Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 14 de maio de 2016

Testemunho de uma carta recebida de Itália (Micaela Bottinelli) - "Cadernos de Lanzarote Diário IV" (26/09/1996)

26 de Setembro (de 1996)

"Uma carta de Varese (Itália). Escreve-a Micaela Bottinelli. Tem 27 anos, é licenciada em Filosofia e frequentou ultimamente um curso de direcção cénica na Escola de Arte Dramática Paolo Grassi de Milão. Descreve-me em pormenor dois estudos-espectáculos que concebeu e que foram representados na escola, um com o título 7 soli e 7 lune, sobre Memorial do Convento, outro com o título INRI, sobre O Evangelho segundo Jesus Cristo. Envia-me quatro desenhos de cena, que tenho pena de não poder reproduzir aqui, mas que não resistirei à tentação de emoldurar... Micaela Bottinelli assistiu à estreia de A Morte de Lázaro, na Igreja de São Marcos, em Milão, e diz-me que vai tentar arranjar maneira de assistir aos ensaios de Divara, que no princípio do próximo ano se há-de representar em Catânia. Começo a pensar seriamente se não deveria suspendera escrituração destes Cadernos e passar a publicar as cartas que recebo (e que em grande parte os alimentam), cobrando os seus signatários, naturalmente, os direitos de autor respectivos... Um volume dedicado, todo ele, à safra epistolar originada pelo Evangelho, por exemplo, seria um êxito literário e editorial que deixaria na sombra o romance e o autor dele... Em meu entender, não haverá obras verdadeiramente completas enquanto estiver a faltar-lhes o contraponto das opiniões escritas dos leitores. Ninguém escreveu a Eça de Queiroz? Ninguém, por carta, disse a José Rodrigues Miguéis o que pensava da Escola do Paraíso? Ninguém, tendo-se deslumbra-do com o Húmus de Raul Brandão, escreveu a dizê-lo? Pedem-se investigadores, pedem-se editores. A ideia é boa, aproveitem-na. Ou terão os escritores um coração tão duro, que rasgam as cartas depois de as lerem? 

in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 225 e 226 (26/09/1996)

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