Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

"Ecos de um diálogo com José Saramago" de José Castello (O Globo, 18/06/2010)

O texto de José Castello pode ser recuperado, aqui
em http://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/ecos-de-um-dialogo-com-jose-saramago-301281.html

"Ecos de um diálogo com José Saramago" de José Castello (18/06/2010)

A tristeza com a morte de José Saramago me levou a procurar um velho caderno de entrevistas. Um "Ambarclas", de capa vermelha, que comprei em Madrid, onde fiz uma escala a caminho das ilhas Canárias. Nele anotei uma longa conversa que tive com José Saramago, em agosto de 1996, na Ilha de Lanzarote. Agora, catorze anos depois, eu a releio, com a limitação inevitável imposta pelos meus garranchos de repórter. E também pelas vacilações de minha memória.
Sei porque anotei: foram quatro encontros _ na tarde da sexta-feira, 23 de agosto, na manhã do sábado, 24, na tarde do mesmo sábado e, por fim, na manhã do domingo 25. Doze ou treze horas de diálogo intenso, a que Saramago se dedicou com paciência e simpatia. Quando cheguei a Lanzarote, já era um leitor entusiasmado de suas ficções. Lá descobri, sob a imagem do escritor severo e reservado, um homem sensível e inquieto, que nunca perdia a chance de se corrigir, de se criticar e se modificar. Por isso mesmo, não sei se ontem, horas antes de morrer, ele ainda defenderia todas essas ideias. O leitor deve saboreá-las sem perder de vista essa ressalva.  
Viajei a Lanzarote como repórter de O Estado de S. Paulo. Meus encontros com Saramago tiveram um padrinho: o jornalista e querido amigo Evaldo Mocarzel, que editou durante vários anos, com grande brilho, o "Caderno 2" do Estadão. Não posso rememorar a entrevista sem deixar registrada minha imensa gratidão ao jornal _ que tinha na época, como editor-chefe, outro amigo, Aluísio Maranhão _ e a Evaldo. Foi um presente inesquecível que eles me deram.
Em nosso diálogo _ publicado, dias depois, na série "Encontros Notáveis", criada por Evaldo, e retrabalhado, anos mais tarde, em um capítulo de Inventário das sombras, livro que lancei em 1999 _ Saramago me ofereceu preciosas confissões não só a respeito de sua relação com a literatura, mas das sutilezas e segredos de sua vida interior. Exibiu, sem poses, mas também sem disfarces, os alicerces de sua densa visão de mundo.
Poucos narradores do século 20 souberam fazer da literatura um instrumento tão agudo e competente de pensamento. Isso sem abdicar da força do estilo e de uma sensibilidade absolutamente singular. Muitos clichês, ainda hoje, e infelizmente, encobrem a imagem de Saramago e de seus escritos. Preconceitos políticos, religiosos e morais, todos inaceitáveis, impedem um reconhecimento ainda maior, e mais justo, de sua fabulosa ficção.
Eis algumas das ideias que José Saramago me ofereceu. Posso ouvir, ainda, sua voz débil e tímida, mas nem por isso menos vigorosa. Posso ver, com espantosa clareza, sua imagem de homem simples, sem poses, até arredio, mas absolutamente dono de si. Hoje à tarde, li a emocionada mensagem que seu editor brasileiro, Luiz Schwarcz, postou no blog de sua editora (http://www.blogdacompanhia.com.br). O retrato mais pessoal e impecável de Saramago está ali _ até porque um laço de afeto muito profundo os uniu. Detenho-me aqui, apenas, em algumas das ideias que Saramago teve a gentileza de dividir comigo. E que, catorze anos depois, se revelam ainda mais perturbadoras. 

Imaginação: 
"Não creio que a imaginação seja perigosa. Não creio nisso. Mas é certo que, em meus romances, prevalece a razão. Para mim, a imaginação deve estar a serviço da razão. O que não me impede de ter uma imaginação forte, e de trabalhá-la intensamente em meus livros. A imaginação, para mim, é sempre o ponto de partida. Mas o caminho que tomo a partir dela pertence, sempre, à razão".

