Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Adelino Gomes entrevistou Pilar del Rio - "Os livros de Saramago transformaram-me a vida" - 16/07/2001


A entrevista ainda se encontra disponível, para leitura neste link (jornal Público),
em, http://www.publico.pt/noticias/jornal/os-livros-de-saramago-transformaramme-a-vida-159896

Uma Voz própria e independente...

"O ano da morte de Ricardo Reis" trouxe-a a Lisboa, para fazer o percurso do romance. Tinha 36 anos. Passados dois anos, Pilar del Rio casava-se com o autor, José Saramago, então a rondar os 66. Hoje, é sua tradutora para espanhol - trabalho que faz quase em simultâneo com o acto de criação do escritor. Mas assume-se como jornalista, acima de tudo. Tem um estúdio em casa, donde entra no "ar" com as suas colaborações radiofónicas. Faz entrevistas - uma das últimas foi ao escritor mexicano Carlos Fuentes; antes desta, ao subcomandante Marcos; uma das próximas queria que fosse a António Guterres - para o suplemento dominical "El Semanal", inserido em mais de 40 jornais espanhóis e que atinge, no seu conjunto, uma tiragem superior a um milhão e meio de exemplares. Manteve uma rubrica de intervenção cívica, durante dois anos, na rádio andaluza . Pôs-lhe o nome de "Blimunda não se rende". Como Saramago, afirma-se comunista, ainda que sem cartão. Despreza os programadores da televisão que se está a fazer cá e em Espanha. Acha que um livro, mais ainda do que a Capela Sistina, é a expressão acabada do espírito humano. A ministra da Cultura da Região Autónoma da Andaluzia gostava de a ter como Comissária do Livro e da Leitura. Excertos de uma conversa que se prolongou por três dias e decorreu no salão de entrada de um hotel, numa viagem à Azinhaga, terra natal do marido, e à mesa de improvisada esplanada da Feira do Livro de Lisboa, enquanto o Prémio Nobel, ali a dois passos, multiplicava autógrafos por longas filas de indefectíveis leitores. 

P - Em que medida o prémio Nobel ajuda ou prejudica Pilar jornalista?
R - Pode parecer mentira, mas nem me ajuda nem me prejudica. Trabalho onde e como trabalhava antes.

P - Não recebe mais propostas?
R - Não. Já antes do Nobel trabalhava com Mara Malibran, a directora de "El Semanal". Também trabalho como comentadora na Cadena Ser e no Canal Sur. Tenho um estúdio em casa. A única novidade é ser colunista quinzenal do grupo Progressa, do "El País" (18 jornais). Comecei este ano. De resto, sou jornalista como era jornalista. Iniciei-me na Rádio Nacional (informação política e cultural) e em 1982, após o triunfo do PSOE, fui convidada a ir para a TVE, onde me encarreguei da programação na Andaluzia. Fui apresentadora, durante vários anos, de um telejornal.

P - Como foi a experiência televisiva?
R - Gosto mais da Rádio.

P - Porquê?
R - É mais imediata, mais directa, mais limpa.

P - O que quer dizer mais limpa?
R - Na televisão, mesmo quando se dão as horas a mensagem já está manipulada. Pela maquilhagem, pela iluminação, pelo cenário, pode converter-se a inocente mensagem das horas em algo magnífico ou triste.

P - Se formos por aí, também a voz é manipuladora porque ela sozinha seduz ou afasta, desperta a imaginação. Para não falar das vozes através das quais não passa nada...
R - Sim, há vozes e vozes. Mas na televisão há, para além disso, a intenção de uma série de pessoas - realizador, iluminador, etc. São demasiadas manipulações para uma mensagem tão simples como dizer que horas são. Saí da TVE em 86, dizendo que nunca mais voltava à televisão, nem para participar num programa como convidada. Só quebrei a promessa uma vez, por circunstâncias muito especiais. Mas nunca mais quero entrar num estúdio de televisão.

P - Houve alguma experiência concreta que a levou a tomar essa decisão?
R - Decidi sair da TVE por razões que tiveram a ver com um acto de censura. Mas a minha posição sobre a televisão é mais geral e tem a ver com o do estádio de imoralidade em que ela entrou. E com a complacência dos jornalistas que a fazem.

