Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sábado, 5 de março de 2016

Escritores sobre Saramago - «Avante!» Nº 1300 - 29/10/1998

O artigo pode ser recuperado e consultado, aqui via arquivo histórico do jornal "Avante"
em http://www.avante.pt/arquivo/1300/0003h6.html

«Avante!» Nº 1300 - 29/10/1998

Escritores sobre Saramago

"A festa do Nobel está para durar, como se escreveu em editorial no «Avante!», logo que foi conhecida a atribuição do Prémio a José Saramago. Não se esgota nos momentos de alegria que saudaram a distinção, pela Academia Sueca, ao escritor português, nem nas cerimónias de alto nível celebradas ou a celebrar.
As numerosas iniciativas que, por todo o País, têm lugar e que mostram a Saramago o apreço pela sua escrita e pela sua postura de cidadão e a congratulação pelo Nobel, aí estão a prolongar a festa nos tempos. A essas iniciativas se associa também o nosso jornal, publicando hoje depoimentos de alguns escritores, seus pares na escrita e nos ideais."

"Lendo José Saramago" - Manuel Gusmão

A obra romanesca de José Saramago fala uma linguagem coral e une um desejo de ficção a um desejo de história.
A coralidade da sua escrita vem do modo como combina maneiras, construções e ritmos da tradição literária, com a coloquialidade mais comum; com o uso irónico, a transformação e a invenção de provérbios. Vem do modo como, na sua prosa, uma só frase é já um diálogo, ou um fragmento de diálogo, onde cabem o acordo e o desacordo.
O desejo de história em Portugal e na viragem dos finais de 70 para o início da década de 80 (período em que a sua obra se relança), é de alguma forma motivado pelo modo como o 25 de Abril de 1974, o fluxo revolucionário que transforma essa data num processo e o início da contra-revolução mostram de forma indelével, na própria memória biográfica de muitos de nós, seus leitores, o carácter histórico da vida das sociedades e dos indivíduos humanos. De um ponto de vista internacional, uma das razões para o interesse pela ficção de Saramago está talvez nesta importância da historicidade, em tempos ditos de «fim da história». O desejo de ficção, por outro lado, tem a ver com a maneira como as sociedades humanas longamente encontram nas narrativas e no contar de histórias (orais ou escritas) não só modos de dar sentido às suas maneiras de viver, mas modos de imaginar outros mundos e vida possíveis. A unidade entre estes dois desejos é praticada na ficção de José Saramago através de ideias de partida, ou de «programas» narrativos de base, muito fortes, e que se processam depois de forma surpreendente. A sua ficção alia, então, a imaginação criadora (que não se limita a combinar dados da experiência quotidiana, mas inventa novas formas de experiência) à aguda compreensão de que a história é o que vivemos e fazemos e não apenas o que aconteceu no passado; a compreensão de que também o presente é histórico e de que a história é ainda o terreno da escuta e do desejo de um futuro outro. Deste ponto de vista, os romances de José Saramago podem talvez distribuir-se por dois grandes «tipos», aliás aparentados.
(a) Um primeiro «tipo» de romance é o daqueles que, a partir de um dado presente, encenam um passado mais ou menos próximo ou distante. Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis e o Evangelho segundo Jesus Cristo constroem versões ficcionais novas de um passado já antes contado. Tais versões imaginam, então, uma lacuna nas «escrituras» dominantes desses passados e impõem uma torção ou rotação do ponto de vista, para os contar de outra maneira. Nos dois primeiros livros, é sobretudo a história dos senhores que é subvertida, pela ficção que dá agora voz aos humilhados e ofendidos (aos trabalhadores rurais do Alentejo e aos construtores de Mafra), que do chão se levantam. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, partindo do que é já uma ficção, a dos heterónimos de Pessoa, Saramago reconstitui e inventa um tempo de opressão, marcado pelo fascismo em Portugal, pela guerra civil de Espanha, e pela presença obsessiva e intermitente dos barcos da revolta dos marinheiros em 1936 (sinal de uma outra história, clandestina e recalcada). A ficção do Evangelho, que arranca a partir da temporalização de uma gravura, constrói uma re-humanização do humano de Cristo, feita de fragilidade e força terrestres. História do Cerco de Lisboa é um romance que exibe, numa nova configuração, algumas das principais estratégias narrativas deste tipo de ficções: temos agora dois tempos, historicamente afastados, que se encontram; um não que se impõe à historiografia, deforma a imagem de um passado, e acarreta consequências na «vida» da personagem que tal comete. Um revisor passa a escritor e encontra o outro do amor.

