Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 7 de abril de 2020

"Saramago: a personagem como mestre" do Professor Carlos Reis publicado no seu blog "Figuras da Ficção" (04/04/2020)

O presente trabalho pode ser consultado e acompanhado aqui

"Saramago: a personagem como mestre" do Professor Carlos Reis 
publicado no seu blog "Figuras da Ficção" (04/04/2020)

"O “material socialmente tido por histórico” a que alude o narrador d’A viagem do elefante projeta-se sobretudo em personagens – e José Saramago, com licença pela banalidade da afirmação, foi um grande criador de personagens. Menos evidente, mas também irrefutável: no universo ficcional saramaguiano convivem personagens de natureza, de configuração e de condição muito diversas. Na multidão de figuras que povoam aquele universo distingo, então, figuras provindas da História, outras com origem mítico-bíblica, personagens sem referência extraficcional conhecida (ou nativas na ficção), animais diversos (sobretudo cães) e mesmo, pelo menos, uma personagem alegórica stricto sensu (a morte n’As intermitências da morte).

Foto: Pedro Soares

Inevitavelmente, José Saramago problematizou a personagem, a sua génese e a sua relação com o romancista que as criou e com alguns dos narradores que falam delas. Primeira abordagem: a personagem sai da cabeça do escritor: “Nenhuma personagem minha é inspirada por pessoas reais. Em caso nenhum” (C. Reis, Diálogos com José Saramago, p. 137). A firmeza da asserção dá que pensar, sobretudo quando temos presente a longa tradição de construção mimética da personagem, em especial no romance de costumes oitocentista e numa subcategoria – presente na ficção de Saramago, para que conste – a que chamamos tipo social. O vigor daquelas palavras obriga o escritor a recuar: afinal, há personagens com origem na vida real (Marcenda foi vista num restaurante, confessa Saramago; cf. Diálogos com José Saramago, p. 138) e outras (D. João V, por exemplo) vêm da História.

Outra coisa e mais pertinente, a meu ver, é atribuir à personagem uma dinâmica própria: “As minhas personagens nascem em cada momento, são impelidas pela necessidade e não são cópias, não são versões” (Diálogos com José Saramago, p. 138), declara José Saramago. Daqui à questão da autonomia e da sobrevida da personagem vai uma linha que não é reta, mas que lá conduz. Uma etapa desse trajeto cumpre-se na História do cerco de Lisboa, quando Maria Sara questiona Raimundo Silva acerca das “pessoas de livro” que o revisor de imprensa está a compor, sem saber ainda se elas são personagens, na plena aceção do termo: “Quem é esta Ouroana, este Mogueime quem é, estavam os nomes, e pouco mais, como sabíamos. Raimundo Silva deu dois passos breves na direção da mesa, parou, Ainda não sei bem, disse, e calou-se, afinal deveria ter adivinhado, as primeiras palavras de Maria Sara teriam de ser para indagar quem eles eram, estes, aqueles, outros quaisquer, em suma, nós. Maria Sara pareceu contentar-se com a resposta, tinha experiência suficiente de leitora para saber que o autor só conhece das personagens o que elas foram, mesmo assim não tudo, e pouquíssimo do que virão a ser (História do cerco de Lisboa, ed. Caminho, pp. 263-264).

Não é, evidentemente, de José Saramago a voz que aqui escutamos, nem mesmo a do narrador por ele instituído. E contudo, do diálogo entre o escritor incipiente e em aprendizagem (Raimundo Silva, claro) e a sua leitora de circunstância emerge um princípio de doutrina: o escritor não sabe tudo sobre as suas personagens e o futuro que elas hão de viver é incerto. Um futuro que se desenrola dentro e fora da ficção (ou durante e depois dela, se se preferir), porque a personagem pode sobreviver ao ficcionista, de modo às vezes bem singular.

Curiosamente, colocando-se perante esta questão, José Saramago resiste, mas depois transige. Resiste a aceitar a autonomia da personagem, mas acaba por reconhecer a sua capacidade de autodeterminação. De forma mais explícita: por um lado, “as personagens não são autónomas” (Diálogos com José Saramago, p. 140), mas por outro lado reconhece-se o dinamismo das figuras que interagem com a história e com quem a rege: “É a história que necessita que aquela personagem se determine desta ou daquela forma” (ibid. p. 140). Se Maria Sara estava certa, ao “saber que o autor só conhece das personagens o que elas foram”, então posso bem dizer que as conclusões a que chegou dão razão ao título de um dos discursos de Estocolmo: “De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz.”

(Extrato de “José Saramago e a poética da narrativa: uma ordem por decifrar”, in Teresa Cerdeira  et alii (org.), E agora, José(s)? José Saramago e José Cardoso Pires 20 anos depois. Belo Horizonte: Moinhos, 2019, pp. 20-22)."


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