P - Complacência com quem ?
R - Com a direcção económica que é também a direcção ética. Não podemos dizer que é a publicidade ou os espectadores que pedem uma programação tão reles. Os jornalistas também são culpados. Nunca vi nenhuma greve de jornalistas exigindo a melhoria dos conteúdos, exigindo a dignificação desses programas. Pelo contrário, nos telejornais os jornalistas são servis e dóceis com o poder político do momento, e nos programas de entretenimento são canalhas. 

P - Isso aplica-se só a Espanha, ou também a Portugal?
R - E também à Itália, a França. Mas Espanha e Portugal estão-nos mais próximos. A programação é patética, dá vergonha. E porquê? Porque os senhores programadores não têm inteligência para propor coisas melhores. Sexo e violência asseguram-lhe um público fácil. Não têm capacidade e cultura para ir mais longe. O mesmo nas televisões públicas. 

P - Tem estado a pôr os jornalistas da rádio e dos jornais de fora das suas críticas. Mas peguemos num exemplo: em Espanha, um fenómeno televisivo como o "Big Brother" merece chamadas consecutivas de primeira página em jornais de referência como o "El País".
R - Primeiro: os jornalistas da televisão não cumprem o seu dever. Segundo: alguns jornalistas dos outros media também não. Terceiro: o mau cheiro alastra e acaba por atingir tudo. A discussão da chamada de primeira página está instalada na redacção do "El País". A mim parece incrível que se faça este tipo de programa. Por mim, nunca o vi, nem um só segundo.

P - Isso é partir logo do princípio de que nem vale a pena ver, ao menos para criticar. Onde está a moral de quem critica se nem sequer conhece?
R - Por amor de Deus! Não oiço falar de outra coisa. Eu não participo como público nesse espectáculo. Não me interessa. Mas vou mais longe: se os programadores das televisões de Espanha e de Portugal são seres que não têm imaginação nem cultura e que programam mais baixo e mais rasteiro do que os programadores dos outros países, a verdade é que alguém conseguiu fundir os dois países neste lodaçal. Dantes os níveis de qualidade não eram estes. 

P - Os públicos, que são quem faz as audiências , colocam esses programas nos primeiros lugares.
R - Dou um exemplo apenas, e recente: em 1988, quando a televisão estreou uma série baseada no livro de Torrente Ballester "O Prazer e a Sombra", foi um acontecimento, como se se tratasse de um jogo de futebol.

P - O mundo mudou muito, depois disso.
R - Alguém o fez mudar...

P - ... se calhar foram a escola, a família, antes da televisão.
R - Estou absolutamente convencida de que houve um objectivo muito claro, muito bem trabalhado por parte de alguém, que aliás também controla a escola, mas que em primeiro lugar controla os media, para ter cidadãos alucinados.

P - Essa não é uma visão demasiado conspirativa da história?
R - Eu vi-o. Estava na direcção da TVE.

O seu nome ficou escrito na antiga Rua da Estação, que passa frente à junta de freguesia e à Biblioteca José Saramago e que se cruza com a rua que em 1987. recebeu o nome do escritor. 
A placa, de azulejos, com orla em tons de amarelo, exibe o nome de Pilar del Rio, seguido da citação constante no livro Pequenas Memórias: 
«A Pilar que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar». 
Pilar, que recebeu uma réplica da placa toponímica, desejou que «todos os enamorados do Mundo se encontrem e dêem um beijo nesta esquina».


P - Viu o quê, exactamente?
R - Vi como a exigência e o nível iam baixando dia após dia. Ouvi dizer: 'temos que fazer uns programas mais ligeiros para que os espanhóis vão para a cama descansados, para mais gente ficar satisfeita. Basta de chatices e de solidariedades'. Vi como dia a dia se iam pondo filmes mais reles.

P - Se havia uma central dessas, que objectivos pretendia atingir?
R - Eu não disse que há uma central. Digo que houve um objectivo político aqui e em Espanha porque uma população embrutecida é mais facilmente dominável. Uma população cujo objectivo maior é ver o "Gran Hermano" é uma população que não pensa. 

P - Não foram nem os portugueses nem os espanhóis quem inventou esses formatos, que vieram de um país tão civilizado como a Holanda. 
R - Por que é que não se copiam certas formas de estar na vida dos países nórdicos e só se vão lá buscar os "Big Brothers"? Na Holanda há outras coisas, para além do "Big Brother". Aqui há o "Big Brother", ponto final.

