Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 21 de junho de 2015

#cincoanos - Memória da Data - "Relembrar Saramago" de Pedro Reis (PT Jornal)

#cincoanos 
Memória da Data 
"Relembrar Saramago" de Pedro Reis (PT Jornal)

Pode ser consultado e lido, aqui
em http://ptjornal.com/relembrar-saramago-42647

"Relembrar Saramago" de Pedro Reis

"“Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação”.




Começo esta crónica com esta citação retirada de “Levantado do Chão”. Não foi fácil a escolha, poderia ter começado com outra qualquer. O leitor deve então estar a questionar-se o porquê desta escolha. Bem, penso que o principal motivo – para além de ser retirada de uma das minhas obras preferidas do autor – deve-se ao facto desta demonstrar uma linha do pensamento de José Saramago que tanto me inspira: a ideia de não nos resignarmos seja em que circunstância for. Talvez esteja a incorrer no erro de ser demasiado simplista, mas há nesta citação uma certa inquietação e desassossego que definem muito daquilo que Saramago pretendia transmitir com a sua escrita e que, enquanto leitor, muito me influencia.

Existem escritores assim, que através do que escrevem passam-nos mais do que simplesmente uma boa história. São capazes de criar uma ligação de proximidade entre escritor e leitor, onde este último – o aprendiz -, retira das palavras do primeiro – o mestre -, lições de vida, formas de a encarar, de a enfrentar. Através da leitura, o aprendiz obtém uma fonte de inspiração que acaba por moldar a forma como vê o mundo que o rodeia. “As palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio (…) para que possamos chegar à outra margem”, diz-nos Saramago algures em “A Caverna”.

Mas de onde nasce, afinal, o meu gosto por este escritor? O primeiro livro que li de José Saramago foi “As Intermitências da Morte”. Bem, não será totalmente verdade, uma vez que o primeiro contacto que tive com o autor foi no 12o ano através do “Memorial do Convento”, mas confesso que na altura – e aqui faço o mea culpa – passou-me um bocado ao lado. Outra idade, outra mentalidade, outra forma de encarar a vida. Portanto o meu contacto com Saramago foi um bocado mais tardio do que aquilo que seria suposto, mas sinceramente ainda bem que assim foi. Sugeriram-me “As Intermitências da Morte” e decidi dar uma nova oportunidade ao autor, e em boa hora o fiz. Confesso que li aquela página final perto de dez vezes de seguida, sem exagero. Para além do livro em si me ter fascinado, aquele final deixou-me completamente rendido. Percebi imediatamente que José Saramago tinha algo de especial, que havia ali algo de maior que eu podia retirar daquilo que este me tinha para ensinar. Seguiu-se o “Caim”, que tanto me fez rir pela crítica implacável e irónica sobre Deus e sobre a religião. Mas a confirmação de que Saramago seria um escritor que tinha aparecido para mudar a forma como encaro a literatura deu-se com duas obras em particular: “Ensaio sobre a Cegueira” e “Levantado do Chão”. A primeira, ainda hoje me deixa perplexo com a brutalidade, com a violência, e com a maldade do Ser Humano, mas ao mesmo tempo com um sorriso de esperança perante personagens tão marcantes como a “mulher do médico” ou o “cão das lágrimas”. A segunda deixa-me inspirado pela força retratada através de várias gerações de uma família, e a forma como um povo, oprimido pela ditadura política e religiosa, foi capaz de se erguer e lutar por uma vida melhor. Um retrato ímpar do povo português, principalmente o povo alentejano, desde o início do século XX até à Revolução de Abril.

