Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

"Sobre a ignorância" de Monica de Bolle, publicada na revista "Epoca"

A crónica de Monica de Bolle, pode ser consultada e recuperada aqui
em https://epoca.globo.com/monica-de-bolle/sobre-ignorancia-22983986

"Sobre a ignorância"
"Deveríamos almejar não chegar ao fim da campanha presidencial da mesma forma como nela entramos: cheios de interrogações e assoberbados por mistérios inacessíveis
Volto a escrever neste espaço após três semanas de férias no calor escorchante da Península Ibérica. Para fugir da canícula e do excesso de turistas em Lisboa, passei algumas horas na Fundação Saramago deleitando-me com artigos e áudios, frases e reflexões do escritor. Não surpreendentemente, encontrei o melhor resumo da atualidade: “A ignorância é a mãe de todas as polêmicas”. A frase deveria servir como referência não só para os candidatos que pretendem apresentar propostas concretas para resolver os problemas econômicos do país, como também para todos os responsáveis por entrevistá-los e moderar os debates que teremos pela frente.

Durante as férias, pouco acompanhei as entrevistas, sabatinas e os debates de presidenciáveis. A impressão que tenho de tudo que vi desde que voltei é que polêmicas e ruídos continuam abundantes, enquanto o conteúdo é quase nulo, em parte porque muitos candidatos não demonstram interesse em esmiuçar suas propostas, em parte porque o formato das entrevistas e dos debates não permite que o façam. O primeiro debate entre os presidenciáveis, com tantos a se apresentar e falar, nada esclareceu. O resultado da cacofonia foi a citação de entidade fictícia por um candidato cujas chances de se eleger são nulas. A “Ursal” muita polêmica gerou nas redes sociais, muito barulho por nada, embora, como toda polêmica, há quem ainda acredite em sua existência. As sabatinas conduzidas por grandes emissoras de rádio e TV tampouco foram informativas. Na maior parte dos casos, a numerosa bancada de entrevistadores — ainda que formada por excelentes jornalistas — criou profusão de oportunidades para ruídos, pegadinhas e tentativas de esquivar-se de temas espinhosos.

Temos poucos meses para elucidar assuntos básicos e outros nem tão básicos. Temas como a necessidade de fazer a reforma da Previdência, as dúvidas ponderáveis sobre a sustentabilidade do atual teto para os gastos públicos, as propostas para retomar o processo de redução da desigualdade, medidas para aumentar a produtividade e reduzir o desemprego, entre tantos outros assuntos urgentes, precisam ser discutidos para que as pessoas entendam o que significam e como cada candidato pretende resolvê-los. No entanto, do que se viu até o momento,

o risco é que o povo continue ignorante, a ignorância dando espaço para polêmicas inúteis e para a perpetuação do espírito maniqueísta e tribal que assola o país.

Voltando a Saramago, é importante lembrar que ignorância não é sinônimo de simplicidade, humildade ou modéstia. Em 1978, escreveu o escritor português uma de suas mais belas crônicas, intitulada “Carta para Josefa, minha avó”. “Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Criaste pessoas e gado (...). Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião.” A perplexidade do escritor se desvela nas palavras finais, em que revela não entender como pessoa tão humilde e simples, tão aparentemente distante dos problemas do mundo, possa por ele ter tanto interesse ao revelar, aos 90 anos, a pena que sente em morrer. A simplicidade das palavras escolhidas por Saramago para escrever para sua avó, que talvez não o entendesse caso o vocabulário fosse mais rebuscado, é outra lição para candidatos, jornalistas, formadores de opinião, todos aqueles, enfim, que querem que os eleitores entendam o que está em jogo. Não é a sociedade, mas sim o povo que terá de decidir o que quer. Não é déficit fiscal, mas quanto o governo gasta acima do que arrecada com impostos. Não é ajuste fiscal, mas arrecadar mais do que se gasta por meio da redução das despesas do governo. Para que isso seja possível, o governo não pode mais dar benefícios a quem não precisa nem pagar aposentadorias generosas para aqueles que têm recursos para se sustentar — por isso a reforma da Previdência. Citar enxurrada de números mais confunde e desinteressa do que elucida.

Parafraseando Saramago, deveríamos almejar não chegar ao fim da campanha presidencial da mesma forma como nela entramos: cheios de interrogações e assoberbados por mistérios inacessíveis. A ignorância não pode ser soberana.

Monica de Bolle * Diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University

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