Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Utopia ou a realização, pessoal e social, amanhã... já



(...) o conceito "utopia". 
(...) No Fórum Social de Porto Alegre, onde se reúnem todas as utopias do mundo, aparece um senhor para dizer acabemos, de uma vez, com todas as utopias. E tentei demonstrá-lo porque é  muito simples, tão extremamente simples, que quando se explica, e espero que isso aconteça aqui também, uma pessoa perguntar-se por que não o tinha visto antes. (...)
(...) Vou explicar: a utopia é algo que propomos, uma construção mental que enunciamos projectada para o futuro porque temos consciência de que um objectivo que consideramos bom não o poderemos alcançar no tempo em que estamos vivos e, ainda que tenhamos consciência de que não o não podemos conseguir, mantemos a esperança de que venha a poder realizar-se no futuro. (...) Não será para mim, nem para os meus filhos, mas talvez os meus netos possam viver essa utopia.
E todos muito contentes, esquecendo uma coisa tão simples como esta: quem nos diz que o que não podemos ter agora vai ser desejado pelas pessoas do futuro, que passados duzentos anos as pessoas desse tempo vão querer o que nós sonhámos? Por que hão de estar interessadas na minha utopia essas pessoas que nem sequer sei como serão? (...)
(...) Não podemos estar certos de que o ser humano seja, em todos os momentos do futuro, a pessoa que hoje somos. (...) A única utopia viável é a do dia de amanhã, porque ainda estejamos vivos e então, sim, podemos fazer cumprir o que necessitamos hoje. Adiá-lo e adiá-lo no tempo não crio que valha a pena. (...)

em, "Democracia e Universidade"
Conferência Universidade Complutense de Madri
2005
Edição Fundação José Saramago - páginas 35 e 36


(a simbologia da Passarola, Memorial do Convento)


Aqui, em http://caderno.josesaramago.org/3855.html

"Esperanças e utopias"

"Sobre as virtudes da esperança tem-se escrito muito e parolado muito mais. Tal como sucedeu e continuará a suceder com as utopias, a esperança foi sempre, ao longo dos tempos, uma espécie de paraíso sonhado dos cépticos. E não só dos cépticos. Crentes fervorosos, dos de missa e comunhão, desses que estão convencidos de que levam por cima das suas cabeças a mão compassiva de Deus a defendê-los da chuva e do calor, não se esquecem de lhe rogar que cumpra nesta vida ao menos uma pequena parte das bem-aventuranças que prometeu para a outra. Por isso, quem não está satisfeito com o que lhe coube na desigual distribuição dos bens do planeta, sobretudo os materiais, agarra-se à esperança de que o diabo nem sempre estará atrás da porta e de que a riqueza lhe entrará um dia, antes cedo que tarde, pela janela dentro. Quem tudo perdeu, mas teve a sorte de conservar ao menos a triste vida, considera que lhe assiste o humaníssimo direito de esperar que o dia de amanhã não seja tão desgraçado como o está sendo o dia de hoje. Supondo, claro, que haja justiça neste mundo. Ora, se neste nestes lugares e nestes tempos existisse algo que merecesse semelhante nome, não a miragem do costume com que se iludem os olhos e a mente, mas uma realidade que se pudesse tocar com as mãos, é evidente que não precisaríamos de andar todos os dias com a esperança ao colo, a embalá-la, ou embalados nós ao colo dela. A simples justiça (não a dos tribunais, mas a daquele fundamental respeito que deveria presidir às relações entre os humanos) se encarregaria de pôr todas as coisas nos seus justos lugares. Dantes, ao pobre de pedir a quem se tinha acabado de negar a esmola, acrescentava-se hipocritamente que “tivesse paciência”. Penso que, na prática, aconselhar alguém a que tenha esperança não é muito diferente de aconselhá-la a ter paciência. É muito comum ouvir-se dizer da boca de políticos recém-instalados que a impaciência é contra-revolucionária. Talvez seja, talvez, mas eu inclino-me a pensar que, pelo contrário, muitas revoluções se perderam por demasiada paciência. Obviamente, nada tenho de pessoal contra a esperança, mas prefiro a impaciência. Já é tempo de que ela se note no mundo para que alguma coisa aprendam aqueles que preferem que nos alimentemos de esperanças. Ou de utopias."
29 de Setembro de 2008

Sem comentários:

Enviar um comentário