Perguntam-me não raras vezes:
- "Qual o livro de José Saramago que mais gostaste de ler?"
A resposta que pode ser dada a cada momento:
- "Impossível de dizer... não sei responder, não seria justo para com outros (livros) não nomeados. Mas uma coisa sempre soube. Uma obra de Saramago, enquanto "pseudo ser vivo" ou com "gente dentro" tem que me raptar, prender-me, não me deixar sair de dentro das suas páginas. Fazer de mim um refém, e só me libertar no final da leitura... mesmo ao chegar à última página. Aí, o "Eu" leitor que se mantém refém, liberta-se da "gente que a obra transporta dentro" e segue o seu caminho.
Mas segue um caminho que se faz caminhando, conjuntamente com mais uma família"

Rui Santos

domingo, 3 de abril de 2016

Revolta dos camponeses em Montemor-o-Novo - "Levantado do Chão"

(...) "A Montemor vamos segunda-feira, reclamar o pão dos filhos e dos pais que os devem criar, Mas isso é o que sempre fizemos, e os resultados, Fizemos, fazemos e faremos, enquanto não poder ser diferente, Canseira que não acaba nunca, Um dia acabará, quando já estivermos todos mortos e ao de cima vierem os nossos ossos, se houver cães que os desenterrem, Vivos haverá bastantes quando chegar esse dia" (...) Página 308

Fotografia: Helena Mesquita

(...) "Já os gritos começaram, Queremos trabalho, queremos trabalho, queremos trabalho, não dizem muito mais do que isto, só daqui e dalém um insulto, ladrões, e tão baixo como se de os haver se envergonhasse quem o lança, e há quem grite, Eleições livres, agora que adianta, mas o grande clamor sobe e abafa todo o resto, Queremos trabalho, queremos trabalho, que mundo este haver quem de descansar faça ofício e quem trabalho não tenha, mesmo pedindo. Alguém o sinal deu, ou estaria combinado que durando o ajuntamento tantos minutos, ou então telefonou Leandro Leandres, ou o tenente Contente, ou o presidente da câmara espreitou pela janela, Lá estão os cães, fosse como fosse, a guarda montada desembainhou os sabres, ah, mãezinha, que até a gente se arrepia toda, só de ver esta coragem, esta carga de heróis, já me ia esquecendo do sol, deu nas lâminas polidas e foi uma luz divina, fica um homem a tremer de comoção patriótica, aqui veremos quem se nega. Rompem os cavalos a trote, que o espaço não dá para cavalarias mais arrebatadas, e logo ali vai ao chão um magote de gente que tenta escapar-se por entre as patas e as sabradas. Pode um homem ficar-se com este vexame, mas às vezes não quer, ou de repente cega, e então o mar levanta-se, levantam-se os braços, as mãos travam as rédeas ou trazem pedras apanhadas do chão, ou nos bolsos vieram, é o direito de quem outras armas não tem, e lá de trás voaram, o mais certo é não terem atingido ninguém, cavalo ou cavaleiro, uma pedra assim, ao acaso, se pedras houve afinal, quando cai vai morta. Era uma cena de batalha digna de figurar na sala do comando ou na messe dos oficiais, os cavalos empinados, a guarda imperial de sabre desembainhado, sovando de prancha ou fio, consoante calhava, a personagem insurrecta que corria para trás numa maré que logo tornava, malditos. Esta foi a carga do vinte e três de Junho, fixai bem a data na memória, meus meninos" (...) Página 313

Fotografia: Helena Mesquita

(...) "Está morto José Adelino dos Santos, apanhou com uma bala na cabeça e primeiro nem acreditou, sacudiu a cabeça como se lhe tivesse mordido um bicho, mas depois compreendeu, Ah malandros que me mataram, e caiu de costas, desamparado, não tinha ali a mulher que o ajudasse, fez-lhe o sangue uma almofada debaixo da cabeça, uma almofada vermelha, muito obrigado. Tornam a aplaudir no castelo, adivinham que desta vez foi a sério, e a cavalaria carrega, dispersa o povinho, é preciso recolher o corpo, ninguém sem aproxime." (...) Página 314

in, "Levantado do Chão"
Caminho

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