Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Comunidade de Leitores Ler Saramago - “As Intermitências da Morte” (1.ª parte / 2.ª Sessão – Outubro 2015-10-29)

Comunidade de Leitores Ler Saramago
“As Intermitências da Morte”
1.ª parte / 2.ª Sessão – Outubro 2015-10-29

(Montagem cénica da obra - Rui Santos)

A violência, física e psíquica, latente na nossa sociedade e que perpassa em várias páginas do livro.

“As intermitências da Morte”, decorre num pais não identificado com 10 milhões de habitantes, que faz fronteira com 3 países e sem acesso ao mar. Pela proximidade da quantificação do número de habitantes podemos criar algum imaginário com Portugal, mas o facto de não haver fronteira marítima, já nos remete para outras paragens, quiçá no centro da Europa.

O elemento central, sempre presente mesmo aquando da sua ausência è a morte. O acto de uma pessoa morrer como um fim natural e sendo regra sem excepção, num jogo de vida e seu términus, assume o absurdo e o impensável que passa a ocorrer, por alguma alteração inexplicável, não morrer. Continuar não vivendo ou ter a vida em suspenso mesmo no momento em que ela, por acidente ou doença, deveria ter cumprido com a sua última acção.

José Saramago constrói uma narrativa sempre em suspenso. As pessoas deixaram de morrer, explicada nas primeiras horas ou dias por algum acaso circunstancial, e depois regista-se a tomada de consciência colectiva desta acção. As instituições assumem de forma imediata a imperiosa necessidade de sobrevivência corporativa, através da alteração das suas doutrinas mais básicas. Assim se passa com a Igreja Católica e a salvação, com as companhias de seguros através dos seguros de vida, da indústria funerária com os enterros dos animais domésticos, com a monarquia que pretende o garante do seu amorfo régio poder, com a máphia que se alia às suas congéneres dos países fronteiriços.   

Não sendo conhecido nenhum fenómeno científico ou outro, que pudesse avalizar a inesperada eternidade, o autor cria um propositado vazio psicológico latente em todo o decorrer das páginas. 
Poderíamos estar perante um país em jubilo, euforia desenfreada ou num estado de embriaguez da consciência colectiva, onde a nação que por este acaso, assumir-se-ia com um sentido de invencibilidade perante os países vizinhos. Mas não. Convenço-me de alguma violência psicológica no quadro criado pela ausência de uma manifestação de euforia ou festa generalizada. Este país impressivamente adoptado para a acção não é Portugal. Decididamente o não é, caso contrário, Saramago teria de cumprir com a característica que sempre nos simboliza, ou seja, da euforia à depressão ou o seu contrário.

“As Intermitências da Morte” são um ataque à moral do mundo de hoje, ao mundo de 2005, quando foi escrito, e também ao mundo do pós II.ª Grande Guerra, algo condutor e criador do ambiente que se vive na Europa contemporânea. É um ataque à civilização e à arquitectura que a sustêm e se reproduz automaticamente dentro dos seus próprios vícios. Vivemos tempos de acertar no erro e trabalhar o erro da humanidade repetidamente. 

Poderá ser considerado totalmente descabido ou desajustado da realidade transmitida pela essência da obra, mas a morte, seja ela por ausência nos primeiros 6 capítulos, ou por manifestação física no restante, sendo a personagem principal não a entendo como o objecto crítico e fulcral desta teia de situações. 
O que estará em causa será a oportunidade concedida a uma nação, para repensar os pilares sobre os quais está fundada e como evolui enquanto povo. 

À revista Época (31/10/2005) Saramago disse numa entrevista:
“Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Actualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto.”

Lançado em 2005, 10 anos depois do “Ensaio sobre a Cegueira” e no ano seguinte ao do “Ensaio sobre a Lucidez” (2004), nas “Intermitências” é abordada a marca da violência, tanto na componente da agressão física, como na vertente da força imposta sob algumas formas de coação psicológica, atacando ora o individuo ou a comunidade.

(Montagem cénica da obra - Rui Santos)

Quatro breves exemplos

Violência física 
Pag. 27 “e um pobre homem houve que teve de pagar o antipatriótico desabafo com uma tareia que, se não lhe acabou ali mesmo com a triste vida, foi só porque a morte havia deixado de operar”
Em Portugal, os dados estatísticos de 2014 referentes à violência doméstica, reportam mais de 21.000 casos de agressões e perto de 10.000 vítimas directas, que recorreram aos centros da APAV solicitando auxilio. Continuamos a permitir a agressão.   

Violência geracional
Pág. 33 e 34 “cemitérios de vivos onde a fatal e irrenunciável velhice seria cuidada como deus quisesse, até não se saber quando”


Continua-se a assistir ao abandono dos idosos em lares, que não são de feliz ocaso, ou nos hospitais. Abandonam-se pessoas.

Violência psíquica  
Pág. 43 “e logo a mãe da criança subiu, tomou-a ao colo, disse Adeus meu filho que não te torno a ver”
Por estes dias, no mar Mediterrâneo, uma balsa em fuga transporta pessoas desesperadas que fogem das guerras e máfias locais. Morrer no mar é um risco a correr para estas pessoas. Um pai deixa cair o seu filho ao mar. Que outra dor poderá ser maior que esta. 

Violência institucional
Pág. 73 “O país encontra-se agitado como nunca, o poder confuso, a autoridade diluída, os valores em acelerado processo de inversão, a perda do sentido de respeito cívico alastra a todos os sectores da sociedade, provavelmente nem Deus saberá aonde nos leva.”
As sociedades ocidentais persistem na inversão da pirâmide funcional da governação de cada país. A população serve o poder e alimenta os mercados financeiros de origem canibal e especulativa, ao invés, do primado que deveria existir, talvez utopicamente, as cúpulas gestoras ao serviço das pessoas.  

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