Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 5 de março de 2016

"A formação do escritor José Saramago - Um livro decisivo: Levantado do Chão" de Manuel Gusmão (Revista «O Militante» - Set./2010)

O presente artigo pode ser recuperado e consultado, através da Revista "O Militante", aqui
em http://www.omilitante.pcp.pt/pt/308/Cultura/502/A-formação-do-escritor-José-Saramago---Um-livro-decisivo-Levantado-do-Cão.htm

Capa da edição Nº 308 - Set/Out 2010

"A formação do escritor José Saramago - Um livro decisivo: Levantado do Chão"
por Manuel Gusmão

"No prefácio que escreveu para a edição de Uma família do Alentejo, de João Domingos Serra, José Saramago diz de si mesmo enquanto escritor por alturas de 1975: «Era esse o tempo em que não tendo feito até aí mais que uns quantos  poemas e umas quantas crónicas, obra limpa sem dúvida, mas mais do que modesta, tinha começado a dar voltas a uma ideia ambiciosa, nada menos imagine-se, que uma história sobre o campo e quem lá trabalha e malvive.»
Começa por pensar utilizar como lugar dos acontecimentos uma quinta onde dormira uma noite quando fora com seu tio Manuel vender os porcos a Santarém. O projecto esvai-se e ele continua a matutar num romance para o qual não tinha nem história nem personagens. Recorda que também se lembrou da Azinhaga, aldeia onde nasceu, mas a ideia também não durou, «reteve-me uma espécie de pudor que ainda hoje nem a mim próprio sou capaz  de explicar». 

«E, vai daí, estava eu neste era não era, andava lavrando, deu-se o 25 de Novembro».  O jornal de que fora sub-director foi fechado, o pessoal mandado para casa com uma indemnização à excepção dele e, nessa situação, toma duas decisões. A  primeira, de não procurar emprego e a segunda «perguntar para o Lavre se haveria por lá uma cama onde dormir e um canto para trabalhar num livro que pensava escrever». 

Essas duas decisões são efectivamente decisivas, desculpem-me o pleonasmo. Quero eu dizer que elas vão ter consequências, mesmo que não imediatamente.

Uma vez instalado em Lavre, continua Saramago, «o meu plano de trabalho era simples. Antes de mais, conhecer a vila e os seus arredores, a ribeira, a ponte em ruínas a que atribuíam uma origem romana, mas que foi construída no séc. XVI, a represa e o moinho, enfim pôr as mãos em cima das coisas como me habituei a dizer, depois descobrir aqueles que dariam conteúdo e substância ao futuro livro, na maior parte camponeses de vida revolucionária obscura. Mas com um cabedal único de experiências. Encontrei-os, falei com eles, gravei bobinas e bobinas de conversações […]. Esses homens tinham nome, rosto, rugas da idade e do contínuo esforço, as mãos como cepos, diria Raul Brandão. Chamavam-se uns, que eram do Lavre, outros de Montemor, João Besuga […], António Joaquim Cabecinha, Manuel Joaquim Pereira Abelha, Joaquim Augusto Badalinho, Silvestre António Catarro, José Francisco Curraleira, e outros, João Machado. Herculano António Redondo, Mariana Amália Besuga, Maria Saraiva, Ernesto Pinto Ângelo…».

Estamos perante uma enumeração de nomes daqueles que vamos encontrar em vários romances de José Saramago. Esse gesto narrativo – uma lista de nomes – é uma reprodução em espelho desta enumeração, ou talvez possamos dizer que esta lista aqui é que imita as listas que surgem nesses romances. Seja como for, esta lista, aqui, exibe o seu significado de uma forma clara: (a) a lista é uma homenagem àqueles de quem é dito o nome; (b) os nomes representam a multidão, que muitas vezes supomos sem nome, anónima, das personagens do livro que será Levantado do Chão; mas são também aqui, e este é um ponto importante, (c) uma espécie de co-autores do romance, como se fossem participantes do coro ou da voz coral que conta a história.

A lista termina com o nome de João Domingos Serra, o autor desse pequeno livro, que José Saramago resolve editar. No prefácio, que temos vindo a citar, o autor escreve: 

«Com o caderno debaixo do braço corri para o meu refúgio e pus-me a ler, com a ideia de ir copiando à mão as passagens mais interessantes, mas rapidamente compreendi que nem uma só daquelas palavras poderia perder-se. Não terminei a leitura. Meti uma folha de papel na máquina e comecei a trasladar, com todos os seus pontos e vírgulas, incluindo algum erro de ortografia, o escrito de João Serra. Tinha enfim livro. Anda tive de esperar três anos para que a história amadurecesse na minha cabeça, mas o Levantado do Chão começou a ser escrito nesse dia, quando contraí uma dívida que nunca poderei pagar.» (itálicos meus)

O que é que o escritor nos diz com estas palavras? Ele diz-nos do impacto ou da comoção (movimento da emoção) nele, provocada pela leitura do livro de João Serra. A ideia de que nenhuma palavra desse texto se deve perder não leva obviamente Levantado do Chão a repetir palavra a palavra o texto do camponês, mas leva este romance a guardar a memória desse outro livro, a amplificá-lo e a ecoá-lo, em suma a homenageá-lo.