Sensibilidade: 
"Pode não parecer, mas sou um homem muito sensível aos sentimentos e às emoções. Quem me olha, vê um sujeito de aparência fechada e severa. Alguns a confundem com indiferença, ou talvez com arrogância. Mas a verdade é que sou um homem muito sensível. Talvez sensível demais". 

Tristeza: 
"A tristeza no mundo de hoje é causada pelo irracionalismo e pelos fanatismos. Mas a tristeza é, também, compaixão. No fundo, somos uns pobres diabos. É a compaixão que nos leva a interrogar: _ Por que não podemos ser de outra maneira? Por que não conseguimos ser melhor do que somos? Por que não conseguimos ser bons?" 

Religião: 
"O fenômeno religioso sempre me interessou muito, o que pode parecer estranho, porque sou um homem totalmente indiferente à inquietação religiosa. Mas, como a religião é um fenômeno histórico, ela nunca deixou de me interessar. Por isso me interesso pelo cristianismo. Não sou um crente, mas é verdade que tenho _ todos temos _ uma mentalidade cristã, e não islâmica, ou budista. Às vezes me contestam: "Se você não é crente, não tem o direito de falar sobre a religião". Tenho sim, e por dois motivos. Primeiro, porque tenho o direito de falar sobre o que não quero, o que não aceito. Segundo: porque tenho o direito de falar sobre algo que, ainda assim, faz de mim, um pouco, o homem que sou". 

Repugnâncias: 
"Creio que não tenho medos, apenas repugnâncias. A aranhas, por exemplo _ e, felizmente, quase não temos aranhas em Lanzarote. Lembro-me que, quando menino, apreciava andar com lagartixas nas mãos, e elas não me davam repugnância. Mas as aranhas, sim. E os ratos, também. As baratas, então, são nojentas". 

Discrição: 
"O que acontece é que nunca dramatizei minha vida, nunca fiz dela algo de existencialmente interessante, ou dramático. Vivi, sempre, discretamente, e com toda a naturalidade. A partir dos cinquenta anos, comecei a escrever alguns livros. Foi só isso. A vida é o que é, tem coisas boas e tem coisas más, e devemos aceitar isso, e viver com isso. Só escolhemos 5% do que nos acontece na vida. Os outros 95% são decididos por outras pessoas, ou pelo acaso. De nada serve dramatizar". 

Afinidades: 
"Sempre se diz que, a partir de certa idade, a gente relê mais do que lê, e é verdade. Ultimamente, me interesso mais em reler _ o Padre Vieira, Fernão Lopes, Almeida Garret. E, é evidente, o Eça. Releio, também, o Oliveira Martins e o Camilo. Afinidades, porém, é difícil. Não creio que existam afinidades bilaterais, mas sim afinidades múltiplas, fragmentadas. Se busco minha ascendência literária, sou franco: não a encontro. Não encontro relação direta entre o que eu faço e o que os outros fizeram. Existem ecos, só isso. Veja o caso do Vieira: ele viveu no século 17, e não no século 20. Escreveu sermões, e não romances. Mas tenho uma imensa admiração por ele e sempre que o leio percebo alguns ecos em mim". 

Barroco: 
"Dizem que sou um escritor barroco. Posso reconhecer que sim. Esse tipo de frase envolvente, quase interminável, que faz rodeios, volta atrás, se isso tem algo a ver com o barroco, aceito, então, que sou barroco. Mas é, também, muito perigoso reduzir um estilo, uma forma de escrever a uma etiqueta. Isso não é nada bom. Quando usamos etiquetas para falar das coisas, parece que fica tudo dito, mas o principal está sempre de fora". 

Comunismo: 
"Continuo a ser comunista e não vejo nenhum motivo para deixar de ser. Fala-se, muito, dos grandes erros do passado e também do presente. Ser comunista não me impede de observar os erros do passado, do presente, e mesmo do futuro com um olhar crítico. Esquece-se que o olhar crítico está na base do marxismo. A URSS desmoronou, provavelmente, por falta deste olhar crítico. E também por falta da participação dos cidadãos". 

