Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Texto para uma exposição de pinturas em Lanzarote - 10/12/95 ("Cadernos de Lanzarote - Diário III)

10 de Dezembro (de 1995)
"Palavras de apresentação para uma exposição de pinturas cuja venda se fará em benefício de obras sociais de Lanzarote: 
A mão esquerda não nasceu com sorte. Por causa desse nome (esquerda, sinistra), é como se fosse ela a culpada de todas as maldades deste mundo, e tão pouco digna de confiança costumam considerá-la que, segundo um dito corrente, no caso de a mão direita dar alguma coisa, convém que a esquerda não o saiba. Em princípio, a intenção do dito é bastante louvável, uma vez que com ele se pretende impedir que as pessoas andem por aí a gabar-se das bondades que pratiquem, mas o certo é que a ninguém ocorreu dizer até hoje que a mão direita não deverá saber o que a esquerda dá... Nenhuma palavra é inocente. 
Felizmente que há palavras para tudo. Felizmente que existem algumas que não se esqueceram de recomendar que quem dá deve dar com as duas mãos, para que em nenhuma delas fique o que a outras deveria pertencer. Assim como a bondade não tem por que envergonhar-se de ser bondade, assim a justiça não deverá esquecer-se de que é, acima de tudo, restituição, restituição de direitos. Todos eles, começando pelo direito elementar de viver dignamente. Se a mim me mandassem dispor por ordem de precedência a caridade, a. justiça e a bondade, o primeiro lugar dá-lo-ia à bondade, o segundo à justiça e o terceiro à caridade. Porque a bondade, por si só, já dispensa justiça e caridade, porque a justiça justa já contém em si caridade suficiente. A caridade é o que resta quando não há bondade nem justiça. 
Pintar é dar a ver. Portanto, dar o que se pintou é dar duas vezes. E se é verdade que em geral se pinta com a mão direita, não é menos verdade que a mão esquerda esteve lá presente, no acto de criação. Quando Miguel Ângelo, no tecto da Capela Sistina, fez estender a mão direita de Deus para que o homem nascesse, a mão que ele tocou, já humana, foi a esquerda. Chamemos, então, se quisermos, caridade à mão direita, por ser a mais fácil e a mais comum, à mão esquerda chamemos-lhe bondade, por ser tão rara, mas a justiça que a ambas deverá gerir, é na razão que se há-de encontrar. A relação humana terá de ser obra da razão para que possa ser, conjuntamente, caritativa, bondosa e justa." 
in, "Cadernos de Lanzarote Diário III"
Caminho, páginas 215 e 216 (10/12/95)

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