4º Aniversário da Fundação José Saramago - Leitura por Manuel Gusmão

(b) O outro «tipo» de romance é o daqueles que constituem alegorias e meditações narrativas sobre um presente histórico, mais ou menos longo, imaginado de forma mais ou menos fantástica ou maravilhosa (no sentido em que falamos do maravilhoso cristão e pagão nos Lusíadas). Manual de Pintura e Caligrafia abre nesta direcção, sendo basicamente uma reflexão sobre questões de uma estética da representação; uma reflexão cuja narrativa vem a integrar o acontecer do 25 de Abril. A separação e navegação da Península Ibérica em A Jangada de Pedra é, em parte, a alegoria de uma resistência cultural à integração capitalista europeia, e inventa a consequência fabular e fabulosa de um não imposto ao discurso político-ideológico dominante. Neste sentido, O Ensaio Sobre a Cegueira, um dos livros onde a malha narrativa é mais apertada, um romance que até no título indicia a sua condição de narrativa que reflecte, pode ser lido como a alegoria de um mundo, nosso contemporâneo, marcado por uma imensa cegueira ética, pela ameaça de uma nova forma de barbárie que desumaniza o humano, mas também pela acção tenaz de uma fraternidade compassiva e sobrevivente. Em Todos os Nomes, embora a história contada cubra escassas semanas, estamos de novo perante um presente largo, e podemos, então, ler o modo como, num universo quase totalmente burocratizado (em que uma Conservatória Geral se parece com um Cemitério Geral), se abrem falhas ou rasgões por onde passam o sonho, a compaixão e a esperança de pessoas comuns.
Os romances de Saramago que assim viajam no tempo, habitando e inquirindo os nossos tempos, cruza os gestos de um resgate da memória, do presente e do futuro dos explorados e oprimidos, com a insistência de um pessimismo activo que não consente a resignação, antes dá testemunho do carácter indomável da esperança. Uma esperança que não aceita a desigualdade que desfigura a comum humanidade dos humanos, e que se eleva à dimensão de uma construção antropológica e ética, ou seja, também política; no sentido em que a política pode ser o longo trabalho da emancipação."

"Eu, é porque sim" - Alice Vieira

"Neste momento, não sei que poderei dizer eu sobre José Saramago.
Neste momento, já toda a gente disse tudo sobre José Saramago.
Neste momento, já todos se confessaram seus amigos do peito desde o tempo da Azinhaga, seus admiradores incondicionais desde que a «Terra do Pecado» se chamava «AViúva», seus apoiantes para a atribuição do Nobel desde a publicação dos «Poemas Possíveis». Só me admira como ainda não apareceu nenhum antigo chefe das oficinas do Hospital de S. José a recordar como, logo naquela altura, tinha adivinhado para aquele ribatejano esgalgado um promissor futuro no campo da literatura.
Por isso eu não sei o que hei-de dizer sobre o José Saramago. Ainda por cima não sou crítica literária e, nestas aflições, só posso chamar em meu socorro a velha quadra do Augusto Gil: «Não há belo, quanto a mim/nem para gostar há razão:/só se gosta, porque sim;/não se gosta, porque não.»
Eu, evidentemente, é porque sim.

