Crónica publicada no "Diário de Lisboa", crítica sobre a forma como o esquecimento propositado de alguns, semeiam o branqueamento dos factos e atrocidades cometidas contra o ser humano, ou o paradigma de que se reveste a reescrita da história.
Rui Santos
Fotografia de 1983 - Marcha pela Paz
"A resistência renegada"
9 de março de 1972
"Nas épocas de convulsão, de crise continuada, os homens dividem-se por categorias de comportamento: aqueles que vivem acima da sua própria cabeça e aqueles que vivem abaixo dos seus próprios pés. Se há uma guerra e um país é ocupado, os primeiros são os resistentes, os segundos os colaboracionistas. A massa que flutua entre estes dois extremos tem como característica principal a passividade, mas mesmo esta se partilha entre a resistência e a colaboração. Donde se concluirá, se a interpretação não é forçada, que a neutralidade é impossível e contrária à própria natureza humana, para abusar uma vez mais desta cansada expressão...
A última guerra (referimo-nos à que ocorreu entre 1939 e 1945, não à guerra de hoje ou de ontem, aqui ou além) pôs em confronto ou ao lado dos exércitos nacionais um outro exército, sem uniformes e às vezes sem armas, que passou à História com o nome comum e heróico de Resistência. Não é exagerado dizer-se que este exército e as razões da sua existência e ação não se extinguiram nunca. Desde o fim da guerra (daquela) sempre tem havido quem ocupe e quem resista...
Julgar-se-ia, porém, que quando a morte passasse a rasoira niveladora, deitando definitivamente os que de pé se batiam contra ou a favor da humanidade, quando o tempo assentasse as cinzas sobre as cinzas - julgar-se-ia, dizemos, que só aos vivos e ao futuro competisse a próxima luta e que aos mortos coubesse apenas a função de exemplo, para edificação das gerações. Parece, contudo, que não é assim. Os vivos lutam numa frente tão ampla que chegam a combater contra os mortos, e o que temos diante dos olhos é também uma necromaquia - se a palavra existe... Que se há de pensar, por exemplo, diante desta notícia assustadora vinda de Roma: «No cemitério de Milão foram arrancadas placas dos túmulos dos resistentes mortos pela libertação da Itália.»
Sítios que julgaríamos serem lugares de meditação, fontes de coragem, surgem subitamente como alvo de um ódio irracional que contra as próprias pedras inertes se encarniça. Os homens que são pó debaixo daquelas pedras viraram as costas à tranquilidade, à segurança, à própria vida, porque para eles a pátria havia sido algo de concreto e realmente vital, e não um conceito abstrato, vazio de sentido, sem raízes nem sol por cima delas. E é talvez a força do seu testemunho silencioso que está desencadeando o furor daquele perigo que se suporia extinto ou, quando muito, adormecido por longo tempo. Agora se vê que a fera se move, que tenta uma vez mais a conquista do mundo, em nome dos mesmos princípios básicos da sua doutrina.
Em Milão, arrancam-se pedras com os nomes de homens que lutaram pela liberdade da Itália, a troco de coisa nenhuma. Em Washington, os membros do Partido Nazi Norte-Americano passeiam-se fardados, levando à frente o seu Führer particular e vão defender os racistas brancos, que nós julgámos terem todas as condições para se defenderem a si próprios... O dragão ensaia as forças, afia as unhas, tateia à procura de pontos fracos - e a História avisa-nos de que este é somente o primeiro passo. Outros se seguirão, numa espécie de engendramento contínuo de violências, se estes sintomas não forem rigorosamente interpretados. Se o mundo que hoje laboriosamente acede à democracia não se opuser com firmeza ao alastrar do Grande Mal."
in "As opiniões que o DL teve"
09/03/1972
(NR: Bold meu)
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