Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 4 de junho de 2016

"Protopoema" de José Saramago - "Provavelmente Alegria"

Declamado por Frank Serrano Rodriguez, pode ser assistido via YouTube, aqui 

"Protopoema"

"Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos 
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto. 
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os 
dedos. 
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, 
e tem a macieza quente do lodo vivo. 
É um rio. 
Corre-me nas mãos, agora molhadas. 
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de 
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para 
mim fluem. 
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o 
próprio corpo do rio. 
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os 
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que 
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa 
dos olhos. 
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas 
águas como os apelos imprecisos da memória. 
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga. 
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e 
firme pulsar do coração. 
Agora o céu está mais perto e mudou de cor. 
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo 
acorda o canto das aves. 
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu 
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o 
esplendor maior que acende a superfície das águas. 
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas 
da memória e o vulto subitamente anunciado do 
futuro. 
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar 
calada sobre a proa rigorosa do barco. 
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que 
as aves digam nos ramos por que são altos os 
choupos e rumorosas as suas folhas. 
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, 
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas 
verticais circundam. 
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra 
viva. 
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se 
juntarem às mãos. 
Depois saberei tudo." 

José Saramago
in,  "Provavelmente Alegria" 
Caminho, 3.ª edição, páginas 54 e 55 - 1985

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