, à safra epistolar originada pelo Evangelho, por exemplo, seria um êxito literário e editorial que deixaria na sombra o romance e o autor dele... Em meu entender, não haverá obras verdadeiramente completas enquanto estiver a faltar-lhes o contraponto das opiniões escritas dos leitores. Ninguém escreveu a Eça de Queiroz? Ninguém, por carta, disse a José Rodrigues Miguéis o que pensava da Escola do Paraíso? Ninguém, tendo-se deslumbra-do com o Húmus de Raul Brandão, escreveu a dizê-lo? Pedem-se investigadores, pedem-se editores. A ideia é boa, aproveitem-na. Ou terão os escritores um coração tão duro, que rasgam as cartas depois de as lerem?
in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 225 e 226 (26/09/1996)
Sem comentários:
Enviar um comentário