Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Para o magazine espanhol El Semanal, uma abordagem sobre fotografias que retratam a "marcha sobre Munique" de Hitler (Cadernos de Lanzarote Diário IV - 15/07/1996)

15 de Julho (de 1996)

"El Semanal, um magazine dominical que vem sendo distribuído por uns quantos jornais espanhóis que, suponho eu, não dispõem de meios para produzir os seus próprios suplementos, propôs a alguns escritores que escrevessem um comentário de três páginas sobre fotografias que eles mesmos escolheriam de um largo conjunto de imagens célebres, desde os dias de Niepce e Daguerre até este tempo em que estamos. A minha escolha foi rápida e o comentário, pensado e repensado, veio a dar no que segue: 

«No dia 8 de Novembro de 1923, um antigo cabo do exército bávaro, chamado Adolfo Hitler, entrou na sala subterrânea da Cervejaria Bürgerbrãu, onde a flor da burguesia "bem pensante" de Munique se encontrava reunida para discutir a situação política - e disparou um tiro de pistola para o tecto. Desde a invenção das armas de fogo, não é raro que apareça um tiro a substituir as palavras (quer as de quem tinha falta de outros argumentos quer as de quem simplesmente deixara de os ter porque a bala lhe levara a vida), mas este Hitler sabia já, pela experiência ganha como agitador desde que em 1919, por indicação dos militares, ingressou no Partido Operário Alemão, quanto podem valer os discursos capazes de despertar nos auditores a ambição, a sede de domínio ou o desejo de desforra. Não tinha precisado de ler em Shakespeare a fala de Marco António aos Romanos para conhecer a arte oratória de levar consciências ao engano: neste caso nem tanto era preciso, pois não fez mais do que convencer os burgueses de Munique de que ele, Adolfo Hitler, era o homem que o destino escolhera para salvar a Alemanha, cujos interesses e necessidades, tal como os entendia a burguesia, eram em tudo coincidentes com os dela própria. Arrebatando com a inflamada arenga uma assembleia que ao princípio se lhe mostrara contrária, Hitler anunciou a nomeação de "um novo governo nacional alemão", proclamou que assumia a sua presidência, e, certamente inspirado pelo exemplo da marcha dos fascistas italianos sobre Roma, propôs a imediata preparação, "a fim de salvar o povo da Alemanha", de uma marcha sobre Berlim, "essa Babilónia de iniquidades", disse. E terminou profetizando: "Amanhã, ou haverá um governo nacional alemão, ou seremos cadáveres os que aqui estamos." 
«Como, não obstante o entusiasmo, os novos aliados não deram à ideia da "marcha sobre Berlim" um apoio suficiente, Hitler decidiu substituí-la por uma "marcha sobre Munique", ou, com mais exactidão (visto que em Munique já estavam...), um desfile armado até ao Feldherrnhalle, o chamado "santuário dos generais". Certo de ter do seu lado a maioria da população da cidade e apostando na fragilidade da obediência das forças militares ao governo, Hitler lançou o seu golpe de Estado. A esperança de triunfo não durou mais que poucos minutos. Quando a manifestação já se aproximava do Feldherrnhalle, na Kõnigplatz, um pequeno destacamento de polícia cortou-lhe o caminho. Apanhada de surpresa quando estava convencida de ter a vitória ao alcance da mão, a tropa nacional-socialista debandou, deixando atrás de si catorze mortos. Hitler, que havia fugido sem glória do local do combate, foi detido dois dias depois. Julgado em Fevereiro do ano seguinte por um tribunal que notoriamente simpatizava com os seus projectos políticos, foi condenado a cinco anos de prisão por delito de alta traição, com perspectiva de suspensão da pena passados seis meses. Viria a ser amnistiado em Dezembro de 1924. No castelo de Landsberg, que foi o seu cárcere, Hitler escreveu a primeira parte de Mein Kampf. 
«Passaram treze anos sobre estes acontecimentos: estamos agora em Novembro de 1936, e Adolfo Hitler é, desde 1933, único amo e senhor na Alemanha. Exceptuando a sombra incómoda da vitória da Frente Popular em França, no mês de Maio, e, três meses antes, a da Frente Popular em Espanha, entretanto já a braços com o levantamento franquista, a Europa só tem motivos de satisfação para dar ao fascismo em geral e a Hitler em particular: no princípio de Março, as tropas alemãs entram na Renânia, desmilitarizada desde o fim da Primeira Guerra Mundial; três semanas mais tarde, no mesmo mês, as eleições para o Reichstag, cuidadosamente preparadas, dão 98,8% dos votos aos nacionais-socialistas; em 11 de Abril, em Portugal, o governo de Salazar cria a Mocidade Portuguesa, organização para a juventude, segundo os modelos fascistas; em Maio, Mussolini proclama o Imperium; em 17 de Junho, Heinrich Himmler é nomeado chefe das polícias alemãs; em 27 de Junho, o ex-comunista Jacques Doriot funda o Partido Popular Francês, que, denominando-se a si mesmo "partido da paz", apoia a Alemanha nazi; em 4 de Julho, a Sociedade das Nações levanta as sanções que haviam sido aplicadas à Itália em consequência da invasão da Etiópia; em 11 de Julho conclui-se um acordo de amizade entre a Alemanha e a Áustria; em 30 de Setembro, Salazar cria a Legião Portuguesa, milícia paramilitar fascista; em Outubro, o catolicismo austríaco impõe-se como regime monolítico e autoritário; em 24 de Outubro, a Alemanha reconhece de jure o império italiano; em 1 de Novembro, Mussolini emprega pela primeira vez a expressão "Eixo Berlim-Roma". Faltam poucos dias para que o governo de Franco seja reconhecido pela Alemanha e pela Itália, apenas alguns mais para que a Alemanha e o Japão assinem o pacto anti-Komintern. A Segunda Guerra Mundial está cada vez mais perto. 
«É um Hitler triunfante que nesta fotografia vemos desfilar com o seu séquito. Leva as mãos cruzadas à altura do cinturão do uniforme, postura sua que voltaremos a ver muitas vezes e que nenhum dos que o seguem se atreve a imitar. O cenário, com as estranhas chaminés fumegando, poderia pertencer a uma ópera wagneriana, poderia ser, por exemplo, a forja de Alberich no Ouro do Reno, mas se Adolfo Hitler, para dar maior solenidade à comemoração do 13.° aniversário da "marcha sobre Munique", mandou que tocasse uma orquestra, a música só poderá ter sido a que, no final da mesma ópera, acompanha a entrada dos deuses no Valhala. Na realidade, todos estes homens se crêem deuses. Já não andam à conquista do poder, têm-no, usam-no sem limites, o mundo só existe para os servir. Há treze anos, quando daqui saíram para forçar os generais bávaros - o que vemos na fotografia é a fábrica de cerveja Bürgerbrãu... -, um simples destacamento de polícia foi capaz de desbaratá-los. Hoje são donos de um exército, são donos de um povo inteiro - e preparam a guerra. 
«Poderia ser uma ópera de Wagner, poderia ser também um cenário de Blade Runner, e os que marcham um bando de criminosos. Foram um bando de criminosos.» 

in, "Cadernos de Lanzarote Diário IV"
Caminho, páginas 172 a 176 (15 de Julho de 1996)

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