Como perceber que Saramago, lendo o livro do camponês, diga «Tinha enfim livro», referindo-se a Levantado do Chão, que, entretanto, ainda demorará três anos a amadurecer? É que, no livro de João Serra, Saramago encontra uma fonte do seu livro, um testemunho que autentifica a sua narrativa, é como se o escritor erudito tornasse seu personagem-herói o narrador popular e tomasse o seu ritmo, os sentidos do seu contar.

Entre o momento em que começa a ser escrito (presumivelmente em 1976) – o que coincide com o começo da trasladação, à maquina de escrever, do texto de João Bonifácio Serra) – e a data de publicação de Levantado do Chão vão três a quatro anos, em que Saramago publica, nomeadamente, um romance (Manual de Pintura e Caligrafia, de 1977), um livro de contos (Objecto Quase, de 1978) e um texto sobre «O Ouvido», espécie de descrição da tapeçaria «La dame à la licorne», que integra uma obra colectiva, Poética dos Cinco Sentidos, de 1979. Podemos considerar todos esses textos como textos em que o autor está em processo de formação; como se no seu corpo certa tensão muscular o preparasse para um salto. Como se José Saramago ainda não soubesse exactamente para onde vai, mas tacteasse, na superfície da rocha, a passagem por onde irá passar. Estes três livros formarão, com O ano de 1993, parte fundamental das obras de formação do escritor José Saramago.

Manual de Pintura e Caligrafia é um romance que conta a história de alguém que pinta retratos e se questiona sobre esse seu ofício e medita sobre essa prática obrigada a uma relação semelhança entre o retrato e o retratado. O romance termina por uma mudança de vida e na reflexão sobre a arte, por um encontro amoroso e pela chegada do 25 de Abril.

Objecto Quase começa com um conto, «Cadeira», que conta minuciosamente a queda da cadeira que arrasta consigo Salazar.

O Ouvido procede a um entrelaçamento de dois movimentos de sentido: por um lado, uma tentativa de descrição do sons que se ouviriam numa tapeçaria que figura o ouvido, por outro, uma narrativa do trabalho que desenhou e depois teceu a tapeçaria.

Ao trabalhar sobre o ouvido, Saramago vai ao encontro ou à descoberta  daquilo que ele próprio dirá ser a auralidade da sua escrita e o seu tom conversacional.

Em Levantado do Chão, Saramago encontra decisivamente (para a sua obra a vir) o tom dialogal e de conversa da sua narração. É como se ele, o autor-narrador, não estivesse sozinho a contar, como se as suas personagens pudessem partilhar a narração entre elas e com ele. Este efeito estilístico tem na sua base um tipo de frase pela qual reconhecemos os textos de Saramago.

Repare-se no último parágrafo do primeiro capítulo:    

«Madre de tetas grossas para grandes e ávidas bocas, matriz, terra dividida do maior para o grande, ou mais de gosto ajuntada do grande para o maior, por compra dizemos ou aliança, ou de roubo esperto, ou crime estreme, herança dos avós e meu bom pai, em glória estejam. Levou séculos para chegar a isto, quem duvidará de que assim vai ficar até à consumação dos séculos?

E esta outra gente quem é, solta e miúda, que veio com a terra, embora não registada na escritura, Almas mortas, ou ainda vivas? A sabedoria de Deus, amados filhos é infinita: aí está a terra e quem a há-de trabalhar, crescei e multiplicai-vos. Crescei e multiplicai-me, diz o latifúndio. Mas tudo isto pode ser contado doutra maneira.» 

Em casos extremos, essa frase é formada por vários segmentos dos quais varia o emissor. Aqui, em relação ao segundo parágrafo transcrito, formado por várias frases, podemos dizer que é a voz do narrador que começa por expor uma interrogação, uma dúvida e uma suspeita – quem é?/almas mortas, ou ainda vivas?/embora não registada na escritura. A seguir, o narrador como que se retrai e quem fala é um intermediário de Deus, um padre ou a própria instituição. A Igreja – A sabedoria de Deus, amados filhos, é infinita: aí está a terra e quem a há-de trabalhar, crescei e multiplicai-vos – que é em parte corrigida pelo latifúndio, cuja palavra o narrador regista – Crescei e multiplicai-me, diz o latifúndio – Até que o narrador retoma a palavra naquilo que percebemos ser a promessa  de um contar alternativo à escritura que não fala daquelas gentes que parece terem vindo com a terra. O facto de ser dada a palavra à Igreja e ao Latifúndio e o modo como a usam constituem uma operação retórica que ironiza sobre esses «falantes» e lhes opõe um dizer diferente. Levantado do Chão será uma história do latifúndio, alternativa à que o latifúndio de si conta e para si deseja. Podemos pois dizer que o texto de Saramago, Levantado do Chão, é um texto de ficção que preenche uma lacuna da historiografia oficial ou da história contada pelos vencedores, pela classe dominante.

