Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 7 de agosto de 2016

Crónica "Um regulamento a favor do fogo" em "As opiniões que o DL teve" (12 de Junho de 1972)

A presente crónica foi publicada faz 44 anos, escrita pelo punho de José Saramago. 
Enquando cronista na altura mostrava a sua preocupação e estranheza, hoje quando os rapazes da altura já são avós, recipero o carácter intemporal e a veracidade com que hoje nos deparamos nas consequências do desordenamento e falta de protecção da mancha florestal portuguesa. Isto obriga a uma preocupante reflexão - tal como ontem, hoje continuamos a ouvir falar de Oleiros e de povoações escondidas como Bogas de Baixo pelas piores razões. 
Rui Santos

"Um regulamento a favor do fogo" 12 de junho de 1972

"Com a chegada do verão, destes grandes calores que tornaram as matas e os pinhais inflamáveis como estopa, é certo e sabido que começam por esse país fora os incêndios. Devoram as encostas das serras, deixam-nas negras, despidas, terras de desolação onde, por muitos anos, se erguerão apenas os troncos queimados. Neste tempo se levantam inúmeras vozes a pedir proteção para o nosso património florestal, já de si tão escasso. A vulnerabilidade das nossas matas, se bem pensamos nela, é, a toda a hora, um convite à ruína total. Depois o tempo refresca, vem a chuva, adia-se a catástrofe para o ano. 
Na falta de um sistema de defesa eficiente, conta-se sempre com a dedicação e a ousadia das populações que, mal se ouve o sinal do fogo, correm montes e vales, gritando, ofegando, para irem atacar o incêndio, sem curarem de saber a quem pertencem as árvores que as chamas vão furiosamente destruindo. Acudir ao fogo é obrigação cívica a que ninguém foge, e não têm sido poucos os atos de grande coragem praticados nessas ocasiões, com total desinteresse, pois ninguém pensa em apresentar depois a fatura dos serviços prestados. Também não há veneras nem condecorações: estes episódios passam-se em serranias anónimas, longe das vistas da grande publicidade. 
Já os incêndios começaram a sua tarefa, e, lá para diante, não se passará um dia sem que o inferno lavre num ponto qualquer do País. E tudo será como de costume, e repetir-se-ão casos como este de que hoje falamos, acontecido numa povoação chamada Bogas de Baixo, próximo do Fundão. Ali, os sinos da igreja chamaram os habitantes ao combate. E foram todos, os novos e os velhos, as mulheres e as crianças. Fazia vento, e, como sempre acontece nessas circunstâncias, o fogo saltava do árvore em árvore, propagando-se pelas ramadas superiores, inutilizando os trabalhos no chão. Diante da ameaça cada vez maior, telefonou-se para povoações em redor e mais pessoas acorreram ao fogo, animando-se umas às outras, usando uma experiência já antiga, vinda de gerações. Por fim conseguiu-se travar o alastramento do incêndio. O desastre não foi total. 
E os bombeiros? Após algumas dificuldades de comunicação, e graças à intervenção de terceiras pessoas, foi possível chamar os da vila próxima. Também se recorreu aos serviços dos bombeiros de outra vila, a de Oleiros, mas o comandante destes disse que «não podia mandar deslocar os seus homens para concelho diferente, sem que o comandante dos bombeiros do concelho onde havia o sinistro os requisitasse». Segundo a fonte onde colhemos estas informações, o comandante de Oleiros mostrou-se «muito compreensivo», chegando a oferecer-se para um entendimento com o Fundão. Ficaram os combatentes Voluntários e paisanos à espera do que viesse, mas nada se conseguiu. Enquanto os pinheiros de Bogas de Cima ardiam, enquanto as gentes da terra se afadigavam a lutar por bens que só a poucos pertenciam, um artigo de regulamento impedia o auxílio que deveria poder ser dado por uma corporação de bombeiros, mas que não foi porque o concelho era outro... 
Estranhos casos se passam em Portugal! Muito mais estranhos ainda quando nos lembramos de que, durante a recente visita do presidente do Conselho a Castelo Branco, um dos mais brilhantes números dos festejos foi um longuíssimo desfile de bombeiros, com dezenas de viaturas. Vindos de muitos quilómetros e concelhos em redor... E não havia fogo." 

in, "Os Apontamentos"
Porto Editora, edição que compila 2 livros de crónicas
Páginas 54 e 55

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