P - Se a escola criar o gosto pela leitura, ou simplesmente o gosto, os que dela saiem irão engrossar o grupo de que a Pilar faz parte.
R - A escola também é culpada, claro. Mas em primeiro lugar ler não é obrigatório. E depois, dá trabalho. Lembra-me quando o primeiro ministro Cavaco Silva perguntou à mulher: 'como se chamava aquele livro do Saramago que tentei ler e não consegui?' O "Big Brother" não dá trabalho. Basta uma pessoa sentar-se com umas pipocas.
P - É fácil criticar os directores que optaram por este tipo de programação de sucesso. Onde estão os outros, capazes de traçar e manter uma programação que concilie a qualidade com as audiências?
R - Pergunte-o aos de agora, que sabem com que artes os esmagaram, expulsaram, assassinaram civilmente.

P - Bom, a verdade é que os portugueses e julgo que os espanhóis das diferentes literacias e estatutos socio-económicos continuam a preferir as tais programações e a nem sequer olhar para as RTP 2 que lhes são oferecidas...
R - O truque é simples: prepara-se a estrumeira, empurram-se as pessoas e logo dizemos que só lhes agrada a merda. É mesquinho, barato, mas funciona. 

P - Nas outras áreas - artes, literatura - o panorama em Portugal e Espanha é também assim desolador?
R - Há uma vida cultural rica, mas desgraçadamente os meios de comunicação não aparecem lá. Quando uma pessoa viaja e vê tantas actividades em tanto lado, é impressionante como nada disso passa para a comunicação social.

P - Mais devagar: em Portugal há um programa de televisão como o "Acontece", caso raro no mundo; temos jornais como o DN, o PÚBLICO, com várias páginas dedicadas à cultura...
R - ... não, perdão, não. Várias? Uns dias mais outros dias menos, poucas..

P - Muitíssimo mais do que há 30 anos.
R - Não faltava mais nada. Não vamos agora pôr a ditadura como referência, está bem? Há umas páginas entaladas junto do Desporto no final. E a maior parte da Cultura é espectáculo. O que é que se passa nos museus portugueses? Quantos estão fechados? Porquê estão fechados? Dedicam duas páginas ao espectáculo de Madona em Barcelona...

P - O "El País", que fez isso, é o mesmo, insisto, que todo os dias dedica várias páginas à Cultura.
R - Sempre menos do que à Economia. Quem é que disse que a Economia é mais importante que a Cultura? Não, não. Dá poucas páginas à Cultura e até à Política. Aliás, não há Política nos jornais, há fofoquice. Quem procura retratar a que se passa mesmo, o que se joga hoje nos partidos políticos? Quem descreve as lutas pelo poder? O que se passa na preparação das listas para as autárquicas?

P - O meu jornal tem vindo a dar páginas e páginas sobre isso.
R - Não. Tem vindo a apresentar candidatos. A nossa função não e reproduzir o que eles querem. É a de dizermos o que eles nunca quereriam que nós disséssemos.

P - Está portanto desiludida? 
R - Fui jornalista no tempo da ditadura e tinha muitas esperanças na democracia. Nos primeiros tempos da democracia fomos cúmplices, em Espanha, com a classe política, porque tínhamos que fazer a transição. Mas houve um momento em que eu pensei que não iríamos contentarmo-nos em ser fiscalizadores. Que devíamos tentar ver por detrás. Mas não conseguimos. Pior: a nova geração não tem qualquer interesse nisso. Estamos a fazer um jornalismo de conferência de imprensa. Sem qualquer interesse.

P - Exerceu a profissão nos dois países. O jornalista espanhol é mais engajado do que o português, não é verdade?
R - Não estou de acordo. Há gerações. A mais nova tem ousadia, mas ao mesmo tempo também muita indiferença. E há essa história absurda da independência. Dizem que o jornalista deve ser independente!...

P - Não acha que deve? 
R - Por amor de Deus!

P - Deve ser então dependente?
R - Temos é que ser honestos. Quando se fala em jornalista independente está-se a dizer independente dos partidos de esquerda. Independente de quê? O jornalista depende do banco, do patrão, da ideologia, da educação, da cultura, da forma como vê o mundo.

