Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 29 de outubro de 2016

Uma leitura de o "Ensaio sobre a Cegueira" do blogger Elenilson Nascimento (Brasil)

É sempre uma enorme satisfação poder divulgar o trabalho dos Saramaguianos espalhados pelo mundo, aqui deixo mais uma prova de uma opinião e análise sobre o "Ensaio sobre a Cegueira". 
E o Brasil sempre tão perto e acarinhando o legado de José Saramago.
Um enorme agradecimento ao Elenilson Nascimento!

A análise do blogger Elenilson Nascimento, aqui em 

"Minha resenha sobre o livro "Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago. "Talvez, ainda hoje, o preconceito com a obra de Saramago seja por causa do gesto de total lucidez, mesmo na loucura, a rejeição sumária a todo o sistema do mais do mesmo que ai está. Pode-se concordar ou não. A questão nos seus livros não é ideológica, mas literária. Uma curiosidade: ao longo de sua vida, Saramago resistira em ceder os direitos sobre seus livros para o cinema." Confira aqui: http://cabinecultural.com/2016/10/20/literatura-ensaio-sobre-a-cegueira-jose-saramago/ 
fonte: Cabine Cultural/UOL
#LiteraturaClandestina #Saramago"

“O autor português expressa os valores sociais que quer condenar como a crueldade, o egoísmo, a indiferença, o consumismo e a competição, que fazem com que os cegos estejam “sempre em guerra”, mas exalta os valores que pretende que prevaleçam como o respeito ao outro, a dignidade, a coragem, a solidariedade, e a convivência…”

Por Elenilson Nascimento

Sempre tive as minhas dificuldades com Saramago, autor português comunista que, quando vivo (*faleceu em 2010), era atuante, incentivador de cultura e voraz leitor, mas não pelo seu trabalho, afinal sempre achei eficaz as suas descrições do caráter humano, porém até hoje não gosto da maneira como ele organizava os seus textos: parágrafos gigantes, sem pontuação, sem travessões para separar os diálogos e afins. Contudo, a minha admiração com relação à sua vida foi bem maior do que as minhas limitações e preconceitos. Sim, eu tinha muitos preconceitos com relação ao que eu achava ser uma falta de cuidado com o texto, mas que, com o tempo, aceitei como sendo uma técnica de escrita bem particular do autor. Lembrando que se fosse eu que enviasse um livro assim para os editores brasileiros, na sua maioria excludentes e corporativistas, todos me reprovariam sem pensar duas vezes e ainda iriam me chamar de analfabeto. Pois bem…

“Ensaio Sobre a Cegueira” é um livro difícil para quem não está acostumado com o português de Portugal, além das barreiras já citadas, mas a história é fascinante e eu já tinha lido “História do Cerco de Lisboa”, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”, três livros maravilhosos da obra do autor. Aí abrir o “Ensaio…” em uma página qualquer e me deparei com a frase: “O medo cega… são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”. Pensei: “Tenho que comer logo este livro!”. Mesmo porque eu queria fazer algum tipo de comparação com o filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. E tudo começa quando um homem, a caminho do trabalho, dentro de um carro, parado em um sinal de trânsito, espera pacientemente o sinal ficar verde. Sua espera é interrompida por uma “nuvem branca” que cobre toda a sua visão. Este é o primeiro que fica cego. No meio do desespero, ele é levado para casa por um desconhecido que, aproveitando da sua incapacidade física, rouba o seu carro. Tudo indica ser um vírus desconhecido transmitido pelo ar, pois, mais tarde, a mulher deste primeiro cego se contamina; e Saramago começa a apresentar ao leitor os demais personagens: a rapariga de óculos escuros que quando fazia um programa se vê “dentro de um pote de leite”; o médico, oftalmologista para ser exato; a mulher do médico; o velho da venda preta; o farmacêutico que cantou a rapariga de óculos escuros na farmácia; o rapazinho estrábico, além do ladrão do carro do primeiro cego. E queria ressaltar também um personagem pouco citado e que só apareceu quase no final da história, mas que achei muito pertinente: o cão das lágrimas.

Jorge Amado e José Saramago na porta da Fundação Jorge Amado, 
Pelourinho, Salvador – BA: o português daria o Nobel ao brasileiro 
(foto: divulgação/Fundação José Saramago)

Engraçado como Saramago optou em não citar nomes, mas adjetivá-los. No decorrer da trama, a tal “cegueira branca” vai se espalhando pelo mundo inteiro, sem controle e sem nenhuma explicação, atingindo todas as pessoas, sem distinção de raça, idade, crença religiosa, opção sexual. Mas a única isenta de tal sofrimento é a mulher do médico – sem nenhuma explicação aparente por parte do autor, vale ressaltar. Diante da epidemia sem controle, o governo resolve colocar em quarentena todas as pessoas que ficaram cegas, sob condições subumanas. Uma vez lá dentro, não há nada o que fazer a não ser tentar sobreviver. Para isso, os protagonistas se unem e tentam sobreviver em um lugar onde pessoas mais se parecem com animais. “Mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos”, escreveu Saramago. Na camarata, como o autor chama a prisão, que na verdade é um velho sanatório, o ser humano se rebaixa ao nível de um animal irracional. Fazem suas necessidades em qualquer lugar, matam sem saber exatamente o motivo, estupram mulheres apenas pelo prazer de comandar alguém ou alguma coisa (*uma das cenas mais chocantes), comem a carne de seus amigos mortos… Enquanto isso, do lado de fora, cada vez mais pessoas vão ficando cegas. Os governadores, os presidentes, os funcionários públicos, os mendigos, os religiosos… todos. E o caos se forma no mundo!