Escritora Alice Vieira

Então o que hei-de eu dizer sobre o José Saramago, sem me deixar cair na estultícia das frases tipo bico-dos-pés, «foi a mim que ele disse que», «era eu que estava com ele quando», «é meu amigo desde que», doença também conhecida pela síndrome do «eu-é-que-sou-o-presidente-da-junta-de-freguesia»?
Posso dizer, por exemplo, que há trinta anos, a minha amiga Isabel Jones, depois de comigo ter partilhado a leitura dos «Poemas Possíveis», me confidenciou «saber que Saramago não é o nome dele? Sabes que era alcunha? Mas promete que não dizes nada!» - e eu cumpri a promessa até hoje. (Se o segredo se descobriu, juro que não fui eu, Isabel!)
Posso dizer, por exemplo, que todos os cães que não tive se chamaram Constante.
Posso dizer, por exemplo, que de vez em quando, em jejum, experimento olhar através dos corpos das pessoas e às vezes - acreditem - Blimunda vela por mim.
Posso dizer, por exemplo, que ainda hoje subo a Rua do Alecrim à procura do médico Ricardo Reis, desembarcado há pouco, e de Marcenda com o seu braço paralisado, e de Lídia que não tardará em sair daquilo que resta do Hotel Bragança, com as ruas velhas de Lisboa anoitecendo sob a neblina que vem do rio, e as pessoas, do lado de lá dos vidros, alumiando-se à tristeza de 25 volts. Posso dizer, por exemplo, que com «Todos os Nomes» redescobri a alegria de despachar o trabalho para poder vir depressa para casa, e continuar a sua leitura, para chegar ao fim e saber o que tinha acontecido à mulher do verbete apanhado por engano.
Posso dizer, por exemplo, que muito recentemente curei uma gripe com o «Ensaio sobre a Cegueira», tal como na minha infância me lembro de as ter curado com «AIlha do Tesouro», o «Ivanhoe» e «ATulipa Negra» (acreditem: este é o maior elogio que um Prémio Nobel pode receber!).
Mas posso também falar daquele (perdoável) orgulho de sentir que este Prémio entrou em nossa casa, e nos redimiu de tantos anos de indignidade, de tantas portas fechadas a cadeado, de tantas vidas sacrificadas, de tantas injustiças cometidas, de tantos sonhos adiados.
Ou, como desde o dia 8 deste mês a minha tia Clara não se cansa de repetir para o vizinho de cima: «Desculpe lá, senhor Coronel, mas desta vez ganhámos nós!»"

"Finalmente!" - Mário de Carvalho

"Desta vez o Nobel foi atribuído a um grande escritor, dos que marcam o nosso século. Nem sempre aconteceu, e parece não ter acontecido nos últimos anos. Talvez a atribuição deste Nobel a Saramago não reabilite o prémio de todas as malparanças por onde tem andado, uma das quais tem sido uma estranhíssima ignorância da literatura portuguesa. Mas é um passo no sentido do prestígio de um Nobel que nem sempre tem sabido prestigiar-se.
Li em qualquer lado que um crítico da revista «Time» confessava nunca ter ouvido o nome de Saramago em lado nenhum. Não me admirava que fosse o mesmo crítico que considerou a menção de Fernando Pessoa por Harold Bloom como uma «minudência académica». A revista americana anda muito mal munida de críticos e bem precisada de substituições. É este tipo de pimpona ignorância que transforma os Estados Unidos numa desmedida paróquia, contentinha e fechada às luzes. Não sou grande especialista, mas não me parece que a literatura americana dos últimos anos tenha beneficiado com o autismo. A crer, pelo menos, pelo que se vai folheando nas livrarias.

Escritor Mário de Carvalho

A altura, naturalmente, é de regozijo e dispensa os pelourinhos para os detractores da escrita de Saramago. Não os mereceriam, seguramente os que fundassem os ataques em sinceras razões de escolha literária. Devo confessar que (aparte os «Cadernos de Lanzarote») não consigo evocar um único caso. Sem dúvida, pode referir-se um livro a outro, depreciar este ou aquele, no todo ou em parte. Questão de gosto. Mas a rejeição global do autor tem vindo ou de gente despeitada, que gostaria que o país fosse feito à rasteira medida dela, ou de adversários políticos incapazes de discernir para além dum mesquinho sectarismo, ou de quem não gosta da pessoa e considera que a sua antipatia é um argumento.
Como dizia o Eça, «tenhamos a caridade de não aprofundar…».
O que interessa é que, enfim, um dos grandes escritores portugueses deste século teve consagração internacional, e que essa consagração aconteceu na área da cultura: no que há de mais profundo, de mais permanente, de mais identitário em nós."