Dei então por mim a ler Saramago compulsivamente. “O caos é uma ordem por decifrar” e “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”, citações retiradas das epígrafes de “O Homem Duplicado” e “A Viagem do Elefante” respectivamente foram os livros seguintes, e ainda hoje são provavelmente duas das frases do autor que mais me marcam, e que com tão poucas palavras conseguem dizer tanto. Depois de uma pequena pausa, voltei a pegar na sua obra com “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, que me fez perceber porque é que não nos podemos contentar em observar o espectáculo do mundo como o heterónimo pessoano nos dizia, com o “Ensaio sobre a Lucidez” que gira à volta de um tema tão actual (a abstenção) e que demonstra o quão perversos e maldosos podem ser os nossos governantes, com a releitura do “Memorial do Convento” que desta vez fez tanto sentido, e com o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, um livro único onde somos presenciados com uma outra forma de ver a religião católica, com Jesus a ser apresentado sob uma perspectiva humana, uma vítima nas mãos de um Deus maldoso: “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez”. De destacar ainda que foi com este livro que Saramago abandonou o país, mudando-se para Lanzarote depois da polémica com o subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara. Uma obra e um autor demasiado grandes para um governo com uma mentalidade tão pequena.

Mas ainda havia muito da obra de Saramago para conhecer. Seguiram-se “A Jangada de Pedra” que me prendeu pela viagem e pelo relacionamento entre as personagens, “A Caverna” que pela sua simplicidade é uma das histórias mais bonitas que já li (Cipriano Algor pela sua humildade é das personagens que mais me marcou até hoje), assim como uma grande crítica às consequências das transformações provenientes do capitalismo, onde cada vez somos menos humanos e mais sombras e, por fim, “Todos os Nomes”, o último livro de Saramago que li, sendo uma grande abordagem ao sentido da nossa existência, aquilo que fazemos, aquilo que somos, e à procura constante pelo outro.

Apesar de já ter lido muito da obra de Saramago, ainda há muito para ler e descobrir.

Quando hoje me perguntam qual o meu livro favorito do autor, nunca consigo responder. Penso que isso depende muito do momento, do estado de espírito. Em certas alturas poderia responder “Ensaio sobre a Cegueira”, noutras “Levantado do Chão” ou “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Ou até mesmo “O Ano da Morte de Ricardo Reis” ou “Memorial do Convento”. Cada livro de Saramago marcou-me de determinada forma. Ensinou-me algo, mudou a minha percepção sobre o mundo. Portanto, é sempre complicado responder a essa questão. O que é comum em todas as suas obras é a forma como o autor não é simplesmente um narrador, uma vez que a sua personalidade está bastante presente em cada um dos seus livros. Quando lemos Saramago não se trata apenas de conhecer uma história e as respectivas personagens. Trata-se, acima de tudo, de entrar num diálogo que o autor constrói connosco leitores, fazendo observações constantes que nos dizem quem ele é, no que acredita e o que nos pretende transmitir.

Não há melhor sensação na leitura do que ficar preso numa frase para de seguida tirar os olhos da página, olhar para cima, e reflectir sobre aquilo que acabamos de ler. E ao ler Saramago isto acontece-me frequentemente, normalmente seguindo um gigante sorriso.

Mais do que um escritor, José Saramago era um humanista. Através das suas personagens, parábolas e da sua ironia tão própria, conseguia analisar o Ser Humano de uma forma única, realçando os seus maiores defeitos, mas invocando também as suas melhores qualidades. Uma tarefa e luta constantes para melhorarmos enquanto humanos que somos, dotados de direitos mas também de deveres. “Vivo desassossegado, escrevo para desassossegar”, dizia-nos.

Através do seu olhar crítico e lúcido – que tanta falta nos faz nos dias de hoje – batia-se através de uma inquietação constante para mudar o mundo que o rodeava, sempre movido por valores éticos e morais de uma enorme grandeza e bondade. Ontem (quinta-feira, 18 de Junho) assinalaram-se os cinco anos da morte de José Saramago, que nos disse que “o que extingue a vida e os seus sinais, não é a morte, mas o esquecimento”. A morte pode ter levado o autor, mas a sua obra é eterna, e continuar a ler o que escreveu manterá para sempre viva a sua memória e o enorme legado que nos deixou. “Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia”. E aos leitores, sobretudo aos leitores."

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