Memória da Data
"Relembrar Saramago" de Pedro Reis (PT Jornal)
Pode ser consultado e lido, aqui
em http://ptjornal.com/relembrar-saramago-42647
"Relembrar Saramago" de Pedro Reis
"“Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação”.
Começo esta crónica com esta citação retirada de “Levantado do Chão”. Não foi fácil a escolha, poderia ter começado com outra qualquer. O leitor deve então estar a questionar-se o porquê desta escolha. Bem, penso que o principal motivo – para além de ser retirada de uma das minhas obras preferidas do autor – deve-se ao facto desta demonstrar uma linha do pensamento de José Saramago que tanto me inspira: a ideia de não nos resignarmos seja em que circunstância for. Talvez esteja a incorrer no erro de ser demasiado simplista, mas há nesta citação uma certa inquietação e desassossego que definem muito daquilo que Saramago pretendia transmitir com a sua escrita e que, enquanto leitor, muito me influencia.
Existem escritores assim, que através do que escrevem passam-nos mais do que simplesmente uma boa história. São capazes de criar uma ligação de proximidade entre escritor e leitor, onde este último – o aprendiz -, retira das palavras do primeiro – o mestre -, lições de vida, formas de a encarar, de a enfrentar. Através da leitura, o aprendiz obtém uma fonte de inspiração que acaba por moldar a forma como vê o mundo que o rodeia. “As palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio (…) para que possamos chegar à outra margem”, diz-nos Saramago algures em “A Caverna”.
Mas de onde nasce, afinal, o meu gosto por este escritor? O primeiro livro que li de José Saramago foi “As Intermitências da Morte”. Bem, não será totalmente verdade, uma vez que o primeiro contacto que tive com o autor foi no 12o ano através do “Memorial do Convento”, mas confesso que na altura – e aqui faço o mea culpa – passou-me um bocado ao lado. Outra idade, outra mentalidade, outra forma de encarar a vida. Portanto o meu contacto com Saramago foi um bocado mais tardio do que aquilo que seria suposto, mas sinceramente ainda bem que assim foi. Sugeriram-me “As Intermitências da Morte” e decidi dar uma nova oportunidade ao autor, e em boa hora o fiz. Confesso que li aquela página final perto de dez vezes de seguida, sem exagero. Para além do livro em si me ter fascinado, aquele final deixou-me completamente rendido. Percebi imediatamente que José Saramago tinha algo de especial, que havia ali algo de maior que eu podia retirar daquilo que este me tinha para ensinar. Seguiu-se o “Caim”, que tanto me fez rir pela crítica implacável e irónica sobre Deus e sobre a religião. Mas a confirmação de que Saramago seria um escritor que tinha aparecido para mudar a forma como encaro a literatura deu-se com duas obras em particular: “Ensaio sobre a Cegueira” e “Levantado do Chão”. A primeira, ainda hoje me deixa perplexo com a brutalidade, com a violência, e com a maldade do Ser Humano, mas ao mesmo tempo com um sorriso de esperança perante personagens tão marcantes como a “mulher do médico” ou o “cão das lágrimas”. A segunda deixa-me inspirado pela força retratada através de várias gerações de uma família, e a forma como um povo, oprimido pela ditadura política e religiosa, foi capaz de se erguer e lutar por uma vida melhor. Um retrato ímpar do povo português, principalmente o povo alentejano, desde o início do século XX até à Revolução de Abril.