"José" - José Manuel Mendes

"1 Recordo esse dia já longínquo em que Fernando Namora me deu a ler o recém-publicado Deste Mundo e do Outro. «Aí tem um livro assombroso», disse. «Diferente de tudo o que por cá se tem escrito.» Quem regressar às páginas de Jornal sem Data perceberá porquê. E recordo a surpresa, o sobressalto, o fascínio. Uma emoção que, nos quase trinta anos volvidos, se repetiu e renovou. Recordo a carta que, de pronto, remeti ao autor. E o nosso sequente encontro, numa Lisboa revoada pela melancolia do Outono. Começou aí, nas margens do seu primeiro título de crónicas, uma amizade por ambos celebrada sempre na singularidade de que é feita, à revelia de interditos e condicionalismos de qualquer ordem.
Recordo. Na serena euforia deste momento esperado. Porque havia uma voz secreta, posterior a todas as decepções e tibiezas, predicando-o. Sabia que o Nobel para o José Saramago não era uma ambição sem raiz. Ao contrário de muita especulação posta a correr, muita tagarelice, um nome português, o dele, há anos pesava na mesa da Academia Sueca. Porque, no contexto das literaturas do nosso tempo, emergia entre os maiores. Tão-só isso. E tanto era. Era tudo, afinal.

4º Aniversário da Fundação José Saramago - Leitura por José Manuel Mendes

2 Certa vez, na Festa do «Avante!», nos arredores da publicação do Memorial do Convento. Era já imensa a fila diante do José. As pessoas chegavam junto da mesa, íntimas de Blimunda e Baltazar Sete-Sóis, falavam da Passarola, do transporte da pedra até Mafra, de outros lances que não esquecem, falavam e falavam de uma nova gramática, nova semântica, um ritmo e um arrebatamento sem igual, pediam a dedicatória e saudavam o homem, o ficcionista, abraçavam-no amiúde, nós víamos, fazíamo-nos cúmplices de uma convivência longe do usual, e eu entendi o que sucessivas jornadas confirmariam - essa afectividade rara a cuja luz se regem as relações entre o escritor e os seus leitores. Como estranhar, então, a euforia colectiva que acolheu o seu triunfo, não só em Portugal? A emoção de quantos estiveram nos Paços do Concelho, em Lisboa, na sede do PCP ou na vigília promovida pela CGTP, no Centro Cultural de Belém, na Câmara Municipal do Porto, aqui e ali, milhares e milhares nos espaços de uma pertença, uma partilha, que talvez nenhuma palavra exprima? A poesia na rua, para lembrar a propósito Vieira da Silva, que as horas foram e são da estirpe do irrepetível? Não estou seguro de que valha a pena sublinhar a invulgaridade de uma expressão de júbilo assim.

3 José Saramago tem escrito, quando o disse eu pela primeira vez?, os livros do nosso desassossego. Sem que por tal se entenda qualquer vínculo a uma arte do imediato, cingida a concepções edificantes ou tentações normativistas. Bem pelo contrário! Desassossego como questionamento, implicação, o oposto da acídia tão em voga nestes tempos do pensar débil. Desassossego como instância que convoca, perturba, desafia. Na consequência, portanto, de uma visão do mundo que se não furta a enfrentar a complexidade do real, o logro, a incomodidade e o horror, que transfunde o cepticismo numa esperança sem retóricas e a energia crítica num apelo metamórfico.
Obras como Levantado do Chão ou Todos os Nomes, O Ano da Morte de Ricardo Reis ou Ensaio Sobre a Cegueira, Cadernos de Lanzarote (em diversas passagens), na sua densa e polifónica composição, formulam interrogações decisivas, enunciam o contraditório, o finível, o que pede uma nova polis depois das disforias, e também o enlevo, a rejubilação, os instantes de esplendor, a perplexidade, o drama subjectivo ou comunitário. Alegorizam o presente enquanto afeiçoam o tempo demudado, utopia do avesso talvez, quero eu significar - um discurso em busca do seu oposto, linguagem e vida, interagindo, humanizando os dias desolados. Que tem isto a ver com as estéticas da reivindicação ou da indiferença? E eis-nos perante uma das mais radicais, mais argutas construções da insubmissão. Mesmo na aporia, na sugestão ou na evidência dela.
Onde, portanto, a surpesa, onde, no apego do José às suas convicções de sempre, contra ventos e marés, sobretudo quando parece fora do pacto das conveniências a sua defesa com coragem e lucidez? Quantos, em todo o caso, teriam o desassombro de afirmar, bastante antes da atribuição do Prémio Nobel, que por ele não abandonariam nunca os ideais de todo um percurso de aspirações e temeridades?
Por isso, José Saramago é e será o desinverno do nosso contentamento. Esta praça em clamor, este brilho da História a acontecer."

in, «Avante!» Nº 1300 - 29.Outubro.1998 

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