P - Já são tantas dependências, e ainda lhes quer acrescentar a de um cartão que a liga e faz depender de um partido?
R - Eu não pertenço a nenhum partido. Sou dependente da minha cabeça. Nunca fui correia de transmissão de nenhum partido político.

P - Então estamos de acordo. Porquê criar uma dependência partidária?
R - Mas ser de esquerda e assumi-lo não me impede de criticar a esquerda. Pelo contrário. Se vir um erro, uma corrupção, uma mentira, criticá-la-ei com mais razão ainda. Sou mais exigente com os meus do que com os outros. 
P - É comunista?
R - Sou comunista ideológica e emocionalmente, mas nunca se pôs a questão de ser militante.



P - Nunca foi convidada?
R - Sim, mas fui deixando passar. E por mais de um partido de esquerda.
P - Incluindo o PSOE?
R - Sim, naquela época [de Franco].

P - Li algures que a Pilar, sevilhana, gosta de touradas. 
R - Gostava. Saí do ambiente, deixei de estar rodeada da ornamentação (que era o que me agradava) e afastei-me. Hoje não me interessam. Sou contra. 

P - É verdade que foi freira teresiana? Que tipo de ordem é essa?
R - Fui membro de um instituto secular chamado Instituição Teresiana, quer dizer, fui "teresiana" e de alguma forma continuo a sê-lo, pelo menos no respeito e na admiração que sinto pela mulher forte que foi Teresa de Jesus.

P - Por que é que abandonou a instituição?
R - Não abandonei. Disseram-me, num acto que honra a instituição, que não podia continuar a viver uma vida que não me fazia feliz. Saí com pena, porque acreditava que seria útil dedicando a minha vida aos outros com base naqueles princípios.

P - Saramago disse numa entrevista: "Para se ser ateu como eu, é preciso um alto grau de religiosidade". E também disse: "Sou um religioso sem necessidade de Deus". Está de acordo? É também esse o seu sentimento?
R - Creio que se pode ser religioso sem Deus: ao fim e ao cabo, Deus é uma abstracção. O que importa na religião é a ligação com os homens. No catolicismo falam de "comunhão dos santos", na vida consciente e solidária dizemos dever, obrigação, justiça... É um sentimento profundo que nos descobre humanos entre humanos, todos responsáveis, todos feitos da mesma massa e com os mesmos direitos.

P - A veemência com que fala parece indicar que nada distingue a Pilar militante católica da Pilar comunista.
R - Quando era cristã aprendi que não se podia desperdiçar em tontarias nem um minuto da vida, sobretudo pública. Digo o mesmo agora. Não percamos tempo em fofoquices havendo tantas coisas importantes. Não para ficarmos o tempo todo numa atitude de reflexão. A vida pode ser simples, não tem que ser complicada e pesada. Mas façamos a nossa vida. Quando vamos às aldeias as pessoas costumam falar de coisas boas do passado para rematarem, resignadas: 'bom, mas isso passou, já não volta'. Porquê? Não tem que ser assim. 

P - A que é que se está a referir, concretamente?
R - Nunca houve tanto dirigismo. O dirigismo da URSS era uma brincadeira de meninos comparado com o dirigismo do sistema democrático. Mudam-nos a moeda, mudam-nos as fronteiras, mudam-nos a soberania, mudam-nos os hábitos. É um dirigismo autoritário. Normas, costumes, hábitos alimentares (seriam todos maus?), tudo mudou.

P - Qual será então a diferença entre o seu engajamento ideológico de hoje e a militância católica do passado?
R - Sou uma pessoa de expressão veemente. Nada me é indiferente. Envolvo-me nas coisas. A ideologia são os óculos com que vejo o mundo. A diferença entre o meu passado e o meu presente? Há um sentido da transcendência no cristianismo e eu não o tenho.

P - Perdeu-o?
R - Não o tive nunca. Sou um sujeito activo e quero que as coisas aconteçam porque é justo que elas aconteçam. Não podia participar na transformação das coisas para ganhar o céu. Quero participar porque recebi muito e tenho que dar muito. Sou uma privilegiada - nasci na Europa, nesta época, tive acesso à cultura - e tenho que pagar. 