Dei então por mim a ler Saramago compulsivamente. “O caos é uma ordem por decifrar” e “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”, citações retiradas das epígrafes de “O Homem Duplicado” e “A Viagem do Elefante” respectivamente foram os livros seguintes, e ainda hoje são provavelmente duas das frases do autor que mais me marcam, e que com tão poucas palavras conseguem dizer tanto. Depois de uma pequena pausa, voltei a pegar na sua obra com “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, que me fez perceber porque é que não nos podemos contentar em observar o espectáculo do mundo como o heterónimo pessoano nos dizia, com o “Ensaio sobre a Lucidez” que gira à volta de um tema tão actual (a abstenção) e que demonstra o quão perversos e maldosos podem ser os nossos governantes, com a releitura do “Memorial do Convento” que desta vez fez tanto sentido, e com o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, um livro único onde somos presenciados com uma outra forma de ver a religião católica, com Jesus a ser apresentado sob uma perspectiva humana, uma vítima nas mãos de um Deus maldoso: “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez”. De destacar ainda que foi com este livro que Saramago abandonou o país, mudando-se para Lanzarote depois da polémica com o subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara. Uma obra e um autor demasiado grandes para um governo com uma mentalidade tão pequena.
Mas ainda havia muito da obra de Saramago para conhecer. Seguiram-se “A Jangada de Pedra” que me prendeu pela viagem e pelo relacionamento entre as personagens, “A Caverna” que pela sua simplicidade é uma das histórias mais bonitas que já li (Cipriano Algor pela sua humildade é das personagens que mais me marcou até hoje), assim como uma grande crítica às consequências das transformações provenientes do capitalismo, onde cada vez somos menos humanos e mais sombras e, por fim, “Todos os Nomes”, o último livro de Saramago que li, sendo uma grande abordagem ao sentido da nossa existência, aquilo que fazemos, aquilo que somos, e à procura constante pelo outro.
Apesar de já ter lido muito da obra de Saramago, ainda há muito para ler e descobrir.
Quando hoje me perguntam qual o meu livro favorito do autor, nunca consigo responder. Penso que isso depende muito do momento, do estado de espírito. Em certas alturas poderia responder “Ensaio sobre a Cegueira”, noutras “Levantado do Chão” ou “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Ou até mesmo “O Ano da Morte de Ricardo Reis” ou “Memorial do Convento”. Cada livro de Saramago marcou-me de determinada forma. Ensinou-me algo, mudou a minha percepção sobre o mundo. Portanto, é sempre complicado responder a essa questão. O que é comum em todas as suas obras é a forma como o autor não é simplesmente um narrador, uma vez que a sua personalidade está bastante presente em cada um dos seus livros. Quando lemos Saramago não se trata apenas de conhecer uma história e as respectivas personagens. Trata-se, acima de tudo, de entrar num diálogo que o autor constrói connosco leitores, fazendo observações constantes que nos dizem quem ele é, no que acredita e o que nos pretende transmitir.
Não há melhor sensação na leitura do que ficar preso numa frase para de seguida tirar os olhos da página, olhar para cima, e reflectir sobre aquilo que acabamos de ler. E ao ler Saramago isto acontece-me frequentemente, normalmente seguindo um gigante sorriso.
Mais do que um escritor, José Saramago era um humanista. Através das suas personagens, parábolas e da sua ironia tão própria, conseguia analisar o Ser Humano de uma forma única, realçando os seus maiores defeitos, mas invocando também as suas melhores qualidades. Uma tarefa e luta constantes para melhorarmos enquanto humanos que somos, dotados de direitos mas também de deveres. “Vivo desassossegado, escrevo para desassossegar”, dizia-nos.
Através do seu olhar crítico e lúcido – que tanta falta nos faz nos dias de hoje – batia-se através de uma inquietação constante para mudar o mundo que o rodeava, sempre movido por valores éticos e morais de uma enorme grandeza e bondade. Ontem (quinta-feira, 18 de Junho) assinalaram-se os cinco anos da morte de José Saramago, que nos disse que “o que extingue a vida e os seus sinais, não é a morte, mas o esquecimento”. A morte pode ter levado o autor, mas a sua obra é eterna, e continuar a ler o que escreveu manterá para sempre viva a sua memória e o enorme legado que nos deixou. “Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia”. E aos leitores, sobretudo aos leitores."
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