Podemos ainda dizer que Levantado do Chão é, simultaneamente, o último livro do período de formação do escritor José Saramago e o primeiro livro da sua maturidade.

Para esta sua dupla condição contribuem as características que já apontei e que recapitulo agora:

(1) A história contada nos seus romances aparece sempre como o preenchimento de uma lacuna num texto que tem funções de autoridade.

O Memorial do Convento conta a história da construção do Convento de Mafra, mas tal como em Levantado do Chão os protagonistas dessa construção são os trabalhadores braçais que não são nomeados pela escritura, ou seja, pela historiografia oficial. Uma confirmação disto pode ser fornecida pelo facto de andar também por Mafra uma personagem Mau-Tempo (Julião). As regras e as convenções de verosimilhança, o próprio contrato de leitura negociado entre o leitor e o texto indicam que este é um antepassado da família Mau-Tempo de Levantado do Chão. Eis uma parte da sua apresentação aos seus companheiros que transportam a pedra: O meu nome é Julião Mau-Tempo, sou natural do Alentejo e vim trabalhar para Mafra por causa das grandes fomes de que padece a minha província. […] Este pequeno jogo que consiste em trazer para um romance posterior e uma distância de dois séculos antes uma personagem de um operário, é coincidente ou solidário com a estratégia de contar de outra maneira. Neste caso concreto, num romance que começa com o problema da sucessão dinástica, este aparecimento de Julião Mau-Tempo indica ao leitor que os trabalhadores, mesmo os mais humildes também têm antepassados, também vêm numa linhagem mesmo que silenciada e ignorada.

(2) Memorial do Convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis, que é anunciado como o próximo romance, nas primeiras edições de Objecto Quase e Levantado do Chão, trabalham com o mesmo tipo de frase, que permite meter, no interior de uma frase ou de um parágrafo, um diálogo ou um conflito verbal.

Esta transformação da pontuação visa um efeito não apenas de diálogo, mas dialéctico ou dialógico. Uma vírgula seguida de uma palavra com letra inicial em maiúscula indica geralmente que se mudou de fonte da fala no interior de uma frase. No caso dos parágrafos, como vimos acima, são os próprios segmentos frásicos que produzem esse efeito.

Esta é a maneira como Saramago nos mostra a socialidade ou o carácter radicalmente social da linguagem humana.

(3) Os dois traços anteriores convergem com um terceiro também já enunciado acima que é a apresentação por vezes de listas de nomes dispostos por ordem alfabética, que se destinam a retirar do anonimato esses nomes e ao mesmo tempo sublinham nessa ordem o seu carácter artificial e residual, porque os nomes dos construtores são inúmeros.

Em Memorial do Convento, para além dos (7) nomes daqueles (sete) que num momento de descanso se apresentam uns aos outros – O meu nome é Francisco Marques, nasci em Cheleiros […], O meu nome é José Pequeno […]; Chamo-me Joaquim da Rocha, nasci no termo de Pombal […]; O meu nome é Manuel Milho, venho dos campos de Santarém […];  O meu nome é João Anes, vim do Porto […]; o meu nome é Julião Mau-Tempo, sou natural do Alentejo […]; o meu nome é Baltasar Mateus, todos me conhecem por Sete-Sóis […] – há ainda mais duas listas: 

Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, e Pedros, e talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem, vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende. Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcelino, Nicanor, Onofre, Paulo; Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra por cada um, para ficarem todos representados.

A lista que apresenta os nomes próprios na forma do plural é uma amostra e dá, por esse plural aplicado a um nome, uma ideia da quantidade de homens arrolados.

Depois e na sequência daquela vem então uma outra lista que apresenta um nome por cada letra do alfabeto. O carácter arbitrário do alfabeto dá a esta lista por ordem alfabética a possibilidade de representar todos os homens portadores de nomes com aquelas letras iniciais. Inscritos num livro que lhes vai sobreviver, ficam assim imortalizados. E poderíamos dizer que em momentos como este a ficção cumpre uma função alternativa à da historiografia oficial, com a sua glorificação dos reis e dos generais, em suma, dos mais poderosos.

A formação do escritor José Saramago está quase completa e ele entrou decididamente na sua maturidade de autor. Mas talvez possamos ir um pouco mais longe. Sabendo nós que o tempo e designadamente o tempo histórico não é linear talvez se possa compreender que eu sugira que há um livro ainda importante para esta formação que se vai sobretudo traduzir em romances. Esse livro, que é publicado em 1981, entre Levantado do Chão (1980) e Memorial do Convento (1982), chama-se Viagem a Portugal.

Este livro de viagens na sua terra ajuda a estabelecer a ponte entre os dois romances e mostra como a escrita de José Saramago representa na ficção uma história do povo trabalhador português, uma história denegada e recalcada, uma histórica que, entretanto, atesta a sua caminhada persistente até à sua emancipação."
Manuel Gusmão

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