Álvaro Cunhal: 
"Álvaro Cunhal está vivo (presidente do Partido Comunista Português, viria a falecer em 2005). Tenho uma relação de imenso respeito com ele, tanto como pessoa, quanto como dirigente comunista. Nos últimos anos, a adaptação do partido aos novos tempos foi conduzida, basicamente, por Cunhal. É um homem, porém, que veio da clandestinidade, de lutas muito dolorosas, e isso deixa marcas profundas nas pessoas. Daí a vê-lo como um homem petrificado vai muito longe. É, além disso, um bom escritor, autor de três romances, que publicou sob o pseudônimo de Manuel Trigo. Como escritor, está marcado pelo realismo clássico, de cunho socialista. Dentro de seu estilo, é um escritor que leio com satisfação". 

Romance histórico: 
"A história que nós aprendemos na escola é, até certo modo, a visão oficial da história. O mal é quando essa versão se institui como versão única. Daí que, quase sempre, temos uma visão incompleta e deformada da história de nosso país. O historiador que não quiser se contentar em repetir o que já foi dito terá que investigar o não-dito e, sobretudo, o oculto. O ficcionista que se interessa por temas históricos tem, então, um papel muito importante nessa busca do não-dito e do oculto. Claro que não devemos alimentar ilusões, a verdade histórica, completa, não se saberá nunca". 

Literatura: 
"A literatura tanto pode ordenar o mundo, como desordená-lo. Há momentos em que sua função é desordenar _ em nome de uma causa, para questionar uma norma social, ou falsamente moral, sobre a qual a sociedade se instala. Mas é função da literatura, também, ordenar o mundo, procurar um sentido para a existência. Sentido que não pode ser único, estável, mas deve ser, ao contrário, constantemente posto em causa e questionado. Procuramos sempre um sentido que acolha o caos aparente que é a vida. Procuramos uma certa ordem em relação à qual possamos nos situar. Eu creio que o escritor, com a sua obra, participa dessa busca de sentido". 

Limites: 
"Não quero dar lições ao mundo. Todas as reflexões que faço são sobre mim mesmo. Há que ter consciência de nossos limites. Nossos limites nos definem. Somos nossos limites. É importante evitar tentações que estão fora de nosso alcance. Eu sei que, em literatura, há coisas que não devo fazer, porque estão além de meus limites. Conhecendo meus limites, o que tento fazer é aprofundar meu trabalho dentro deles. Eu não posso aspirar a um trabalho que se aproxime do ensaísmo, não posso porque não tenho condições. Escrevi alguns poemas, que valem o que valem, mas sei que não posso ir além deles, e por isso renunciei à poesia. O importante é a gente se acostumar a ser o que é. E não mais que isso". 

Mal: 
"Não creio que tenha uma obsessão pelo Mal. Francamente, não sei se devo falar em obsessão. Mas, se há algo que não compreendo e que me ultrapassa, é a existência do Mal. Não falo do Mal do ponto de vista religioso, mas como uma espécie de fatalidade que encontramos em nossa espécie. A pergunta que mais me persegue é: por que sendo nós, seres de razão, nos comportamos irracionalmente? E, para essa pergunta, não vejo resposta. É uma coisa realmente impressionante chegar à conclusão de que o único ser verdadeiramente cruel é o ser humano. Nenhum animal, mesmo entre os mais ferozes, se comporta com tanta crueldade. O animal não é cruel, pois a crueldade é uma categoria mental. Mas o ser humano é cruel". 

Portugal: 
"A sensibilidade portuguesa é um pouco apática. Somos facilmente sentimentais, o que não significa que sejamos capazes de grandes sentimentos. Caímos mais no sentimentalismo, que é o contrário do grande sentimento _ que não exalta, mas faz acreditar e nos leva a realizar. A principal 
característica portuguesa é o sentimentalismo, como se tivéssemos a lágrima fácil". 

Para mais informação sobre o escritor e jornalista José Castello
"Sobre o blog
A literatura como um instrumento de interpretação do mundo. Em um século de superfícies e de luzes, a aposta na profundidade e na introspecção. Em um século que joga todas as cartas no pragmatismo e na objetividade, a opção pelo íntimo e pelo subjetivo. A literatura como reduto do particular
Sobre o autor
José Castello é escritor e jornalista. Autor, entre outros, de “Ribamar”, Jabuti de “romance do ano” em 2011, “Vinicius: o poeta da paixão” (Jabuti de “ensaio do ano” em 1995) e “A literatura na poltrona. É Mestre em Comunicação pela UFRJ"

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