P - Há dez anos vivíamos num mundo bipolar. Depois houve a implosão do império soviético. Declarou-se há pouco comunista. Como viu essa derrocada da URSS?
R - Nunca fui ao império soviético. O que eu vi na minha vida foi a ditadura de Franco, o império do capital e uns quantos senhores muito honestos que tentavam que os cidadãos tivessem melhores condições de vida, que eram os comunistas na clandestinidade. E vi sempre o capitalismo em acção, o império dos Estados Unidos com bases que me rodeavam. Nunca vi o império soviético.

P - Mas sabia que existia o muro de Berlim, que existia uma série de países...
R - ...Na Andaluzia, onde vivia, sentia o muro que há no estreito de Gibraltar . Claro que havia um muro de Berlim, aliás levantado por duas partes. Mas nunca me senti ameaçada pelo Pacto de Varsóvia. 

P - Não percebo. O muro de Berlim é irrelevante para si?
R - Há muitos muros e todos são muros da vergonha. Mas eu também falo dos outros muros que se levantam entre a África e a Europa, entre a América do Norte e a do Sul, entre as casas ricas do Rio de Janeiro e as pobres, entre a sociedade opulenta de Portugal e os desgraçados. Não quero que o pensamento único me oriente, me obrigue a falar do muro de Berlim. Quero falar de todos os muros. Cada dia há mais ricos e mais pobres. O muro de Berlim, horrível, afectou muita gente. Os outros afectam milhões e milhões e ninguém fala deles. Ninguém deita abaixo os muros que separam a riqueza da pobreza.

P - Falou há pouco de senhores limpos e honestos, referindo-se aos comunistas em Espanha. Lá como aqui em Portugal, os comunistas foram olhados com simpatia por muita gente, logo a seguir à queda das duas ditaduras. Mas essa simpatia desapareceu. Como explica que os espanhóis, como os portugueses, tenham deixado de ser sensíveis à mensagem eleitoral desses senhores?
R - Os meios, quer dizer, quem os faz, decidem o que é notícia e o que não é. Por exemplo em Espanha, no recente debate sobre o estado da nação, reduziram a informação a um circo em que [o primeiro ministro ] Aznar e [o secretário-geral do PSOE] Zapatero competiam entre si para ver quem era mais alto, mais forte, mais ágil. Durante o debate e após ele dedicaram-se a dar pontos às capacidades oratória, de improviso, de resposta, à elegância de um e do outro... Os outros dirigentes políticos não existiam e muito menos a nação. É como se o estado do país e as soluções não interessassem a ninguém. Claro que o líder da Izquierda Unida, [Gaspar] Llamazares, que saiu do circo e chegou com denúncias e propostas concretas, foi ignorado e insultado. Por falar em problemas, a imprensa chamou-lhe apocalíptico; por propor soluções à margem do pensamento único, chamaram-lhe sonhador. Quanto ao caso do PCP, recordo que há anos [década de 80] este partido denunciou que as câmaras de televisão se instalaram precisamente atrás da sua bancada na Assembleia da República, de modo que quando se apresentavam imagens do plenário viam-se todos os grupos parlamentares menos o comunista. Não foi por acaso. Aliás, qualquer pessoa vê o tratamento que é dado a pessoas e às propostas da esquerda, em contraste com o temor reverencial com que de um modo geral se trata os poderosos. Dão-se poucas piadas aos grandes da economia ou aos instalados da política. - E dão-se piadas aos da esquerda?- Por exemplo, uma pessoa como [o general e ex-primeiro ministro entre 1974 e 1975] Vasco Gonçalves: de cada vez que um jornalista, por mais jovem que seja, se refere a ele, dá-se ao luxo de o ridicularizar. Pois eu digo-lhes: se conseguirem ter alguma vez metade da honestidade de Vasco Gonçalves, serão grandes homens, mas até lá, não. Se a vida pública portuguesa tivesse 10 pessoas tão honestas como Vasco Gonçalves, o país seria outro - mais limpo e melhor. 