Porém, num incêndio, sem explicações mais detalhadas, os cegos se vêem livres daquela prisão, descobrem que todo o mundo – isso mesmo, o mundo todo está cego. Não há mais quem enxergue nada, há não ser o “mar de leite”. “Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”. Fora da prisão, o desafio agora é sobreviver do lado de fora da quarentena. A mulher do médico, a única que pode ver e guiá-los, descreve as cenas aterradoras: corpos em estágio avançado de putrefação espalhados pela cidade em meio a fezes, ratos, lixo e pessoas vivas brigando pelos motivos mais diversos. A luta agora não é por um emprego, por dinheiro ou por sucesso, e sim por comida. “As ruas estão cheias de cegos que andam à cata de comida. Entram e saem das lojas, de mãos vazias entram, de mãos saem quase sempre, depois discutem entre eles (…) O lixo nas ruas, que parece ter-se duplicado desde ontem, os excrementos humanos, meio liquefeitos pela chuva violenta os de antes, pastosos, saturam de fedor a atmosfera, como uma névoa densa através da qual só com grande esforço é possível avançar”.

Impossível não se impactar com a cena. Não existe meio de transporte, telecomunicação ou qualquer coisa do tipo. Nem energia elétrica. As casas agora não são de ninguém, e sim de quem invadir primeiro. É o degrau mais baixo que um ser humano pode chegar. “A cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”. Quando enfim, o grupo consegue um abrigo na casa do primeiro cego, que já estava ocupada por um escritor, Saramago parece querer mostrar a vergonha dos seres humanos perante suas próprias imperfeições. A cena dos cegos tirando suas roupas sujas para tomar banho e mesmo cegos com vergonha de se despirem na frente uns dos outros ficou simplesmente perfeita. “Se quiserem, posso pôr cada um de vocês numa parte da casa”, respondeu ironicamente a mulher do médico. “A cegueira é a providência dos feios…”

Anotação enviada por Saramago aos amigos mais próximos, na tarde de 8 de agosto de 1995, anunciando que tinha acabado de escrever “Ensaio sobre a Cegueira”. 
(imagem: divulgação/Fundação José Saramago)

Saramago também brinca com a importância dos livros: “Agora ninguém os pode ler, portanto é como se não existissem…” O autor neste “Ensaio Sobre a Cegueira” nos faz refletir sobre nós mesmos. Sobre nossos medos, nossas vergonhas, nossas inseguranças, nossos preconceitos. Através de uma cegueira física, ele ilustra a cegueira da nossa própria alma. Como se os nossos corações estivessem como aquela cidade, como se estivéssemos nos transformando, cada vez mais rápido, a um estado social caótico. Mas o autor também sinaliza para uma solução: “Organizando-se, organizar-se já é, de certa maneira, começar a ter olhos” – exatamente como o grupo de protagonistas no livro. “O mundo está cheio de cegos vivos (…) Morremos de doenças, de acidentes, de acasos. Morreremos de cegueira e de cancro, de cegueira e de tuberculose, de cegueira e de sida (AIDS?), de cegueira e de enfarte… (…) O único milagre que podemos fazer será o de continuar a viver…”

Quase no final do livro, o médico e a sua mulher chegam numa igreja onde a mulher do médico diz que parecia ter alucinações, pois o homem pregado na cruz tinha uma venda branca nos olhos, além de todas as outras imagens de santos também tinham vendas nos olhos: um homem com um livro aberto com um menino pequeno sentado, um velho de barbas compridas com três chaves nas mãos, um homem com o corpo cravejado de flechas e todos os outros santos tinham os olhos tapados. Só havia uma mulher que não tinham os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata. “A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”.

O final do livro não vou contar aqui. Mas garanto é surpreendente. E como todo bom livro, “Ensaio Sobre a Cegueira” também deu origem à um roteiro cinematográfico, cujo diretor, como já foi citado, foi um brasileiro que pegou toda a essência do livro. Em suma, pegue o livro e depois veja o filme. Ou o oposto, pois esse é um dos melhores livros da minha estante e acredito que vai arrebatar qualquer um. “É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade”. Estou louco agora para pegar o “Ensaio Sobre a Lucidez”, que também começa com um evento insólito. Num dia eleitoral, a maioria da população sai de casa para abarrotar as urnas com votos em branco. O sistema político entra em colapso, mas dessa vez o que se segue não é uma queda na loucura e na bestialidade. Ao contrário em o “Ensaio Sobre a Cegueira”, as pessoas neste livro são tomadas uma inquebrantável sensatez, que lhes permite manter as engrenagens funcionando.

Talvez, ainda hoje, o preconceito com a obra de Saramago seja por causa do gesto de total lucidez, mesmo na loucura, a rejeição sumária a todo o sistema do mais do mesmo que ai está. Pode-se concordar ou não. A questão nos seus livros não é ideológica, mas literária. Uma curiosidade: ao longo de sua vida, Saramago resistira em ceder os direitos sobre seus livros para o cinema. No entanto, em 2008, com a adaptação do “Ensaio Sobre a Cegueira”, ele ficou tão feliz com o resultado que ficou muito emocionado na pré-estreia – procure no YouTube. O filme obteve mundialmente críticas mistas, dividindo opiniões. O escritor disse a Meirelles “estar tão feliz de ter visto o filme como estava quando acabou de escrever o livro”. Em outra declaração, Saramago disse que “agora conhecia a cara de suas personagens”. Em suma, Saramago escreveu uma obra maravilhosa, não foi à toa que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura por este livro. (“ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”, de José Saramago, romance, 310 págs, 19 edição, Cia. das Letras – 2001)

Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina


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