P - Mas teve um projecto para Portugal que as pessoas não apoiaram. 
R - Muitas pessoas não apoiaram, outras apoiaram. Mas acima de tudo, foi a CIA que não o aceitou, a NATO que não o aceitou, o grande capital que não o aceitou, os meios de comunicação controlados pelo grande capital que não o aceitaram, a pressão internacional não podia aceitá-lo... Não sejamos simplistas. Os países normalizaram-se e Portugal não iria ter a oportunidade de ensaiar fórmulas políticas diferentes, por mais democráticas que fossem. 

P - Mas acha que as pessoas andam enganadas toda a vida, todo o tempo? 
R - À medida que o tempo passa as pessoas estão mais angustiadas porque têm que pagar a prestação do carro, a prestação da casa. A liberdade, esse grande conceito, traduz-se em ter um carro maior, em fazer viagens, em comer todos os dias em restaurantes, em vestir Armani. Então quando chegam uns imbecis minoritários, mal vestidos, a falar de Reforma Agrária, as pessoas desatam a rir.

P - Houve uma oportunidade de fazer a Reforma Agrária em Portugal. E se ela acabou mal, não foi apenas por actos do poder. As próprias experiências no terreno não correram bem.
R - O capitalismo também não está a correr bem e temo-lo aí todos os dias. Desde quando existe o capitalismo? Desde Viriato ou antes mesmo? E no entanto tem sempre novas oportunidades. Mas quanto à Reforma Agrária, protagonizada por gente inexperiente, diz-se que não correu bem. Não tiveram tempo. Não tiveram tempo.

P - Foram estas ideias que a aproximaram de Saramago, também? Que criaram entre vocês uma cumplicidade?
R - Eu não me apaixonei por ideias, mas pelo homem.

P - Mas não se apaixonou pela obra, antes de conhecer o autor? Quando veio a Portugal antes de o conhecer, vinha à procura do autor da obra ou do homem que estava por detrás do autor?
R - A verdade é que vim a Portugal para fazer o trajecto de Ricardo Reis.

P - Mas telefonou ao autor.
R - Para o felicitar. Por maneira de ser, digo sempre o que penso, o bem e o mal. Quando leio um livro extraordinário, digo-o. O mundo está tão carecido de palavras de afecto...

P - Chegou a fazer o tal percurso do Ano da Morte - Hotel Bragança, que já não existe, cemitério dos Prazeres? Foi nesse quadro que telefonou a Saramago?
R - Telefonei de Espanha. Um número de telefone não resiste aos jornalistas. Liguei para o felicitar e para lhe dizer que gostava de o cumprimentar. Ele esteve de acordo. Mas o percurso fi-lo sozinha com o livro. Devo dizer, a propósito, que esta ideia não tinha nada de louco: na semana a seguir vieram cá fazer o percurso uma irmã minha e o marido. E uns dias antes tinham-no feito uns amigos nossos. Durante muito tempo, e ainda hoje, houve amigos nossos a fazerem-no.

P - Portanto: começou a gostar de José Saramago pessoa...
R - Eu não sabia nada da pessoa, quem era, como era, em que circunstâncias vivia , só sabia que tinha nascido em 1922 e isso parecia-me impossível.

P - Achava que devia ser mais novo?
R - Não, achava que era um clássico, mas ao mesmo tempo as ideias que exprimia eram de alguém deste tempo. Havia aqui uma contradição, e eu tinha interesse em comprovar que era um contemporâneo o homem que escrevia desta forma. De modo que nos conhecemos, tomámos um café e adeus.

P - O namoro não começou logo?
R - Ah, não! Passados meses. Mantivemos correspondência sobre livros, eu não sabia nada da vida dele e ele nada da minha vida e então um dia perguntou-me se me podia ir visitar em Sevilha. 



P - E o namoro começou?
R - Fomo-nos encontrando.

P - Tinha quantos anos?
R - 36.

P - A diferença de quase trinta anos não constituiu um problema? Não digo para si, eventualmente, mas para o seu filho, a sua família?
R - Porque que é que havia de constituir?

P - Casou dois anos depois, mais ou menos. A sua vida mudou totalmente?
R - Chegámos a pensar na hipótese de José se mudar para Sevilha, porque o meu trabalho não me permitia vir para Portugal. Mas entretanto a directora-geral da TVE, Pilar Miró, convidou-me para ser a correspondente em Portugal.

P - A decisão de irem para Lanzarote é tomada apenas por causa daquele episódio muito conhecido do veto ao livro "O Evangelho segundo Jesus Cristo"?
R - Sim, desse acto de censura do candidato à Câmara de Lisboa.

P - Não, esse é Santana Lopes. A proposta foi do subsecretário de Estado dele, Sousa Lara...
R - A decisão foi do governo. O outro [Santana Lopes] manteve e apoiou a proposta e foi ao parlamento defender a política do subordinado.

P - Quer dizer que se ele ganhar as eleições... 
R - ...é uma vergonha para Lisboa...

P - ...e vocês deixam de vir a Lisboa?
R - Eu com Lisboa não terei problema nenhum. Mas com a Câmara teria. Não, não vai ganhar.

P - Vão então para Lanzarote...
R - A situação estava também a tornar-se difícil em Lisboa porque era um corrupio. Toda e qualquer pessoa que vinha a Portugal procurava-o. Começámos a procurar um sítio fora de Lisboa, visitámos algumas casas em Mafra, mas não encontrámos aquilo que queríamos.

P - Qual a sua intervenção no processo criativo de Saramago?
R - Como é óbvio não intervenho no processo criativo de Saramago.

P - É primeira leitora? Crítica?
R - Sou a sua primeira leitora: generosamente, cada noite José passa-me as folhas que escreveu para que eu as leia e, nos últimos livros, as traduza, já que serão apresentadas simultaneamente nos países de língua portuguesa e castelhana de todo o mundo.

P - Dá-lhe ideias?
R - Claro que não dou ideias nem critico: o processo criativo é pessoal e intransmissível. Eu sei qual é o meu lugar e jamais ousaria intervir, só oiço o que o autor me conta, as várias hipóteses, as mudanças que podia introduzir...

P - O que representa o livro para si?
R - O que me interessa acima de tudo no livro são as paisagens humanas. Tanto quanto me interessam os homens que pensam e escrevem os livros. Os livros são a expressão de outros seres humanos. Interessam-me em geral e individualmente. Mais do que um pôr do sol, mais do que uma flor, mais do que uma obra arquitectónica, mais do que a Capela Sistina. 

P - E a literatura?
R - Pode ser a expressão mais acabada do espírito humano. É a que melhor entendo. Voltando aos livros: encontro sempre alguma coisa boa num livro. Nem que seja a capa.

P - Qual o livro de que mais gostou na vida?
R - Em cada obra há um livro de que gosto mais. É essa a glória dos livros. Enquanto a Capela Sistina se apresenta como um bloco, os livros são múltiplos, diversos, têm vidas distintas.

P - Indique dois ou três.
R - Os de Saramago, que me transformaram a vida.

P - Quem lhe transformou a vida não foi antes José Saramago?
R - Não. Comecei pelos livros. Coleccionei-os, antes de conhecer José. Posso dizer que gosto de falar dos livros de José Saramago porque já o fazia antes de o conhecer. Recomendei-os antes. Agora só tenho mais motivos para o dizer, porque são os livros da minha vida.


(Saramago, que entretanto chegou de mais uma longa sessão de autógrafos e ficou à espera do fim da entrevista, contesta uma observação do entrevistador acerca da superioridade da democracia representativa sobre todos os outros sistemas, discorre sobre a "falsa democracia" que deixa "contentinhos" os menos exigentes, diz que os jornalistas deviam investigar quem são e onde estão os que detêm verdadeiramente as rédeas do poder no mundo em vez de encherem páginas e páginas com "histórias dos Guterres e dos Aznar, que não mandam nada", revela ("pensei nisso hoje de manhã, nem o disse à Pilar") que um dia destes ainda o hão-de ver numa daquelas manifestações anti-globalização como a de Gotemburgo - "na primeira fila, ali ao lado daqueles que os editorialistas dizem que cheiram mal" - e remata, longos minutos passados: "Sofia [de Mello Breyner] escreveu aqueles versos muito glosados no 25 de Abril dizendo que a poesia estava na rua. Pois bem, o que falta é a democracia na rua. A democracia deve vir para a rua." - Que pena não ter sido a Pilar a responder. Dava um bom título: 'a democracia deve vir para a rua'..., comento. - A Pilar não disse mas está de acordo, replica Saramago.- Sim, sim, claro, intervém ela, com calor. - Pode portanto usar no título, conclui o Prémio Nobel).

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